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Conversa de poetas


 

  • Nelson Cadena

Publicado em 19/07/2019 às 05:03:00
Atualizado em 20/04/2023 às 01:06:05
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Nas madrugadas frias do outono baiano, Castro Alves não se conteve diante do braço erguido de Gregório de Mattos, do outro lado da praça, bem ao lado do Cine Glauber, na escuridão e a distância lhe pareceu enxergar outra coisa.

- Diga aí Boca do Inferno, você está me dando dedo ou é impressão minha?

- Não está enxergando direito colega? É o braço levantado, me esculpiram tão pequenininho nesse canto que possa ser que de longe e no escuro a mão no alto pareça que estou dando dedo. E sabe uma coisa? É mesmo. O escultor captou meu pensamento. Nada a ver com você.

- Ainda bem, pensei que fosse inveja sem motivo. Você, Boca, tem o privilégio de ver o mar, já eu estou aqui tomando fresco nas costas quase um século, só enxergo edifícios e casarões velhos e me fizeram com o braço esticado, a tendinite aqui já se instalou há muito tempo.

- A inveja, no meu caso, se justifica. Repare. Deram o nome da Praça a você e os turistas se importam mais com usted do que comigo, não é justo. Também sou um poeta de escol, você me conhece.

- Em compensação Boca, você está mais protegido. Eu aqui já levei muita mijada no pé, no Carnaval, e quando quis me divertir -  o Tati Moreno e Fernando Coelho até colocaram uma mortalha em mim -  a imprensa conservadora e as academias mandaram tirar. Tive que engolir a desfeita.

- Chora de barriga cheia. Você ganhou homenagens de Caetano, Armandinho e Moraes Moreira. Praça do Poeta e outras referências, essas coisas. E eu? Nunca ninguém cantou uma música me homenageando, fui preterido por todos os compositores, nem o minitrio repara em mim. É uma praga.

- Óbvio, Boca. Você foi dizer “Triste Bahia! Oh quão dissemelhante”. O povo quer alegria. E se Caetano falou que a Praça Castro Alves é do Povo não foi por mim, é porque rimava com frevo novo. Entende?

- Nem vem com essa. Se for assim, Armandinho e Moraes poderiam ter rimado: “A praça do poeta” com buceta e não com “a gente se completa”. Ai sim eu ia me sentir de certo modo lembrado.

- Esqueça o Carnaval colega. O que importa é que você foi perpetuado em bronze que nem eu, e estamos juntos, ora conversando, um frente ao outro. Você pequenininho, tudo bem, não faz mal, a grandeza está na sua obra.

- Papo furado. Você é nome de um município e do principal teatro desta josta e outras coisas e eu? Já ouviu falar na cidade Gregório de Mattos? E ainda me deram o apelido de Boca do Inferno. De boas intenções minha boca está cheia.

- Sabe uma coisa Gregório, você disse tudo, o problema está no seu nome. Mantenha o braço ereto, eles têm que lhe engolir e saber, ou pelo menos suspeitar, que você está dando dedo mesmo.