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A liberdade do meu pai amplia a minha ao infinito

Ninguém vê os progressos dele. Mas eu vejo. Eu estou de olho. Eu acredito nele

Publicado em 9 de agosto de 2025 às 05:00

Um retrato íntimo, pelos olhos da jornalista e escritora Joana Rizerio, que nunca deixou de acreditar em seu pai
Um retrato íntimo, pelos olhos da jornalista e escritora Joana Rizerio, que nunca deixou de acreditar em seu pai Crédito: Acervo Pessoal

Tornar-me uma mulher que não se achava bonita (na verdade, só comecei a me achar bela de uns tempos para cá e isso até que fez bem ao meu vaidoso caráter) foi um incômodo tão grande que, um dia, perguntei a meu pai:

- Pai, se você tivesse a minha idade e me visse na escola, você me paqueraria?

Flagrei um rasgo de pena em seus olhos, mas ele não hesitou em responder:

- É claro que sim! Você é a pessoa mais interessante do mundo. A mais bonita também. Eu falei sobre ser interessante primeiro porque isso é o mais importante. Beleza não importa muito porque está nos olhos de quem vê.

- Você está dizendo que importa mais ser interessante porque eu sou feia… - choraminguei.

Ele deu um jeito de me convencer que não, que eu era realmente apaixonante, e que, se as pessoas do planeta ainda não tinham percebido isso, seria uma questão de tempo até eu aprender a ser irresistível para conquistar quem eu quisesse. Ele sempre colocou a minha autoestima lá em cima e estava certo: ser interessante é bem mais importante do que ser bonita e o mundo estaria aos meus pés, se eu assim quisesse.

Um dia, perguntei o que ele faria se estivesse no caixa eletrônico e, de repente, começasse a sair dinheiro sem parar. Eu estava, secretamente, tentando pegar meu pai no pulo e fazê-lo confessar uma indignidade. A única saída que imaginei para a minha questão era ele embolsar aquilo tudo, levar a grana consigo. “Você deixaria o dinheiro lá para outra pessoa pegar? Você é tão merecedor de se apropriar da fortuna do banco quanto qualquer outro cidadão sortudo!”, dizia o meu pensamento e minha réplica ensaiada.

De novo, meu pai não demorou dois segundos para elaborar a sua resposta. Tranquilamente, ele disse:

- Eu esperaria a máquina esvaziar, recolheria todas as notas e ligaria para o banco.

Eu não podia acreditar. Era chato ter alguém tão comprometido em ser correto por perto. Eu, certamente, não era. A esta altura, eu já tinha roubado. Furtei um disco aos 12 anos de uma menina que eu conhecia! Meu Deus, como isso me atormentou depois que o meu telencéfalo se desenvolveu completamente… Eu quis morrer quando eu me despedi da crueldade da minha criança; quando a enormidade e o horror de subtrair algo do outro transbordou dentro de mim, eu quis sumir.

Ter vivido o caso foi fundamental para eu entender que é uma crueldade julgar as ações de adolescentes com a régua da moral adulta. Como cogitar reduzir a maioridade penal? Deveriam esticá-la, isso sim. Quando somos jovens, não temos noção de coisa alguma. Certas virtudes, alguns jovens padawans, como eu, aprendem tarde. Mas com a orientação certa, como essa que tive em casa, nunca esquecemos. Merecemos uma segunda chance.

Mas, voltando a meu pai.

Não existe um filho de pais separados que tenha tido um pai melhor e mais presente do que o meu. O homem fez da paternidade e da atenção aos filhos o principal predicado de sua biografia. Éramos cinco bocas exigentes, mimadas em quase todos os níveis, estudantes do colégio mais caro da região e que desfrutavam dos sonhos mais arrojados. Enquanto isso, meu pai investia sua juventude na corrida do ouro.

Quando, recentemente, meu pai confessou para mim que largou a brilhante carreira acadêmica porque a primeira filha, Júlia, nasceu, tratou logo de explicar que foi a melhor escolha da vida dele. Ele morreria antes de dar a entender a qualquer ser humano que a sua prole foi um fardo. E ele estava sendo sincero. Meu pai trocaria qualquer cotidiano na rua para ser a pessoa mais próxima da infância de todos os seus filhos.

Um dia, minha mãe se assustou com o crescimento de uma mancha branca no meu pescoço. Eu a vi, aflita, pesquisar e descobrir que o tratamento para a sua suspeita, vitiligo, existia, mas só em Cuba. Mas, enquanto minha mãe era realista, meu pai era grandiloquente. Explico. Quando a vi, com desânimo, contar a meu pai as informações sobre o tratamento, ele a interrompeu e disse: “Oxe, é só ir para Cuba e ponto”. Nunca fomos ricos, mas absolutamente nada seria impossível de se fazer por um filho na perspectiva de meu pai.

Então é com enorme surpresa que eu assisto à tentativa sistemática de apagamento moral e achincalhamento do maior poder pátrio, do maior genitor, do mais generoso provedor de que eu já tive notícia. Só porque, de duas décadas para cá, meu pai se despiu da indumentária de super herói e caminha pelo mundo como um Exu, como uma entidade humana, todo mundo acha que tem o direito de cuspir e jogar pedra nele.

Quando eu tinha 16 anos, meu pai se separou da mãe dos meus irmãos Morena e Chiquinho e casou-se com Liliane. Ela era da idade da minha irmã mais velha e o enlace foi um escândalo - suscitou inúmeras fofocas, sobretudo as que diziam que Liliane era interesseira. Com o passar do tempo, o amor total dessa moça por meu pai venceu qualquer rumor preconceituoso e etarista. Eles se casaram com toda a festa a que tinham direito.

