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Thais Borges
Publicado em 9 de junho de 2024 às 05:00
No início de abril, Violeta* chegou a uma unidade de saúde em Salvador. Negra, moradora de um bairro periférico, mãe solo. Fora estuprada alguns meses antes, ao sair do trabalho, de madrugada - em um local com vínculo empregatício precário. No hospital, tentou ter acesso ao serviço de aborto legal ao qual teria direito por ter sido vítima de um crime. Não conseguiu. >
O destino de Violeta foi atravessado mais uma vez pela violência - agora, institucional. Justamente no dia anterior - 3 de abril -, o Conselho Federal de Medicina (CFM) havia publicado uma portaria proibindo que médicos fizessem a assistolia fetal, um procedimento necessário para o aborto legal a partir de 22 semanas de gestação, especificamente em caso de estupro. >
No dia da ida ao hospital - a Maternidade Climério de Oliveira (MCO), da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e uma das três únicas unidades que fazem o procedimento no Brasil nesse estágio -, Violeta tinha 22 semanas e seis dias. Ela foi uma das duas mulheres que foram impedidas de ter acesso ao aborto legal na Bahia, durante o período em que a portaria ficou em vigor, segundo a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA). >
Em outros estados, situações semelhantes ocorreram. Esse foi o caso de São Paulo, onde duas mulheres também tiveram o aborto legal negado. Isso se estendeu até o dia 17 de maio, quando o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a portaria do CFM em uma decisão liminar. >
Logo após, ele encaminhou o julgamento para o plenário virtual. Na semana passada, o placar estava em 1 a 1 - além do próprio Moraes, o ministro André Mendonça votou, divergindo do relator. Já no dia 31 de maio, o ministro Nunes Marques pediu destaque e suspendeu a votação. O julgamento será reiniciado, agora de forma presencial, em uma sessão ainda sem data. >
Retrocesso>
Como a decisão de Moraes é o que está valendo hoje, o serviço de aborto legal pôde ser mantido em todas as suas formas. "Mas, naquele momento (da portaria), foi um susto, porque, apesar de todas as tentativas, foi a primeira vez que a gente sentiu, aqui no nosso estado, um retrocesso. Médicos e profissionais de saúde ficaram realmente com medo e paralisaram o serviço. Agora, a gente está em paz", diz a defensora pública Lívia Almeida, coordenadora do Núcleo de Defesa das Mulheres e da Especializada de Direitos Humanos da DPE. >
Ela enfatiza que os casos que passam das 22 semanas podem indicar que algo não funcionou na rede de atendimento. Por isso, um dos planos é aumentar os locais que fazem o serviço de aborto legal ainda no começo. Segundo Lívia, as pacientes que precisam desse tipo de assistência costumam ser as mais vulneráveis, além de crianças. >
"São sempre casos dramáticos. Ninguém espera a gestação avançar porque quer. Se espera, é porque teve negativa no serviço antes. A pessoa não procura antes porque tem medo, porque acha que pode ser criminalizada. A gente (mulher) foi culpabilizada pelo estupro, agora está sendo pela demora. São portas que estão sendo fechadas para nós e para crianças". >
A interrupção da gestação após 22 semanas não é comum. Na MCO, em 2023, foram 61 atendimentos para vítimas de estupro. Desse total, 48 pessoas decidiram pelo aborto legal. Dentre elas, 22 tinham gestação com mais de 20 semanas. >
O número na instituição ainda é afetado pelo fato de que é a única na Bahia - e uma das três no Brasil - que faz aborto legal após 20 semanas. Além da MCO, o serviço é oferecido em Uberlândia (MG) e Recife (PE). >
Direito>
No dia em que a portaria do CFM foi publicada, a notícia foi recebida com preocupação pelos profissionais de saúde. Nas palavras da ginecologista e obstetra Marla Niag, professora da Ufba, "pesar e sensação de impotência". No dia seguinte, já receberam um caso que necessitava de atendimento - era Violeta. >
