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Sob liderança feminina, Gamboa de Baixo prospera e vira novo ponto turístico


 

Cenário de novela, seriado e clipes, comunidade pesqueira alvo de preconceito e violência tem conquistado avanços no embalo de mulheres empreendedoras

  • Da Redação

Publicado em 09/07/2022 às 06:00:00
Atualizado em 19/05/2023 às 11:16:23
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Simone Santos, do Acarajé da Môny, na beira-mar da Gamboa de Baixo (Foto: Marina Silva/CORREIO) Inaugurado há 200 anos, o Forte de São Paulo da Gamboa contava com uma formidável peça de artilharia no final do século 19, a qual fora carinhosamente apelidada de ‘Vovó’. A velhinha – um canhão Armstrong calibre 250, pesando 13 toneladas – transformava o lugar numa das melhores fortificações da Bahia no período, e seu poder de fogo era tão grande que, quando disparada, destruía vidraças na vizinhança. Na sua estreia, em 1875, diz-se que reduziu uma secular mangueira em Mar Grande “a um montão de lenha”.

Embora ‘Vovó’ (há quem chame de ‘Vovô’) tenha passado a morar na frente do Quartel da Mouraria, a potência dela continua intacta em seus netos e, principalmente, netas na Gamboa de Baixo. São mulheres guerreiras da comunidade que comandam as ações, após décadas de resistência ante a ausência do poder público e o preconceito – chaga que também tem poder de fogo destruidor, inclusive letal.

De quatro anos para cá, a Gamboa passou a se reconfigurar num espaço requisitado e mais frequentado, locação de novela da Globo, seriado da Netflix, clipe de Anitta, e, com o fluxo de visitantes cada vez mais intenso, novo ponto turístico da cidade.

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O pioneiro Bar da Mônica, junto com o Bar Odoyá, o Point Brisa do Mar, o Bar Piranha do Mar, o Acarajé da Môny e o Drinks da Ruana são os principais estabelecimentos, todos sob liderança feminina, que atendem novos visitantes (da cidade e do mundo), com boa comida e uns bons drinks, gerando emprego e renda na favela encravada entre o mar e o asfalto. Assim como as donas, os empregados são gente da vizinhança, e os pescados que pintam nos pratos da clientela são comprados na mão de quem trabalha ali em frente.

Instado A conquista do front que permitiu o ingresso nessa nova era da Gamboa veio através de disparos despretensiosos nas redes sociais, em novembro de 2018, após a criação de um perfil do Bar da Mônica no Instagram. No diário de bordo dessa invasão de aliados (novos clientes) também consta a comemoração de um aniversário já no mês seguinte. Quem explica essa cronologia é a empresária Mônica Arcela, dona do bar, que até então vinha há mais de 15 anos atendendo somente vizinhos e chegados de bairros próximos.“Realmente, aqui não tinha fluxo. Começou quando duas sobrinhas minhas resolveram postar no Insta as comidas que eu servia, dizendo que estavam no melhor lugar de Salvador. Depois, uma repórter conheceu o bar, gostou e resolveu comemorar o aniversário aqui. Pronto! Depois que ela veio com os convidados, deu uma alavancada boa”, explica Mônica, que de uma hora para outra multiplicou a clientela numa quantidade que nem consegue dimensionar.“Antigamente, o perfil de cliente aqui era pescador, o pessoal dos arredores como Garcia, Politeama, da Preguiça. Hoje em dia vem gente de tudo que é canto do Brasil e do mundo”, explica. A memória vai tão bem que até hoje Mônica lembra da antiga receita da falta de frequentadores: “As pessoas não vinham porque a Gamboa era marginalizada. Devido à mídia, a Gamboa era mal vista”. Ela conta que, junto com os colaboradores, trabalhou para mudar essa visão deturpada e atrair mais visitantes, sem esquecer da comunidade, onde moram cerca de 300 famílias.

“Todo pescado que eu pego, em termo de peixe, lagosta e polvo, é da Gamboa. A única coisa que eu não pego aqui é o camarão, porque não pescamos camarão. E a economia da Gamboa hoje praticamente gira em torno do bar: barqueiro, pescador e outros. Quando eu fecho aqui, é um transtorno”, admite Mônica, que chega a empregar 12 pessoas nos períodos mais movimentados. 

No dia em que a jornalista e especialista em mídias digitais Cláudia Castro foi comemorar seus 39 anos, ela convocou cerca de 20 combatentes, mas teve que lidar com algumas deserções. “Acho que umas cinco pessoas disseram que não iam porque era na Gamboa”, relembra a comunicadora sobre o sabadão ensolarado de 8 de dezembro de 2018 (Conceição da Praia), quando 12 colegas grandões sem medo baixaram no bar e ajudaram a mudar a história do lugar.

“Eu comecei a enviar os convites para as pessoas, fiz um mapinha explicando como era pra chegar lá, e muitas ficaram apreensivas. Por se tratar de uma comunidade, perguntaram se não era perigoso, eu falei ‘não, pode ir’. Algumas não foram, mas quem foi amou a comida, o local”, recorda. Entre os convidados da jornalista havia outros comunicadores, que encantados com o novo pico, viraram divulgadores espontâneos.

