Sem cordas e estampando marcas, blocos até doam abadás como estratégia de negócio

Desafio do Carnaval é o equilíbrio entre rentabilidade e espaço para a pipoca

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 11 de fevereiro de 2024 às 05:00

Carnaval atrai milhares de pessoas todos os anos
Carnaval atrai milhares de pessoas todos os anos Crédito: Arquivo CORREIO

Durante ao menos quatro décadas, empresários controlaram os blocos de Carnaval que cresceram com a festa e fizeram crescer os artistas hoje consagrados. Agora, são as marcas que comandam a folia, sejam elas de empresas públicas ou privadas. Estampadas ao longo dos circuitos, elas sustentam o abaixar de cordas dos trios independentes. No atual modelo de negócio, a busca é pelo equilíbrio entre a indústria cultural e as reivindicações de espaço para o folião pipoca.

Este ano, É o Tchan, Xand Avião e Banda Eva são as atrações do trio da rede social TikTok. O Trio Armandinho e os Irmãos Macêdo vão às ruas pela Bahiagás. O Ara Ketu desfila com patrocínio da Prefeitura de Salvador e do Governo do Estado da Bahia, que vão investir, respectivamente, R$8 milhões e R$15 milhões em blocos afros, único setor a ter valor definido e divulgado. 

“Aqueles blocos que conseguiram trabalhar bem os seus produtos sobreviveram. Acho que tem tudo a ver com a gestão. O Carnaval não é uma ilha e está suscetível à lei de Darwin”, coloca Isaac Edington, presidente da Empresa Salvador Turismo (Saltur), responsável pela gestão da folia na capital baiana.

Segundo o economista Edísio Freire, os blocos viveram, nas últimas duas décadas, tempos de crise, com a chegada da concorrência e a tendência à popularização dos preços. “O folião ia pelo bloco e não pelo artista, como é hoje”, diz. Agora, os empresários tiram o foco da venda de abadás e diversificam as apostas de captação de recursos para patrocínios, festas ao longo de todo o ano e investimento em camarotes.

Na equação, o poder público vem chegando aos poucos, desde a década passada, para equilibrar a festa. A gestão municipal diz ter encontrado problemas como o esvaziamento do circuito Osmar (Campo Grande) e a instabilidade de blocos tradicionais. O empresário do Ara Ketu, Cristiano Lacerda, diz que a ida às ruas hoje depende da Prefeitura e do Governo do Estado.

“É muito difícil conseguir patrocínio para colocar o nosso bloco – que é afro, de candomblé e fundado no subúrbio – na rua, principalmente quando falamos na iniciativa privada. Hoje a gente depende muito dos órgãos públicos”, diz Cristiano. Em 2024, o Ara distribuiu metade dos abadás gratuitamente e trocou a outra metade por alimentos que serão doados a comunidades do Subúrbio.

Ara Ketu
Ara Ketu Crédito: Reprodução/Alõ Alô Bahia

Do outro lado da moeda, o radialista, produtor e empresário Josenel Barreto diz que, a partir da chegada do poder público como contratante, a retirada das cordas enfraqueceu os blocos. “Uma coisa é você colocar uma atração pontual sem mexer na estrutura do Carnaval. A partir do momento que o poder público abraçou o Carnaval, ele esvaziou os blocos”, coloca.

Já o empresário Tinho Albuquerque, um dos criadores do Camaleão e sócio da Central do Carnaval, defende as parcerias público-privadas. “Acho que se tem mesmo que perceber e preencher as lacunas dos blocos. Isso pode ter impacto? Sim. Mas pensar novas formas do governo apoiar iria retroalimentar a indústria”, diz.

Isaac Edington defende a importância e manutenção dos blocos. “Os abadás continuam vendendo, tem compras com antecedência, grandes artistas esgotam tudo”, aponta. Um deles é Bell Marques. No dia seis de fevereiro, o cantor anunciou nas redes sociais que estava com ingressos esgotados para três dos seis dias que vai às ruas. A outra metade foi anunciada com status de “últimos abadás”.

Edington ainda ressalta que não é o objetivo da Prefeitura concorrer com os blocos: “Se você fortalece a festa em si, você fortalece a todos”. Colocar um desses na rua, de acordo com o Conselho Municipal do Carnaval de Salvador (Comcar), pode custar até R$8 milhões. Mas o retorno vem de outra forma: a promoção do poder público enquanto marca.

“É um investimento. A moeda de troca é ter a cidade como um dos principais destinos turísticos. Isso sem contar que o trade do Carnaval sobrevive de ecos dessa festa o ano inteiro”, destaca.

Para 2024, a Prefeitura espera que a folia movimente cerca de R$ 2 bilhões na economia da cidade. A previsão também é que mais de 800 mil turistas visitem Salvador durante o Carnaval. São eles que, segundo a direção do Quero Abadá, compram cerca de 70% dos ingressos.

É contra o jogo capitalista por trás dos abadás que alguns artistas lutam ao abaixar as cordas. Esse é o caso do grupo BaianaSystem, que tem seu próprio bloco, chamado de Navio Pirata, e só desfila para a pipoca. “Esse é o trio independente que existe enquanto posicionamento político, fenômeno que está inserido na discussão já antiga sobre o excesso de capital e lucro envolvido na festa”, destaca o especialista em gestão cultural Armando Castro, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

BaianaSystem no Furdunço 2024
BaianaSystem no Furdunço 2024 Crédito: Paula Froes /CORREIO

O professor pondera que um bloco sem cordas não é sinônimo de ausência de rentabilidade. “Houve um desgaste do modelo antigo de venda de abadás e então uma aposta na captação de recursos e entes governamentais como contratantes. Tem um jogo muito dinâmico sendo jogado nos bastidores. A roda da indústria cultural continua girando, só o modelo de negócio que mudou”, finaliza Armando Castro.

O Correio Folia tem apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.