"Foi bem triste porque era uma paciente com todos os perfis de vulnerabilidade. A gente não conseguia ajudar essa pessoa da melhor forma possível com base na lei. Foi um dia que eu saí despedaçada", conta ela, que é médica da Assistência transdisciplinar a pessoas vítimas de violência sexual (Programa Apoiar) da MCO e integra a Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção legal da gestação da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). >
Violeta, a mulher que teve seu aborto legal negado no primeiro dia, conseguiu eventualmente fazer a interrupção por meio de uma articulação extrajudicial do Nudem/DPE. Isso foi possível porque seu caso envolvia, além do estupro, risco de morte. A portaria do CFM não questiona a assistolia fetal em casos de risco de morte da mãe nem de anencefalia. >
Antes da decisão de Alexandre de Moraes, a portaria do CFM chegou a ser suspensa pela Justiça federal no Rio Grande do Sul, ainda em abril. Alguns dias depois, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região restabeleceu a norma - e, assim, o procedimento ficou proibido até a decisão no STF. >
Foi nesse período que a DPE recebeu a segunda paciente vítima de estupro que também teve o direito ao aborto legal negado. "No final das contas, diante das dificuldades, ela decidiu manter a gestação. Ela continua sendo acompanhada", conta a defensora Lívia Almeida. >
A Defensoria baiana entrou como amicus curiae - ou seja, uma terceira parte que entra no processo para fornecer subsídios ao órgão julgador - na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1141. Segundo Lívia,o ingresso é por entender que a norma prejudicaria meninas e mulheres - principalmente as mais vulneráveis. >
"Ainda que essa resolução tenha sido suspensa, ela acabou fortalecendo pessoas que estão dentro desse serviço, motivadas por outras razões que não legais e científicas, a intimidarem esses profissionais que estão agindo de acordo com a lei e com a melhor ciência". >
Outros órgãos, como a Defensoria Pública da União (DPU), o Ministério Público da Bahia e o Ministério Público Federal já se posicionaram contra a portaria, apontando a ilegalidade da medida. A DPU ainda assina uma nota técnica com outras defensorias estaduais do país, em que destaca que o texto viola direitos humanos de mulheres e meninas, a exemplo do direito à saúde, ao planejamento familiar e aos direitos sexuais e reprodutivos. Segundo o documento, a proibição também é inconstitucional e contraria o Código Penal, a Lei Orgânica da saúde e o Código de Ética Médica. >
Em um cenário ideal, não seria necessário interromper gestações com mais de 22 semanas, segundo a ginecologista e obstetra Marla Niag. No entanto, a realidade é diferente. "Minha crítica maior a uma restrição dessas é que quem chega com mais semanas é quem a gente conhece bem. É sempre um perfil de maior vulnerabildiade social. São pessoas pobres, pretas, que moram também em áreas rurais, que têm menos de 14 anos...", enumera. >
Desde abril, a instituição atendeu duas meninas de 12 anos que foram vítimas de estupro. Uma chegou à unidade de saúde com 28 semanas de gestação, a outra com 29. "Uma decisão dessa restringe o acesso de pessoas que são ainda mais vulneráveis na sociedade", pontua. "Não é a maioria e nem queremos que seja. Ninguém quer que esse seja o perfil do atendimento. Mas ignorar a existência disso é impedir direitos", diz. >
Recurso>
A portaria do CFM proibiu que médicos fizessem o processo de assistolia fetal, o procedimento que interrompe os batimentos do feto. No texto, a entidade alega que se trata de "feticídio". Após a decisão de Moraes, a entidade enviou recurso ao STF em que defende que a liminar do ministro seja cassada. >
Em nota, o presidente do CFM, José Hiran Gallo, alegou que a autarquia teria apontado argumentos sólidos para justificar a portaria. “Vale ressaltar que a Resolução não pune, mas sim defende os direitos da mulher, do feto e da vida”, afirmou.>
Procurado, o Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb) informou que o posicionamento da entidade é o mesmo da autarquia federal. Aqui na Bahia, não há processos contra médicos a respeito de ações do tipo. Em São Paulo, ao menos duas médicas tiveram registros suspensos pelo conselho daquele estado. >
*Nome fictício>