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'O sentimento de humilhação é parte do combustível para a radicalização', diz pesquisadora


 

Hannah Bellini viveu 15 anos na Inglaterra e estudou, já no Brasil, a adesão de jovens ocidentais ao Estado Islâmico

Publicado em 26/09/2021 às 07:00:00
Atualizado em 22/04/2023 às 15:30:09
. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Há 20 anos, o mundo observava atônito as imagens dos atentados às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, nos Estados Unidos. Eram 9h46, horário de Brasília, quando o primeiro avião atingiu a Torre Norte. Vinte minutos depois, as TVs faziam transmissões ao vivo do local, quando acabaram mostrando o instante exato em que o segundo avião atingiu a Torre Sul. Se os atentados de 11 de Setembro marcaram o imaginário de gente do mundo todo, imagina o efeito que não causaram sobre jovens da segunda e terceira gerações de imigrantes de origem muçulmana pelo mundo.

Muçulmanos e seus descendentes passaram a ser alvo de desconfiança, enquanto a religião, o Islã, virou sinônimo de radicalismo e terror no imaginário ocidental. Os mais jovens, nascidos na década de 1990, sentiram com força o impacto das humilhações e da desconfiança. E isso, talvez, possa ajudar a explicar que sentimentos levaram jovens a se associaram, mais tarde, a grupos extremistas como o Estado Islâmico, nos anos que sucederam tudo isso.

As trajetórias de Abdel-Majed Abdel Mary, Mohammed Emw Azi, Junaid Hussain e Tania Joya Choudhury, jovens muçulmanos vivendo na Inglaterra, são o foco da tese de doutorado da pesquisadora baiana Hannah Bellini. O trabalho, defendido em dezembro passado pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Pós-Cultura/Ufba) foi um dos vencedores do Prêmio Capes de Tese 2021."Essa geração sofreu o impacto da introdução do Islã e dos muçulmanos no imaginário coletivo ocidental com o 11 de Setembro, que implicou um senso de desconforto e desconfiança em relação ao grupo. O sentimento de humilhação, associado ao lugar ocupado pelo mundo islâmico na contemporaneidade, também é um fator importante na crise de identidade e de lealdade que é parte do combustível para o processo de radicalização", afirma Hannah.O interesse da pequsiadora sobre o tema começou quando ela ainda morava em Londres. Lá, em 2009, ela defendeu sua dissertação de mestrado, na qual investigava como as chamadas novas mídias serviam como forma de comunicação e de intercâmbio de opiniões em locais onde as mídias convencionais eram fortemente controladas - o foco daquele trabalho tinha sido a Arábia Saudita.

Mas, qundo o Estado Islâmico se mostrou um fenônemo - inclusive nessas mídias - Hannah já estava no Brasil. "Quando os seguidores do grupo passaram a se multiplicar nas plataformas digitais, comecei a acompanhar o desenvolvimento das redes de comunicação que surgiam, seguindo, com atenção especial, os perfis de autodeclarados apoiadores que se comunicavam em inglês", afirma.

Nesta entrevista, Hannah fala sobre como a imprensa contribuiu para a construção de um imaginário em que o Islã e o radicalismo são separados por uma linha tênue, como os sentimentos humilhação e uma necessidade de pertencimento em jovens muçulmanos acabaram levando à radicalização após o 11 de Setembro e os eventos que o sucederam e, ainda, de que maneira o uso das mídias sociais por grupos extremistas atuou para ganhar seguidores fora de suas zonas de atuação.

Você ainda estava na Inglaterra quando começou a pesquisar esse tema? O que te chamou a atenção na relação de grupos islâmicos com o Ocidente? Embora eu tenha iniciado meu interesse pelo tema na Inglaterra a partir da pesquisa de mestrado, na qual explorei a influência das então chamadas “novas mídias” na disseminação de ideias e na ação política na Arábia Saudita, eu já estava no Brasil no momento em que o fenômeno do Estado Islâmico, foco da pesquisa de doutorado, começou a se fazer mais visível. Quando os seguidores do grupo passaram a se multiplicar nas plataformas digitais, comecei a acompanhar o desenvolvimento das redes de comunicação que surgiam, seguindo, com atenção especial, os perfis de autodeclarados apoiadores que se comunicavam em inglês. O trabalho, então, foi motivado pela pergunta original sobre quem eram essas pessoas, apoiadoras do grupo no Ocidente, e então na Inglaterra, e o que as motivava.