Era uma época de expansão da pequena agência de publicidade de meu pai. Agora eu me dou conta do quão franciscana foi a atitude dele de criar um jornal de distribuição gratuita chamado Notícias Metropolitanas, e não voltar os olhos apenas para o que pedia o mercado do marketing. Nada mais coerente com os ideais de um comunicador nato, além de teleguiado pela ciência política anarquista do russo Bakunin. Para conseguir empréstimos, ele emancipou as três filhas mais velhas e nos tornou sócias de suas empresas. Ninguém jamais cogitou que algo pudesse dar errado.

Liliane, de 19 anos, quinze dias após se mudar para o apartamentão novo que eles tinham financiado, teve um acidente vascular cerebral e, com metade do corpo paralisado, foi parar no Hospital Aliança. Ela estava sem plano de saúde mas, meu pai, um filho do impossível quando o assunto é grana e amor, internou-a no dito melhor lugar da cidade sem nem pestanejar.

Duas cirurgias não consertaram a menina e eu estava presente quando o médico veio até meu pai para dizer que ela teve morte cerebral. O corpo dele derreteu pela parede até o chão. Com as mãos no rosto, começou a chorar e só parou dias depois, quando teve um surto psicótico em que foi encontrado na floricultura de sua rua com olhos de louco. Acreditava que Liliane havia “sumido” por conta de uma briga que os dois tiveram.

Uma tia de Liliane, uma pobre inconformada, como todos nós, vestiu a jovem esposa de meu pai com roupas de crente, que nada tinham a ver com ela - coisa que a mãe da falecida exigiu como modo de expiar um pouco a culpa que sentia por ter abandonado a filha cedo - e viu manchas roxas nos seus braços e pernas. A família, então, na demonstração mais insensível, deu queixa na polícia levantando a suspeita de que meu pai provocara aquela morte ou que, pelo menos, agredia a mulher. Ele quase não sobreviveu a mais esse golpe.

Como não existe nada tão ruim que não possa piorar, a conta que chegou, um boleto astronômico pelas várias cirurgias e internações em UTI no modo particular, passou da casa do milhão. Em vez de procurar um modo de pagar a pior dívida da sua existência, meu pai pegou uma estrada qualquer e colocou o seu mini utilitário Ford na rota de colisão de uma carreta. Essa foi a primeira tentativa de suicídio. Ele saiu do terrível acidente com um arranhão no braço e nada mais. O carro não tinha seguro e teve perda total.

Em franco estado de abandono, as empresas de comunicação que ele gerenciava pararam lentamente de funcionar. Em pouco tempo, todos os funcionários colocariam meu pai (e nós, suas filhas e sócias) na Justiça do Trabalho. Ele perdeu todas as audiências por estar acamado e morto de desgosto; os processos correram à revelia e as dívidas foram se multiplicando. Dívidas no nome dele e no nome de suas filhas; dívidas imensas: algumas impagáveis, outras que subtraem nossos salários direto da fonte, até hoje.

Foi na sua festa de aniversário de 45 anos que meu pai conheceu as drogas. Ele ficou maravilhado. Sua depressão sumiu como que por decreto. A cocaína parecia a solução dos seus problemas e ele entrou num processo gradual de derrocada que levou vinte anos para atingir o fundo do poço, há seis meses. Meu pai foi encontrado no último mês de janeiro quase cego de um diabetes mal tratado, magro como nunca fora antes, apenas com a roupa do corpo e com medo de ser assassinado por algum traficante a quem devia. Pediu abrigo a uma filha que tem tanta mágoa que nem o chama mais de pai. Eu não a culpo, foram muitos os erros que ele cometeu. Mas como diz Gil: “Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”.

Eu sou a única filha adulta que não tem ressalvas quanto ao apoio que oferece a ele. O meu suporte é incondicional porque eu entendo a enormidade da tragédia que ele experimentou. Entendo que ele foi o melhor pai da galáxia até aquele grande infortúnio acontecer. Eu entendo que ele teve uma depressão incapacitante e encontrou tratamento com substâncias ilícitas por falta de informação e acolhimento profissional. Entendi também que dependência química é uma doença. O mundo, seus outros filhos, suas ex-mulheres, não. Praticamente todo mundo pensa que ele é um safado. Às vezes, tem gente que parece até se satisfazer por chutar um cachorro quase morto como ele.

Ninguém vê os progressos do meu pai, mas eu vejo. Eu estou de olho. Eu acredito nele. Ele está largando o vício sozinho e conseguiu reeducar sua alimentação atavicamente desregulada para não precisar de insulina. Eu estou escrevendo do meu terreiro de candomblé, o Ilê Axé Omin Ewa - vim visitar minha Mãe Senhora, que mês que vem completa 103 anos -, justo no mês de Omolu e na segunda-feira que é deste orixá, para pedir saúde para meu pai. Saúde para que ele se levante, lute e não esmoreça diante da vida e do difícil resgate do seu nome. Para que não fique cego e possa ler Jorge Luis Borges e Fernando Pessoa até o dia em que fechar seus olhos morenos, daqui a pelo menos trinta anos. E para que não permita que ninguém, nem o rebento com maior lugar de fala, diga que ele não é o melhor pai do mundo.

Joana Rizerio e o pai, Chico Pinto
Joana Rizerio e o pai, Chico Pinto Crédito: Acervo Pessoal

Joana Rizerio é jornalista e autora de O Diabo Também Manda Flores e Na Pior em Berlim, Londres e Salvador (Noir Editora)