Famosos na área Se os eventos do final de 2018 já tinham dado uma movimentada na área (antes inclusive teve gravação da novela ‘Segundo Sol’ e de clipe de Kannário e Marcelo Falcão), o que acontece em janeiro de 2019 vem para abrir de vez a porteira. Coube mais uma vez a uma mulher, esta Made in Honório, colocar a comunidade aos olhos do mundo.

Com imagens feitas na prainha do Solar do Unhão (comunidade vizinha) e no Bar da Mônica, o clipe de ‘Bola Rebola’ é, para grande parte dos moradores, o marco principal da mudança de perspectiva em relação às duas comunidades, que são separadas pela antiga fortificação. “O que mudou tudo foi o clipe de Anitta. Estourou de vez”, crava Vanessa Santos, 42, proprietária do Point Brisa do Mar sobre a parceria da funkeira com J. Balvin, Tropkillaz e Mc Zaac que conta mais de 185 milhões de visualizações só no YouTube.“E teve agora outra coisa que revolucionou isso daqui, que foi a filmagem do seriado ‘Santo’ [Netflix], com Bruno Gagliasso, e a cerveja ele tomou foi aqui, no meu estabelecimento. As meninas falaram: ‘Vanessa, Bruno está pedindo uma cerveja’, eu falei: ‘é mentira’. Aí ele subiu e disse: ‘Vanessa, por favor, me dê uma Heineken’. Quase caí pra trás. Pense numa pessoa humilde”, recorda a dona do bar que fica bem ao lado da Mansão Morada dos Cardeais.A clientela no famoso ‘prédio de Ivete’, aliás, é cada vez mais fidelizada. “Os ‘barão’ pedem muito. Mandam no meu Instagram, WhatsApp. A gente leva por aqui mesmo ou eu mando entregar lá. O preço pra eles é o mesmo de todo mundo, né? Pedem muita batata frita, moqueca, camarão ao alho e óleo”.  Vanessa Santos, moradora e proprietária do Point Brisa do Mar, bar que costuma atender vizinhos da Morada dos Cardeais (Foto: Marina Silva/CORREIO) Quando está na área, Ivete Sangalo também faz seus pedidos, mas normalmente quem atende é a irmã de Vanessa, a baiana de acarajé Simone Santos, 47. “Ivete pede o acarajé direto. Direto mesmo! Uma pessoa pede por ela, manda pro zap de minha filha. O contato é pelo WhatsApp, ou Instagram. Ivete faz o pix”, brinca a comandante do Acarajé da Môny, único tabuleiro da comunidade, com 13 anos de serviços prestados. Essa fama de ser “uma das baianas preferidas de Ivete”, inclusive, já a faz receber clientes curiosos em saber o que é que o seu quitute tem de diferente. “Eu tô sendo reconhecida agora”, comemora.

Reivindicações A comunidade também teve algo a comemorar com a passagem da Netflix, que deixou como ‘contrapartida’ pelo apoio da comunidade nas gravações, em outubro passado,  uma cobertura ornada de palha, que serve para amenizar o calor em dois bares.

Vinte anos antes, uma outra contrapartida, desta vez da Odebrecht, ajudou a garantir a construção da lavanderia da comunidade, como compensação para a demolição de casas na Gamboa visando a construção da Morada dos Cardeais.

Parece pouco, mas diante do histórico de abandono do poder público e da própria sociedade, desde a inauguração da Avenida Lafayete Coutinho, a Contorno, há exatos 60 anos, é alguma coisa.

Tal descaso na parte sanitária, por exemplo, resultou num surto de cólera, há 30 anos, que vem a ser, por iniciativa das mulheres locais, o início de um processo de mobilização que tem ajudado a tornar as coisas menos piores por ali. “As mulheres foram as mentoras da associação de moradores, deram o passo inicial quando no surto do cólera, em 1992, pessoas morreram. São elas que começam a organizar a comunidade para buscar melhorias habitacionais e, principalmente, por direitos, como água encanada, saneamento básico”, destaca Ana Caminha, 48, uma das fundadoras e atual presidente da Associação Amigos de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo, que homenageia uma das vítimas do cólera. Antes da associação, poucas casas eram de alvenaria, e além de não haver sistema de abastecimento de água, também não tinha energia elétrica, entre outras carências inacreditáveis para uma comunidade encravada no Centro da capital baiana.

Atualmente, a Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF) desenvolve um novo Plano Urbanístico para a Gamboa, além de um projeto habitacional para as 20 famílias que vivem no Forte de São Paulo, “todos dois já construídos” em parceria com a comunidade, segundo a presidente do órgão, Tânia Scofield. “Também fizemos o projeto de urbanização do Cais da Gamboa. A Sucop (Ordem Pública) já publicou o edital de licitação para a obra, que deve ser iniciada em outubro. Estamos também elaborando a melhoria da Av. Contorno, com o objetivo de garantir aos moradores da Gamboa a caminhabilidade e travessia de forma segura", complementa.

