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Agência Brasil
Publicado em 29 de junho de 2024 às 09:46
O viajante que passa pela Rodovia Rio-Santos (um trecho da BR-101) e se aproxima do limite entre as cidades de Angra dos Reis e Paraty, no Sul Fluminense, tem a oportunidade de visitar o Observatório Nuclear. O espaço é uma mistura de mirante com vista para a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, onde ficam as usinas Angra 1, 2 e 3 – esta última em construção – e um centro de informações.>
O visitante encontra objetos, simulações e painéis interativos pelos quais pode aprender como funcionam as usinas nucleares. O espaço faz parte de um esforço da Eletronuclear, estatal que administra e opera as usinas, para apresentar a energia nuclear como uma operação limpa e segura.>
Entre os objetos expostos estão uma réplica de reator, equipamento da usina onde há a fissão nuclear – divisão do núcleo do urânio. Na réplica, é possível visualizar que o combustível (pastilhas de urânio) fica empilhado e isolado dentro de varetas, que funcionam como uma blindagem.>
Cada pastilha é um pouco mais grossa que uma moeda e tem capacidade de energia equivalente a 22 caminhões-tanque carregados com óleo diesel.>
Outra demonstração no centro de informações ilustra como a água captada no mar é usada para resfriar o vapor gerado pela fissão, porém sem contato algum com a radiação.>
Geração>
O processo de geração de energia consiste basicamente em usar o calor emitido pela fissão para aquecer uma quantidade de água que circula pelo reator e gerar vapor. Essa água é captada em rios, passa por um processo de desmineralização antes de passar pelo reator e fica em um circuito fechado, ou seja, não há perda, é um processo de looping, como nos chafarizes.>
A pressão do vapor gerado aciona as turbinas que geram a energia elétrica. Para entender como o vapor é capaz de “exercer força”, basta pensar no que acontece com a válvula da tampa de uma panela de pressão.>
Depois de acionar as turbinas, o vapor é condensado (passa do estado gasoso para líquido), e a água volta para o reator. O processo de geração de energia é considerado limpo, uma vez que não se emitem gases causadores do efeito estufa.>
Combustível>
Esse processo cria resíduos radioativos, que precisam ser armazenados com segurança. “Todas as indústrias geram resíduos, nós também geramos. Só que temos a obrigatoriedade de fazer a guarda de todo esse material”, explica o chefe da Divisão de Gerenciamento de Rejeitos e Combustível Usado, Rodrigo Vieira da Fonseca.>
Um dos principais resíduos são as pastilhas de urânio. Após usadas, elas continuam produzindo calor e irradiação. Por isso, quando são trocadas, precisam ficar anos em piscinas de resfriamento dentro da própria usina.>
Neste ano, pela primeira vez, as usinas de Angra iniciaram o processo de transporte do urânio usado das piscinas para Unidade de Armazenamento Complementar a Seco de Combustível Irradiado (UAS). Na prática, isso representa que há uma liberação de espaço nas piscinas.>
A UAS fica em um terreno a céu aberto a centenas de metros do prédio da usina. Para serem transportadas e armazenadas no novo destino, são blindadas em grandes toneis de aço preenchidos com concreto, chamados de Hi-Storm.>
A primeira fase de transferência teve início no dia 26 de abril e deve terminar em 30 de setembro, quando serão transferidos apenas os elementos de Angra 2. A movimentação dos combustíveis de Angra 1 para a UAS será em 2025 e em 2026.>
“O combustível usado é muito bem controlado, de forma que os riscos são, praticamente, mínimos. Tanto o controle de acesso das pessoas, como a própria embalagem onde estão armazenados fornecem essa proteção, essa blindagem, de maneira que ninguém fique exposto”, detalhou Rodrigo Fonseca à Agência Brasil. A reportagem conheceu o complexo de usinas a convite da Eletronuclear.>
De acordo com a estatal, o tipo de armazenamento na UAS é similar ao usado em 70 usinas americanas, sem qualquer registro de vazamento de material radioativo. O projeto garante a segurança em casos de terremotos, tornados e inundações, entre outros acidentes.>
A primeira fase de transferência preencherá a UAS com 15 unidades de Hi-Storm. Após a transferência do urânio utilizado em Angra 1, o número será 48. O UAS tem capacidade para 72, o que representa capacidade para até 2045.>
