Pernambucana investe R$40 mil e ganha pela 5ª vez concurso de fantasia LGBT em Salvador

Teve humor, polêmica, glamour e protesto

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  • Raquel Saraiva

Publicado em 13 de fevereiro de 2018 às 07:41

- Atualizado há um ano

O 21º Concurso de Fantasia LGBT do Carnaval de Salvador, organizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) lotou a Praça Municipal, em Salvador. Apresentações bem produzidas sob regência de DJs e shows de coletivos de atores transformistas animaram a plateia. O evento foi apresentado por Bagagerier Spilberg e Michelle Loren, atores transformistas.

Dez jurados escolheram as três melhores fantasias em duas categorias: originalidade, que foi a mais concorrida, com 15 participantes, e fantasias de luxo, que foi uma votação classificatória, já que apenas três pessoas concorreram. Concurso movimentou a Praça Municipal (Foto: Felipe Martins/Divulgação) O concurso mais aguardado foi o da Fantasia de Luxo. A vencedora, a pernambucana Sandra Farias, é pentacampeã consecutiva, com sua fantasia em alusão aos antigos carnavais. “É uma homenagem ao carnaval pernambucano, ao baiano, àquele carnaval de corso e troças do nordeste”, explica.

Sandra investiu mais de R$ 40 mil  e seis meses de trabalho na sua fantasia, a única que arrancou suspiros da plateia. O prêmio que ela ganhou foi de R$ 8 mil, 20% do valor da fantasia.

“Faço isso pelo prazer do carnaval. Hoje, no Brasil, existem poucas carnavalescas como eu”. A fantasia de 125 kg veio de Recife em 15 pacotes transportados via avião e ônibus.

Fantasia de Sandra pesa 125 kg Foto: Felipe Martins/Divulgação Criatividade As 15 fantasias que concorriam aos prêmios de Originalidade estavam, em sua maioria, muito elaboradas e criativas. Muitos pernambucanos arrasaram nos figurinos e apresentações - o recifense Washington Santos, 22, se inspirou no manguebeat de Chico Science para desfilar o traje “Fui no mangue catar lixo, pegar caranguejo e conversar com urubu”. A performance de Washington ao som de maracatu foram uma das melhores surpresas da noite.

Jorge Barboza veio de Itabiçuna, cidade da região metropolitana de Recife, para trazer para o concurso Agnes, a bruxa do pântano. A fantasia, aparentemente simples, feita com muita palha, surpreendeu na apresentação pelo capricho e riqueza nos detalhes - até fumaça saía do caldeirão da assustadora bruxa.

A viagem de Severino Queiroga, 51, de Pernambuco à Salvador, trouxe uma das fantasias mais encantadoras da noite. Ela trazia o Homem da Meia-Noite e o Galo da Madrugada, símbolos do carnaval de Olinda e Recife, respectivamente, além de uma baiana de acarajé, símbolo da Bahia. Tudo foi confeccionado com milhares de colheres coloridas já utilizadas e palitos de picolé. O trabalho minucioso e impecável levou cinco meses para ser concluído.  

O baiano Paulo Rick, 31, impressionou com a fantasia super elaborada de Carmem Miranda, feita por ele próprio com garrafas pet e papelão durante três semanas. Na apresentação mágica, os tons dourados e prateados da fantasia de saia curta se transformavam em um novo traje, longo e com as cores e formas da bandeira do Brasil. Um arraso!

Simplicidade Enquanto a maioria chamava atenção pelo trabalho dedicado às fantasias, outros se destacaram pelo, digamos, improviso. Edalva Miranda, 81, não parava de piscar seus enormes cílios postiços para explicar a fantasia. “Me encontrei quando assisti Frozen, gosto de chiqueza!”. Ela conta que participa do concurso “todo ano”.

A fantasia feita de sacos plásticos, isopor e cami parecia muito simples à primeira vista - mas uma análise mais detalhada mostrava os sapatinhos de “cristal” trabalhados no papel laminado e as bolinhas de sabão que saíam como mágica da manga da princesa Elsa. Impossível não simpatizar com a graça da senhorinha e delicadeza da fantasia.

Eis que o polêmico - e quase eterno - rei Momo 2015 e 2017 Allan Nery, que quase foi reempossado em 2018, aparece com a fantasia “Mamãe eu quero mamar” para protestar contra a situação do Brasil. A apresentação consistiu num desfile ao som da marchinha - adivinhe só - Mamãe eu quero mamar, enquanto Alan atirava notas falsas na plateia. A criançada curtiu. Foto: Marcelo Guedes/ Ag Haack Um vestido de chita, uma máscara simples, peitos falsos por fora do vestido, uma boneca sem roupa e caixas com dinheiro falso em volta do vestido foram suficientes para o rei momo deposto ganhar o segundo lugar do concurso de originalidade, desbancando 13 concorrentes - e trocando suas notas falsas pelo prêmio de R$ 5 mil.

As concorrentes e muitos organizadores não gostaram - e o burburinho nos bastidores era de que os jurados não sabiam o que significava originalidade de uma fantasia. O terceiro lugar, que ganhou R$ 4 mil, ficou para a fantasia de Baobá, cujo desfile foi encantador.