Enquanto começam a garantir mais direitos, a mulherada também atua no front com projetos sociais, a exemplo dos grupos de dança e de capoeira, ou mesmo apoiando ações como o Pérolas da Gamboa, que ensina jiu-jítsu a cerca de 50 crianças. “Nosso objetivo é formar campeões dentro e fora do tatame”, explica o advogado e professor voluntário Igor Arcanjo, responsável por calibrar a potência de mais uma geração de netas e netos de ‘Vovó’, que já possuem um alvo definido: um futuro bem melhor.

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Liderança teme que turismo mude identidade do local Mais do que não ter acesso a serviços essenciais, a Gamboa de Baixo sempre conviveu com o preconceito e a violência vindos de fora – vide a morte de três jovens negros, numa ação da Polícia Militar, em março, sobre a qual o Ministério Público estadual acaba de devolver os inquéritos à Polícia Civil e à Corregedoria da PM para a realização de novas diligências.“Falar o nome da Gamboa pra cidade era sinônimo de medo, de perigo, e a gente não tinha sequer o direito de matricular os filhos na escola. Tínhamos que negar a identidade da comunidade, pois os diretores de escola não aceitavam os moradores”, relembra Ana Caminha sobre os anos pré-levante feminino.A colega de associação, Luciene Rosa, é outra que sempre rechaçou a má fama. “Para nós, moradores, isso aqui nunca foi perigoso. Devido à mídia, mostrando operação policial e etc, era uma região muito discriminada. Mas aqui é uma comunidade de pescadores que é uma família”, comenta.

Segundo o arquiteto e urbanista Fabrício Zanoli, que pesquisou e atuou em projetos sobre a Gamboa, desde o século 16 a área já tinha esse perfil voltado para a pesca, e durante o Brasil Império, a atividade era inclusive regulamentada pela Coroa. Esse perfil, ironicamente, só foi mantido por conta do ‘isolamento’ provocado pela construção da avenida.“Na parte de baixo da Contorno, você tem duas comunidades com características totalmente distintas: a Gamboa, que tem uma tradição de pesca mais forte, e o Solar do Unhão, que teve uma mudança de perfil: tem mais artistas, alguns estrangeiros”, delimita. Para Ana Caminha, esse perfil agora está ameaçado, diante do avanço do turismo, que traz prosperidade econômica, mas põe em risco a identidade local. “O aumento desse fluxo é positivo, sim. Aumentou e muito a questão da renda, mas também é preocupante porque a gente tem que ter o cuidado de que essa chegada de visitantes seja criteriosa, que não seja uma tomada da Gamboa, descaracterizando a nossa identidade. O crescimento do turismo, se não for de forma controlada, pode apagar essa comunidade tradicional da pesca”, alerta ela, que luta para garantir, como salvaguarda, a regularização da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) da Gamboa, como comunidade pesqueira.

Segundo a presidente da FMLF, Tânia Scofield, esse processo está em andamento sob o comando da própria fundação, e só aguarda o Plano Urbanístico e a regularização fundiária, que está sendo executada pela Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinfra). "Quando concluída a regularização fundiária faremos uma última reunião com a comunidade para o fechamento do processo. No meu entendimento, através de decreto formalizaremos a regularização da Zeis da Gamboa de Baixo", adianta. 

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Como chegar à beira-mar da Gamboa:Barco - Entrando pelo portão do Museu de Arte Moderna (MAM), antes de descer a ladeira, você pega a esquerda, em direção à comunidade do Solar do Unhão, onde também há boas opções de bares e restaurantes, além da prainha de pedras. Nela, você pode contratar um dos serviços de transporte por barco. A rota foi aberta pela pescadora e mergulhadora Nala Rodrigues, 23, que começou a fazer o itinerário há cerca de quatro anos. “Me sinto orgulhosa por ser mulher e estar em uma área que, infelizmente, os homens ganham mais reconhecimento”, conta a jovem, que cobra atualmente R$ 10 para ir e R$ 10 para voltar da região do Bar da Mônica. Para quem quiser fazer pré-agendamento, é possível com ela pelo Instagram @nalarodrigues, mas por lá também dá pra pegar o contato de outros barqueiros que fazem o mesmo serviço. Com pré-agendamento, é possível sair também da Praia da Preguiça ou da Prainha do MAM. “No Solar do Unhão é ponto fixo, todos os dias”, explica Nala. No verão, em dias de pico, chega a ter 25 pessoas fazendo o transporte. “Fica florido de barco na beira da praia”, comenta.  A barqueira Ângela faz a travessia entre o Solar do Unhão e a região do Bar da Mônica (Foto: Marina Silva/CORREIO) 'Prédio de Ivete' - Ao lado da entrada de baixo do Edifício Mansão Morada dos Cardeais, você tem acesso à comunidade. Ao lado de algumas poucas vagas de estacionamento, basta descer a escada, e seguir entre as casas, quase sempre virando à esquerda.  Escadaria - Vindo pela Rua Gamboa de Cima (em frente ao Forte de São Pedro), acesse a escadaria que passa embaixo da Avenida Contorno. Como não há sinalização nas vielas, o jeito é recorrer ao boca a boca, para chegar à área dos bares.