Rodrigo Fonseca ressalta que o urânio usado não pode ser considerado um rejeito, pois ainda há energia nas pastilhas. Inclusive, acrescenta Fonseca, alguns países têm processos de reciclagem do material. O Brasil ainda não aplica essa solução.>
Rejeitos>
A operação das usinas nucleares gera rejeitos, como ferramentas e uniformes contaminados por radiação. No cotidiano de Angra 1 e 2, há rigoroso processo de identificação de materiais contaminados, para que não haja poluição ambiental e risco às pessoas dentro e fora da central nuclear.>
Esse material é isolado em tonéis de aço e em pequenos contêineres para serem levados à Central de Gerenciamento de Rejeitos (CGR), um depósito formado por três galpões. Atualmente há cerca de 7,9 mil volumes estocados no espaço.>
O chefe do Departamento de Rejeitos e Proteção Radiológica, John Wagner Amarante, conta que três princípios são observados para manter a segurança do material contaminado: blindagem, distância e tempo. “Todo material radioativo, com o passar do tempo, tende a atividade cair”.>
Os conteúdos são monitorados regularmente, e alguns itens, quando considerados livres de radiação, são descartados.>
Amarante reforça que, apesar de ter “subproduto radioativo”, as usinas nucleares, diferentemente de outras indústrias específicas, “não causam contaminação do ar, nem do lençol freático”.>
Os galpões de armazenamento de rejeitos no complexo de Angra têm capacidade para até 2030. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), órgão regulador da atividade nuclear no país, tem a responsabilidade de criar reservatórios definitivos para os rejeitos, sejam de usinas ou outras indústrias que usam a atividade nuclear, como a medicina e alimentícia.>
A Cnen comanda o projeto Centro Tecnológico Nuclear e Ambiental (Centena), que cuidará dos resíduos definitivos. De acordo com descrição do plano, é previsto um período de operação da instalação de 60 anos e de vigilância, após seu fechamento, de 300 anos.>
Países da Europa, Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e África do Sul já têm repositórios de rejeitos radioativos.>
No Brasil, o projeto está em fase de escolha de local de implantação. A Agência Brasil procurou a Cnen para obter detalhes sobre o andamento, mas não recebeu retorno.>
Caso não haja uma solução da Cnen até 2028, a Eletronuclear buscará uma solução no próprio terreno da central nuclear, “seja por construção de novo galpão ou encontrando nova tecnologia de armazenamento”, explica Amarante.>
Laboratório ambiental>
Na central nuclear, funciona um laboratório de monitoração ambiental. Regularmente são feitos testes para verificar se há algum tipo de contaminação no solo, ar, mar, fauna e flora, em uma área que vai de Angra dos Reis à vizinha Paraty.>
“Não foram encontrados valores significativos que induzam a acreditar que há impactos no meio ambiente”, afirma, sobre a operação da central nuclear o supervisor de Proteção Radiológica, Jayme Rodrigues.>
As usinas Angra 1 e 2 captam 110 mil litros de água do mar por segundo. Para ter ideia do volume e da velocidade: é como se enchesse uma piscina olímpica em 30 segundos. Essa água passa por um circuito que atua na condensação do vapor gerado pelo reator. Após o processo de resfriamento, a água do mar é liberada novamente ao oceano, sem qualquer contato físico com material ou substâncias contaminadas.>
O deságue é na Praia do Laboratório, na costa de Angra dos Reis, a 1,2 quilômetro das usinas. Por causa do processo, a água encontra o mar cerca de 10º Celsius (C) mais quente que a temperatura do oceano, sendo que não pode, de forma alguma, superar 40º C.>
O laboratório faz análises detalhadas da praia, para conferir que a diferença de temperatura não esteja afetando a vida marítima. Como não há morte de espécie de peixes, o impacto ambiental é considerado não significativo.>
Uma vez que a água que deixa as usinas não é contaminada, a praia é liberada para uso de banhistas. Consta no local apenas uma sinalização da pequena correnteza formada.>
Engenharia e treinamento>
O superintendente adjunto de Angra 2, Douglas Ribeiro Salmon, explica que a segurança da operação nuclear é baseada em uma conjunção de fatores, como engenharia de blindagem – com prédios reforçados contra vazamentos, maquinário com manutenção constante e treinamento de mão de obra especializada.>