Layane Santos, 39, estava deslumbrante e personificando a árvore centenária na sua fantasia. Foram seis meses cortando as folhas de tecido no formato exato das folhas do baobá. “Viemos para ganhar”, ela ri antes do desfile, mostrando as luzes de LED em volta do tronco - o fator surpresa da fantasia arrancou aplausos da plateia.

Apresentações O público vibrou a noite toda - e a cerimônia durou pelo menos quatro horas. A música escolhida, a performance, a dança, o figurino - ou a ausência dele: tudo empolgava a plateia. Crianças e adultos se amontoaram em frente ao prédio da prefeitura para participar do espetáculo.

É muito significativo ter um evento aberto com gays, trans, lésbicas sendo ovacionados em frente a prédios centenários de Salvador e ao lado de um dos monumentos mais famosos do Brasil, o Elevador Lacerda. Embora os símbolos sejam importantes, a realidade vivida pela população LGBT é bem diferente.

Teve cover de Pabllo Vittar, de Elza Soares e outros, coreografias super ensaiadas e apresentações bem produzidas, a luta da população LBGT+ contra a homofobia não foi esquecida. “Todos os deuses pregam amor, então vamos pregar o amor”, disse uma das drags após se apresentar. Além da intolerância religiosa, a violência que mata uma trans ou travesti a cada 44 dias no estado não foi esquecida.

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Protesto Uma das apresentações mais marcantes foi a de John Quer Vara, de 34 anos. Ela participava do concurso pela quinta vez e nessa edição optou por fazer uma homenagem às mulheres trans mortas diariamente no Brasil. Nenhuma fantasia foi mais impactante que a camiseta amarela, short jeans, peruca loira e sangue cenográfico no corpo. A homenagem a Dandara venceu na categoria originalidade (Foto: Felipe Martins/Divulgação) “Eu trago meu corpo como protesto”, conta John, segurando um carrinho de mão feito de madeira. Impossível não pensar no corpo de Dandara, à qual John fazia alusão, ensanguentado dentro do carrinho. A travesti Dandara, de 42 anos, foi espancada, torturada, apedrejada e morta a tiros por oito homens em 15 de fevereiro de 2017, no bairro Bom Jardim, em Fortaleza (CE).  

A apresentação dela foi forte, segura, silenciosa e arrancou aplausos da plateia. Enquanto Dandara andava pela passarela, ao invés de música, uma voz feminina embalava a performance com as estatísticas levantadas pelo GGB sobre a violência e morte da população LBGT no Brasil.

Em 2017, 445 gays, lésbicas, transsexuais e bissexuais foram mortos no Brasil vítimas da homotransfobia - uma morte a cada 19 horas. O dado leva o país ao lamentável primeiro lugar no pódio de crimes contra as minorias sexuais no mundo.

John mora no município de Nazaré das Farinhas, localizado no recôncavo baiano, a cerca de 64 km de Salvador, e veio sozinha para o concurso. “Eu escolhi protestar aqui porque o público vê a fantasia mas não vê a realidade”, conta.

Ela é decoradora de eventos e reconhece que tem uma realidade muito diferente da maioria das trans brasileiras: tem um emprego formal e apoio da família. O relatório divulgado pelo GGB em 2018 mostra que 23 das 25 trans mortas na Bahia em 2017 eram trabalhadoras sexuais.

John lembra que já participou do concurso outras quatro vezes, mas que nunca tinha optado por um protesto. Ela diz que a homenagem foi feita para Dandara e todas as outras mulheres que são mortas diariamente, vítimas de transfobia ou de machismo. “Fiz o protesto para que o caso não seja esquecido, como tantos outros foram”.

“Dandara” venceu o concurso de originalidade. “Eu não esperava ganhar, queria mexer com o sentimento das pessoas”, explica John, que foi ao concurso sem um acompanhante. As duas vencedoras da noite são mulheres trans.“Isso demonstra a sensibilidades dos jurados num concurso de originalidade. Mostra que eles consideraram que um dos casos de transfobia mais graves do ano passado merecia esse destaque”, comentou o antropólogo Luiz Mott, fundador do GGB.Impossível não pensar que as pessoas que estavam ali se apresentando viram estatística todos os dias simplesmente por serem quem são. Não dá para se divertir no evento e ignorar o preconceito que a população LGBT sofre diariamente, que gera sofrimento e mortes. O que é mostrado ali, no dia a dia é escondido nos guetos e nichos frequentados majoritariamente pelo público LBGT - já que outros espaços não são receptivos a essas pessoas nem na platéia e nem no palco.

O concurso se mostrou muito maior do que o espetáculo de apresentações e fantasias que ali é mostrado. Ele é uma celebração pela vida e pelo orgulho de se assumir como quiser diante de uma sociedade que, depois do carnaval, se mostra opressora e assassina com as minorias sexuais. Recomendo colocar o concurso na lista de programas imperdíveis no próximo ano.

Vencedores(as):

Originalidade

1 - Dandara (John Quer Vara) - prêmio: R$ 6 mil

2 - Mamãe eu quero mamar (Allan Nery) - prêmio: R$ 5 mil

3 - O Baobá Sagrado (Layane Santos) - prêmio: R$ 4 mil

Fantasia de Luxo

1 - Oh que saudade (Sandra Farias) - prêmio: R$ 8 mil

2 - Encantos do Egito (Geraldo Pontes) - prêmio R$ 7 mil

3 - Montesuma, o imperador asteca (Jorge Barboza) - prêmio R$ 6 mil