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Roberto Midlej
Publicado em 4 de maio de 2025 às 05:00
Nativo de Itaparica, Felipe Peixoto Brito, de 32 anos, carrega a Ilha em sua pele, literalmente: ostenta num dos braços um antigo mapa daquele pedaço paradisíaco da Bahia, pelo qual ele briga diariamente para preservar e manter longe de predadores. Mas não foi sempre assim: até uns oito anos atrás, ele mesmo já quis ser um explorador da Ilha do Medo e cogitou se tornar um empresário para levar grupos de turistas até ali. Mas acabou se tornando fundador da Maré de Março, uma organização que reúne jovens que, como ele, estão preocupados em preservar o meio ambiente. >
E, graças à sua luta ambiental, ele se tornou também uma referência para o BaianaSystem, um dos grupos mais importantes da música contemporânea baiana e brasileira. Já compôs canções para a banda, como Corneteiro Luis, em que divide a criação com outros três compositores. Os músicos reconhecem essa influência num texto de divulgação do álbum O Futuro Não Demora, de 2019, dedicado a Felipe. >
O disco foi gravado na Ilha e, segundo a banda, aquele cenário foi fundamental para a criação do trabalho vencedor do Grammy Latino: “Essa ponte com a Ilha se deu através do grupo Maré de Março, um movimento sócio ambiental formado por jovens da ilha, de caráter conservacionista que busca uma nova relação com aquele território. Esse convívio trouxe uma visão da Baía de Todos os Santos como uma grande Mãe e a importância de Itaparica em sua relação imprescindível com a história do Brasil, com o entendimento de nossa ancestralidade”.>
Mas não foi só o trabalho ambiental de Felipe que chamou a atenção do BaianaSystem: o rapaz é extremamente dedicado à história de Itaparica e já ousou contestar até afirmações de gente como Ubaldo Osório, pai do escritor João Ubaldo Ribeiro e autor de um dos mais importantes registros sobre a Ilha, o livro A Ilha de Itaparica: História e Tradição. >
Felipe também confirmou - através de documentos obtidos em Cascais (Portugal) - a existência de Maria Felipa, marisqueira combatente na campanha de Independência da Bahia, que muitos duvidavam ter existido, já que não havia registro do nascimento dela.>
Nascido e criado em Itaparica, Felipe é filho de um trabalhador da engenharia civil e uma funcionária de supermercado. Como os pais, Felipe não tem nível superior. Mas conseguiu uma conquista que os pais não obtiveram: é técnico em telecomunicações e informática pelo Senai. O diploma lhe permitiu atuar numa empresa que prestava serviços a gigantes como o Itaú. Aos 23 anos, sem nível superior, o jovem, há mais de dez anos, ganhava um salário de R$ 7 mil e liderava uma equipe de 40 pessoas, em Recife.>
Em Recife, no início de 2016, recebeu uma proposta - quase uma intimação, na verdade - para se transferir para São Paulo. Em crise emocional, pressionado pela responsabilidade que tinha e por saudades de casa, bateu um pânico: “Eu estava meio deprimido, chorei ali, na frente do chefe que fez a proposta”. Na época, Felipe pensou até me se matar: “Queria pular de uma torre de 80 metros da empresa. Pensei: ‘não tem erro, não tem dor. Na queda mesmo, bate um sono profundo e eu desmaio”.>
Preocupado, o chefe de Felipe, seu xará, ligou para o pai do rapaz, que entrou em acordo com a empresa e embolsou uma indenização. Com o dinheiro, de volta a Itaparica, decidiu investir em alguns equipamentos para filmagem submarina. A ideia era filmar e divulgar a Ilha do Medo, um paraíso inexplorado em que Felipe via potencial turístico. Chamou uns amigos e foi passar três dias naquele paraíso, acampando e conhecendo cada canto dali. >
Na verdade, a experiência nem foi tão paradisíaca assim: “Nós queríamos fazer uma coisa pra Instagram, para vender aquela experiência para as pessoas e levar turistas para lá. Mas os mosquitos nos atacaram à noite. Sou um nativo ‘descarado’: tenho alergia a picada de maruim!”, brinca, referindo-se aos insetos que lhe deixaram marcas fortes na pele.>
Naquela pequena expedição de três dias, Felipe começou a mudar seus planos sobre a Ilha do Medo: “Numa manhã, fui andar por lá e vi muito lixo, que estava cheio de larvas dos mosquitos. Embora não jogassem lixo lá, as correntes marinhas levavam para lá. Havia muito plástico no mangue. E, seu eu quisesse promover turismo ali, tinha que fazer uma limpeza”, observa.>
Ruínas que havia na Ilha do Medo também chamaram a atenção dos expedicionários. Felipe entrou naquelas estruturas e se impressionou: “Vi mais de vinte janelas grandes, portas gigantes com brasões enormes. Comecei a imaginar histórias que se passaram ali e pensei como os turistas iam se interessar por elas”. O rapaz voltou para Itaparica louco para desvendar a história da Ilha do Medo, que era cercada de lendas, inclusive de que houve ali um leprosário, onde os doentes eram isolados.>
No Google Scholar - ferramenta de busca de artigos acadêmicos -, encontrou trabalhos do biólogo Everaldo Lima de Queiroz. Num dos textos, o teórico dizia que a Ilha do Medo era a primeira estação ecológica da Baía de Todos os Santos. “Aí, entrei num universo muito louco! Pirei! Descobri que a Ilha do Medo era uma estação ecológica, que corresponde ao nível mais alto de preservação ambiental. É um lugar de preservação integral, então não pode nem botar o pé!”.>
Foi a partir daí que Felipe tornou-se um “militante da cultura de Itaparica”, como ele mesmo define. Passou também a pesquisar obsessivamente a história da Ilha e fez uma descoberta importante, que contraria uma afirmação de Ubaldo Osório, citado no início deste texto: ao contrário do que o escritor afirma no livro, o Forte de São Lourenço, um símbolo de Itaparica, foi construído em 1631 e não em 1647, como afirmava Ubaldo.>
Em uma pesquisa online, Felipe encontrou uma carta emitida pelo então governador da Capitania da Bahia, Diogo Luís de Oliveira, que comandou o território de 1626 a 1635. “Consegui uma reprodução de uma carta em que ele diz que quando terminou o governo dele, o Forte já estava pronto. E mais: não foi construído por holandeses, como se pensava, mas pela União Ibérica. Sem tese, nem nada, eu provei isso, com base em um relatório que está na Biblioteca de Madrid”, diz Felipe, com compreensível orgulho.>
E também graças à intervenção de Felipe, o Forte de São Lourenço agora está aberto a visitação, depois de 47 anos fechado. A iniciativa surgiu quando o rapaz foi diretor de cultura de Itaparica. Na época, fez uma proposta à Marinha de transformar o local em um memorial da Independência e a ideia foi aprovada.>
Agora, além de continuar pesquisando a história da Ilha, Felipe segue com o Maré de Março, hoje formalmente constituído. “Fazemos artivismo [uma mistura entre arte e ativismo] e serviços ambientais, como a limpeza da Ilha do Medo. Também já fizemos denúncias na Câmara de Vereadores contra a construção de um resort na Ilha do Medo e conseguimos aprovar uma legislação que proíbe esse resort. Fazemos isso para manter a Ilha como uma estação ecológica”, diz Felipe.>