Na verdade, não acredito que haja uma relação, já que existe uma variedade enorme de grupos islâmicos e, poderíamos dizer, também, de “Ocidentes” mas, de forma geral, grupos militantes islâmicos como o Estado Islâmico se entendem como um oposto máximo à noção simbólica de “Ocidente”. Mas é uma relação de diálogo, de auto definição e alteridade constante, historicamente situada e mútua. Como o trabalho enfoca indivíduos ocidentais que se vincularam ao grupo, a intenção era realizar uma investigação que dissesse tanto sobre nós quanto sobre eles, que refletisse sobre essa negociação entre as identidades do “Ocidente” e do “Oriente” e nos convocasse para um olhar menos informado por rigidez, na ânsia por demarcações e classificações definitivas sobre essa relação.Porque, embora haja essa dicotomia, acho importante ressaltar que grupos como o Estado Islâmico, por exemplo, não são externos ao nosso mundo, mas compartilham e incorporam elementos do nosso imaginário, reverberam variantes transculturais, e essa dinâmica é especialmente notável na sua dimensão comunicacional, onde se observa a incorporação e valorização de elementos da cultura pop contemporânea.As circunstâncias envolvidas no surgimento de grupos islâmicos como o EI apontam também para uma interconexão global, em que intervenções militares e guerras de narrativas se corporificam em outros eventos, o que é notável também na crise atual no Afeganistão. Pelo prêmio, Hannah recebe uma bolsa de pós-doutorado em instituição nacional (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Qual foi o impacto dos atentados de 11 de setembro - que aliás, completaram 20 anos esse mês - nessa relação? Quem foram as pessoas que passaram a ser 'tocadas', digamos assim, por essas questões mais relacionadas à cultura do Islã? Embora se diga com frequência que os atentados do 11 de setembro mudaram o mundo, as respostas ao atentado, mais notadamente as subsequentes invasões do Afeganistão e do Iraque, foram tão centrais nessa dinâmica quanto os ataques em si. A narrativa que se instaurou com a chamada “guerra ao terror”, o “nós contra eles”, não só alterou profundamente a relação do chamado “mundo islâmico” com o “Ocidente”, mas acabou por empoderar as influências mais sectárias e nocivas em todos os campos. A midiatização vertiginosa dos acontecimentos e seus desdobramentos contribuíram para uma naturalização, no imaginário hegemônico ocidental, da noção de que a fronteira entre o Islã e o extremismo violento é tênue, alterando a percepção sobre uma identidade religiosa compartilhada por 1.8 bilhão de pessoas, causando fricção e comprometendo a já frágil convivência religiosa em uma série de países no mundo.Com toda a certeza essas questões tiveram enorme influência no imaginário dos jovens que eu analisei na pesquisa, segunda e terceira gerações de imigrantes de origem muçulmana na Inglaterra, os tornando mais suscetíveis a discursos radicais. Essa geração sofreu o impacto da introdução do Islã e dos muçulmanos no imaginário coletivo ocidental com o 11 de setembro, que implicou um senso de desconforto e desconfiança em relação ao grupo. O sentimento de humilhação, associado ao lugar ocupado pelo mundo islâmico na contemporaneidade, também é um fator importante na crise de identidade e de lealdade que é parte do combustível para o processo de radicalização.É importante observar, no entanto, que esse processo não é fundamentalmente agenciado por uma radicalização de cunho religioso-teológico, já que essas pessoas como as que eu enfoquei no trabalho não necessariamente conhecem ou praticam o Islã normativo, mas que é melhor compreendido como um processo em que uma dimensão simbolicamente associada ao Islã é incorporada a um contexto já antagônico e contencioso. No termo cunhado por Roy, não se trata de uma radicalização do Islã, mas de uma islamização do radicalismo. No trabalho, por exemplo, não entendo a religião como o motor principal do processo de radicalização, não só porque esses jovens não eram particularmente religiosos, mas também porque que as fronteiras entre as motivações religiosas e políticas é tênue e, não menos importante, para grupos como o EI, não há diferença clara entre objetivos políticos e religiosos.

Como isso impacta a vida não só dessas pessoas, mas de seus familiares e pessoas próximas que não seguem os mesmos princípios? O processo de atribuição de estigma e o estereótipo não se limitam, naturalmente, ao número muito reduzido de pessoas que simpatizam com o extremismo violento, nem afetam só os seus familiares e pessoas próximas, mas acabam por gerar desconfiança e preconceito contra todos que, de alguma forma, têm características em comum com elas, seja uma identidade religiosa, étnica ou racial. Exatamente como os ataques do 11 de setembro e seus desdobramentos foram responsáveis por alterar a percepção a respeito de 1.8 bilhões de pessoas, o surgimento de grupos como o Estado Islâmico, a grande midiatização do fenômeno e a adesão de indivíduos ocidentais a eles alteraram de forma significativa as relações em sociedades multiculturais, gerando tensões na convivência da sociedade mais ampla com as comunidades muçulmanas. E esse, inclusive, era um dos principais objetivos do grupo com a realização de ataques terroristas, por exemplo. A experiência de racismo e xenofobia decorrente dessa tensão é um fator de extrema relevância no processo de radicalização de jovens e incorporado às narrativas de grupos como o EI.

