Taxistas trabalham por até mais de 24 horas para fechar o mês e dormem no carro

Rodoviária é point de 'estacionados'; sem descanso, consequência pode ser acidentes do trânsito, que estão sete vezes mais frequentes na categoria

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  • Fernanda Santana

Publicado em 5 de março de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Às 22h, os taxistas que chegam ao ponto da Rodoviária ou estão na fila sabem que dormirão por lá mesmo, no carro. Dali a pouco, a madrugada começa e os ônibus estacionarão com menos intensidade, até as 5h. Sempre à espera da próxima corrida, os taxistas completam até um dia sem voltar para casa.

O Terminal Rodoviário de Salvador é o ponto de concentração dos taxistas que vivem a rotina de transformar o táxi em casa. Lá estão as chances das melhores corridas: para bairros mais distantes ou outros municípios. Por dia, 12 mil pessoas circulam pela rodoviária, segundo a administradora, Sinart. 

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Na madrugada, há apenas os funcionários do terminal, pessoas em situação de rua em busca de um teto contra o sereno e os taxistas, que têm passado 18 horas ou mais de um dia trabalhando.

O resultado dessa rotina são a sobrecarga física e acidentes de trânsito - o número de profissionais que cochilaram ao volante triplicou nos últimos três anos, indica a Associação Geral de Taxistas (AGT). As razões para o aumento do tempo de trabalho, que costumava oscilar entre oito e dez horas, se somam. 

Desde a chegada dos carros por aplicativos a Salvador, em 2016, e mais recentemente com a pandemia, os pedidos de corridas de táxis caíram em até 50%, segundo entidades que representam a categoria.   A intensificação de transportes clandestinos também força uma competitividade que taxistas julgam desleal - estes cumprem regras que custam dinheiro, já os clandestinos podem cobrar menos por corrida pois não têm custos, exceto o combustível. De acordo com a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (Semob), 610 transportes irregulares foram removidos em 2021. Os locais de apreensão não são informados.  

20 horas de trabalho podem render só cinco corridas De manhã, o movimento de ônibus retorna e a fila de táxis anda. É hora de contar com a sorte: as corridas podem ser longas e recompensarem a noite ou para um endereço vizinho. O marasmo retorna com a oscilação dos coletivos. A média de espera por um passageiro é de quatro horas, o que mostra que 20 horas de trabalho podem render apenas cinco corridas. Taxistas se acomodam no carro (Foto: Paula Fróes/CORREIO) São 9h55 de uma quarta-feira de fevereiro quando encontramos Adauto Assunção, 64, estacionado na fila da Rodoviária. Desde as 3h, tinha feito uma corrida e cochilava no banco. “Você não passa mais de um dia aqui porque quer. O cliente te chama, por exemplo, se você já quer voltar para casa, e você vai dizer não, vai deixar desassistido?", pergunta ele, taxista desde os 18 anos. É a armadilha da espera - o melhor pode estar perto. “A Rodoviária tem uma rotatividade grande. É a chance de uma corrida mais distante. Quem chegar mais tarde vai dormir lá, esperando”, define Denis Paim, presidente da AGT. Hoje, a associação calcula uma média de trabalho de 17 horas por dia, com remuneração mensal de R$ 1,6 mil. “É um trabalho que ficou muito intenso mesmo”. Além da Rodoviária, dois dos maiores pontos de concentração de taxistas são Bom Despacho e o Aeroporto de Salvador. São, não por acaso, também locais de embarque e desembarque. Os taxistas não precisam de autorização para estacionar em diferentes pontos. 

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta 50 horas semanais como a fronteira entre um trabalho saudável e insalubre. Os taxistas cumprem até mais que o dobro  disso - 126 horas. A especialista em Economia do Trabalho Paula Freitas, mestre em Filosofia e Especialista em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, explica que os taxistas podem ser classificados como trabalhadores formais - cumprem critérios para trabalharem - autônomos. 

Até a chegada dos aplicativos de transporte, os taxistas eram responsáveis pelo transporte urbano privado. As mudanças incitam perguntas."Parecemos passar de um modelo de táxi para outro modelo, que demandará novos cuidados. Não dá para antever [o futuro], porque existem e podem surgir plataformas de táxi".A existência de plataformas digitais que intermedeiam o trabalho não é garantia de melhoria no trabalho, a notar pela exaustão à que são submetidos também os motoristas e entregadores por aplicativo. "[Mas] Se uma cooperativa [de táxi] utilizar a tecnologia para uma melhor logística para distribuição das corridas, isso pode ser fantástico para os taxistas, que otimiza o potencial de reincorporação do serviço de táxi pela sociedade". 