“O projeto de engenharia é muito forte, os sistemas são redundantes, a parte eletrônica, os equipamentos têm especificação muito alta. Isso tem que estar alinhado com o treinamento e a preparação técnica”, ressalta.>
As duas usinas contam com simuladores das salas de comando, que reproduzem exatamente o funcionamento do “cérebro” das instalações.>
Fukushima>
Depois do acidente na usina nuclear de Fukushima, no Japão, em março de 2011, causado por um terremoto seguido por tsunami, a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto criou um projeto para implantar novas medidas de segurança nas unidades.>
Em 2011, ondas atingiram geradores de energia, o que causou interrupção do processo de resfriamento da usina japonesa.>
Em Angra, após estudar as falhas de Fukushima, foi criado uma espécie de quartel-general de emergência, com geradores a diesel, reserva de diesel e outros equipamentos que ficam no alto do Morro do Urubu, perto das usinas. Há uma ligação com a central nuclear, de forma que um acidente não impeça que o processo de resfriamento seja interrompido e cause acidentes.>
“Foi criada uma estrutura justamente para poder fazer frente a um evento qualquer que fuja das bases de projetos nos quais foram concebidas as usinas”, explica o assistente da Superintendência de Coordenação da Operação, Ronaldo Cardoso. Ele acrescenta que os prédios das usinas são reforçados com concreto e aço. “Se cair um avião ali, não vai acontecer nada.”>
Comunidade>
A despeito dos procedimentos de segurança, a existência de riscos de acidente faz com que a Eletronuclear realize recorrentes simulações de emergência, envolvendo funcionários, moradores de vilas residenciais e comunidades vizinhas.>
Os exercícios simulados de retirada de habitantes contam com até 1,2 mil pessoas, incluindo agentes da usina, da prefeitura, defesa civil, agência reguladora e órgãos ambientais. De fato, nunca foi preciso fazer uma operação de evacuação, segundo a empresa. Os grandes bairros habitados mais próximos da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto ficam a cerca de 3,5 quilômetros.>
O chefe da Assessoria de Planejamento de Emergência, Francisco Vilhena, reconhece que o fato de a central nuclear ter acesso rodoviário apenas pela BR-101 é um fator de atenção constante, uma vez que são comuns casos de deslizamentos na estrada durante chuvas fortes.>
Segundo Vilhena, em casos que deslizamentos não identificados, é feita uma avaliação do cenário de risco e, como precaução, a usina pode ser desligada. “Você mantém a tranquilidade até que a estrada seja desobstruída”, diz.>
Entre funcionários da Eletronuclear há a percepção de que parte da preocupação que algumas pessoas têm com a energia nuclear é motivada pela questão de Chernobyl, usina da antiga União Soviética que sofreu uma explosão em 1986, após um teste malsucedido e liberou uma enorme nuvem radioativa que se espalhou por outros países da Europa.>
Como consequência direta, 31 pessoas morreram. Mas dezenas ou até centenas de milhares perderam a vida para doenças como o câncer, relacionadas aos altos níveis de radiação.>
Licenciamento>
O licenciamento ambiental para operação da central nuclear é emitido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que faz acompanhamento constante do funcionamento das usinas.>
Em março de 2023, o instituto aplicou duas multas a Angra 1 por causa do descarte irregular de substância radioativa e por descumprimento de condicionante estabelecida na licença de operação, que foi a comunicação tardia do vazamento.>
A grande necessidade de cuidado constante com a operação da usina e com o destino dos rejeitos radioativos faz com que grupos de ambientalistas sejam contrários ao funcionamento da central nuclear. Um dos coletivos mais atuantes da região é Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (Sapê).>
Por meio de campanhas, os ativistas põem em dúvida a eficácia dos planos de emergência, citam a questão de haver apenas uma rodovia de acesso e exigem a criação de depósito definitivo para os rejeitos radioativos.>
*A reportagem da Agência Brasil viajou ao Complexo Nuclear em Angra dos Reis/RJ a convite da Eletronuclear>