De 2001 para cá, as formas de comunicação mudaram bastante. Em que momento você percebe que as narrativas de grupos como o Estado Islâmico passaram a alcançar outros públicos? Embora as novas tecnologias de comunicação e informação já fossem utilizadas inclusive pela Al-Qaeda para a divulgação de material de propaganda e para trocas, e o Estado Islâmico já produzisse material de propaganda desde 2004, foi com o estabelecimento, pelo grupo, em 2014, do departamento de comunicação Al-Hayat, destinado à produção e distribuição de material de comunicação de alta qualidade voltado para um público ocidental, em inglês, que a “batalha” pelos corações e mentes desse público foi travada de forma sem precedentes na história de uma organização terrorista.

Essa notoriedade foi também possibilitada pela reprodução desse material por grandes canais de comunicação transnacionais, que amplificaram o alcance da mensagem do grupo durante a cobertura de ataques terroristas, por exemplo. Nesse sentido, a relação simbiótica que o EI logrou estabelecer com os diferentes tipos de mídia foi central para o estabelecimento do califado como um projeto de comunicação exitoso, sem o qual sua existência não teria sido viável, na forma em que ocorreu.A cobertura jornalística foi fundamental para a difusão e solidificação do brand do grupo e para torná-lo relevante na contemporaneidade. Uma parte considerável da publicidade do EI, seja através da promoção do seu material oficial de propaganda, seja por meio da cobertura incansável sobre os jovens que deixaram seus países de origem para se juntar ao grupo, esteve ancorada nos meios de comunicação mainstream.O EI se beneficiou bastante da prioridade dada à audiência e à “clicabilidade” que orienta a cobertura de tópicos relacionados ao terrorismo. Um ciclo vicioso se estabelece – a cobertura, com frequência sensacionalista, impulsiona a audiência, gerando notoriedade ao grupo; este, quanto mais notório, mais audiência mobiliza. 'Pesquisa salva vidas, como bem sabemos. As intuições de ensino superior e pesquisa no Brasil são de excelência', afirma (Foto: Paula Fróes/CORREIO) No momento em que vivemos hoje, com o uso das redes sociais e a produção de conteúdo cada vez mais diversificadas, grupos como o Estado Islâmico, o Talibã e até a Al Qaeda tendem a conquistar mais adeptos? Quais os riscos de haver mais radicalização? Com toda certeza. No entanto, esse provável aumento no número de apoiadores e na influência desses grupos, que são um tanto heterogêneos entre si, não está associado, somente, à possibilidade de ampliação do alcance de suas mensagens e propaganda por meio das tecnologias de comunicação e informação, mas sobretudo porque vemos uma perpetuação e acentuação das circunstâncias sociais, políticas e culturais que tornaram o processo de radicalização possível.

Podemos dizer, inclusive, que vivemos em um tempo de radicalizações de natureza variada, não só essa associada ao islamismo.

Sua formação se deu quase toda fora do país, mas você trouxe sua pesquisa de doutorado para a Ufba. O que te fez vir para cá, sobretudo nesse momento em que vivemos? Eu voltei ao Brasil por motivos pessoais, para estar perto da minha família, antes do atual contexto político se instaurar. Por muitas razões, a realização dessa pesquisa no Brasil foi estratégica e me possibilitou trabalhar de uma forma muito diferente do que eu poderia ter feito em qualquer outro lugar. A realização de uma pesquisa como a minha no Brasil, na UFBA, dissociada da comunidade à qual pertence a maioria dos jovens que são foco da análise, em um contexto em que os impactos da violência do terrorismo são pequenos e em que certos fatores institucionais afetam o trabalho de forma marginal, foi muito importante.Esse olhar de fora é também enriquecedor, e acho fundamental nos estabelecermos como pesquisadores brasileiros, com perspectiva própria, com um lugar de fala nosso e situado sobre o mundo.O Brasil vive, hoje, uma 'fuga de cérebros', de pesquisadores que não encontram trabalho aqui e, depois de prontos, terminam indo para outros países. Para você, qual a importância da pesquisa no Brasil e como você recebe essa premiação da Capes? A produção de conhecimento é fundamental para o desenvolvimento econômico e social. Pesquisa é uma atividade que gera empregos. Pesquisa salva vidas, como bem sabemos. As intuições de ensino superior e pesquisa no Brasil são de excelência. Tendo tido a experiência de estudo e pesquisa fora do país sou testemunha da qualidade do que produzimos nacionalmente.Ter recebido o prêmio Capes de tese é uma honra, um reconhecimento não só do meu trabalho individualmente, mas uma conquista da pesquisa interdisciplinar na área de humanas e do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da UFBA.Estamos passando por um período dificílimo e é incrível como as intuições de ensino superior e de pesquisa vêm resistindo e sobrevivendo em meio a tantas adversidades. Mas eu ainda acredito no Brasil, e acredito que viraremos essa página soturna de nossa história.