Menos trabalho, mais custos Diariamente, ao menos 300 taxistas circulam pelo Terminal Rodoviário. Para o dia e a noite, eles levam lanches e algo com o que possam se distrair, como palavras cruzadas. No porta-malas de um dos carros, até improvisam uma mesa de dominó. Enquanto esteve na rodoviária, a reportagem não encontrou mulheres em serviço. Todos eram homens e, aparentemente, passavam dos 40. Há, entre eles, quem tem 50 anos de praça.  Enquanto esperam, taxistas jogam dominó (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Há duas categorias de taxistas: os permissionários, donos do carro e alvará de licenciamento, como Adauto, e os auxiliares, que alugam os carros, por R$ 600 semanais, dos permissionários. Em Salvador, há 6.996 permissionários e 1.897 auxiliares. A maioria dos estacionados na Rodoviária são auxiliares: trabalham para conseguir trabalhar e, só depois, ter lucro. 

Os permissionários têm um custo fixo anual - fora o combustível - para manter o táxi regular de, pelo menos, R$ 700. Qualquer dano ao carro também precisa ser reparado. Nem todos compartilham a rotina que suportam: por discrição, timidez ou porque acham que assim é o trabalho, um ciclo de espera, renúncia e, talvez, recompensa. 

Com os gastos mais elevados pela alta do preço do combustível, estacionar o carro e esperar um cliente vale mais a pena que vagar de ponto em ponto. Há ainda uma esperança que contribui para que os taxistas invistam mais tempo nas praças: os cancelamentos em transportes por aplicativo, que refletem em um aumento de 10% a 20% na procura por táxis.

Próximo ao meio-dia, a fila do ponto da rodoviária está parada e dois taxistas conversam. Um deles, Edvaldo Santos, 57 anos, preenche o tempo com leituras. Está no fim de “Esperança Além da crise”, de Mark Finley, e gosta de Augusto Cury, escritor de livros de autoajuda. Tinha planos de estar aposentado, a essa altura, mas “a vida atrapalhou e, a cada dia, a coisa aperta”.

O outro, ao lado de Edvaldo, prefere não “se expor”. Era um idoso. Na noite anterior, trabalhou 17 horas. “É isso de domingo a domingo. Só não passo mais 24 horas porque a perna ficava muito inchada”, diz.

A Rodoviária será transferida, sem prazo definido, para Águas Claras. Os taxistas ficarão numa área semelhante à que ocupam no atual terminal.   Acidentes em alta, estatísticas no escuro Sem descanso, os acidentes de trânsito são uma consequência. Em levantamento para reportagem, a AGT mostrou um aumento dos acidentes provocados por sono ao volante, o que, para a associação, é reflexo das “altas cargas horárias” que os motoristas precisam cumprir.

De 2019, antes da pandemia, a 2020, houve o primeiro crescimento: de três para 23 casos. Em 2021, 21 taxistas cochilaram enquanto dirigiam. Até fevereiro, oito taxistas dormiram ao volante. Os acidentes aconteceram na Paralela, BR-324, Sete Portas, Orla e Suburbana. Não há informações sobre passageiros. É possível que haja acidentes não informados à AGT.

A saúde dos taxistas não tem sido estudada na Bahia. Hoje, há um esforço maior para compreender as consequências do trabalho dos motoristas e entregadores por aplicativo. E não é só o sono que causa impactos na saúde, em cargas horárias excessivas de trabalho.

Há ainda, riscos de diabetes - pelo sedentarismo -, hipertensão arterial e transtornos mentais."Mas falta estatísticas [a nível governamental] e há uma carência do ponto de vista da previdência social, porque são profissionais que precisam fazer a autogestão e não podem só deixar de trabalhar, porque não serão remunerados se ficarem em casa", explica Paulo Pena, médico, pesquisador com foco em Saúde do Trabalhador e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).Na falta de estatísticas produzidas pelo governo, é a realidade dos dias que denuncia o cansaço e adoecimento de taxistas que não têm hora de voltar para casa.