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De quem é o estilo das imagens criadas com IA?

Criamos não só para mostrar o mundo, mas para compreendê-lo, habitá-lo e transformá-lo

Publicado em 27 de abril de 2025 às 05:00

Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2025
Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2025 Crédito:  

Faz mais ou menos um mês — o que, no ritmo das redes, já parece uma eternidade. Uma “nova” funcionalidade do modelo DALL·E 3, que permite criar imagens no estilo do Studio Ghibli, invadiu as timelines e agitou algumas bolhas culturais. Muita gente começou a postar versões estilizadas de fotos pessoais com o traço do Ghibli. O sucesso foi tão grande que chegou a sobrecarregar os data centers da OpenAI — o que levantou críticas sobre o impacto ambiental de uma brincadeira aparentemente inofensiva. Mesmo assim, várias figuras públicas aderiram, o que só aumentou a visibilidade da brincadeira... e, claro, as críticas. A suposta apropriação de um estilo tão autoral quanto o do Studio Ghibli não passou batida — e o debate sobre ética, autoria e IA ganhou força.

O modelo DALL·E 3, agora integrado ao ChatGPT, permite gerar e editar imagens complexas por meio de comandos em linguagem natural: basta instruir “adicionar uma árvore” ou “mudar o fundo para pôr do sol” para que o sistema reconfigure o quadro de forma interativa dentro da própria conversa. Para mitigar riscos, a OpenAI afirma que aplica filtros rigorosos nos dados de treinamento (remoção de conteúdo explícito e símbolos de ódio), usa classificadores de entrada e saída, transformações de prompt que evitam referências a figuras públicas, marcas e artistas vivos, além de blocklists textuais. Segundo a empresa, essas camadas de proteção visam prevenir a produção de imagens impróprias, vieses demográficos, desinformação (como as fake news), o uso de estilos de artistas vivos ainda restritos e usos maliciosos em áreas como armas químicas ou biológicas, garantindo assim algum equilíbrio entre criatividade e responsabilidade. ?

Além disso, o modelo oferece uma vasta paleta de estilos artísticos — de Studio Ghibli, Os Simpsons e Marvel a Lego, Muppets e outros. O modelo recusa qualquer pedido que mencione “no estilo de [artista vivo]” para impedir a reprodução não autorizada de traços protegidos por direitos autorais de criadores ativos, mas, ao mesmo tempo, aceita referências a “estilos de estúdio” consolidados (como Studio Ghibli), vistos como categorias estéticas amplas e não vinculadas a direitos pessoais específicos. Ou seja, bloqueia estilos de indivíduos vivos, mas permite apreciações genéricas de estéticas corporativas ou coletivas.

Mas será que de fato houve uma apropriação indevida do estilo? O debate é antigo. Um artigo de 2023, de Kashmir Hill, publicado no The New York Times, conta o caso do Stable Diffusion (da Stability AI) que aprendeu a replicar o estilo do ilustrador Greg Rutkowski ao “raspar” bilhões de imagens online — o que levou à queda de encomendas para o próprio artista. Em resposta a isso, um grupo de pesquisadores da Universidade de Chicago, liderado pelo prof. Ben Zhao, lançou o Glaze: uma ferramenta que aplica perturbações quase imperceptíveis nas obras, suficientes para confundir os modelos de IA e impedir que eles aprendam fielmente o traço original do artista.

Especialistas em propriedade intelectual apontam que IAs aprendem de forma análoga a como artistas humanos assimilam estilos alheios, e as empresas podem argumentar uso justo (fair use). Ainda assim, há movimentações para garantir compensação a criadores – seja via contratos de licenciamento, fundos de lobby ou sistemas privados que remunerem artistas quando suas obras entrarem no treinamento de modelos de IA.

Para tentar entender essa polêmica pode ser interessante, primeiro, entender o que é um estilo. Estilo vem do latim stilus, o instrumento do escriba, semelhante a um estilete, e, na retórica clássica, traduzia-se na forma única de argumentar. Nos ateliês renascentistas, discípulos aprendiam imitando o mestre – como Leonardo da Vinci, que ensinava pela cópia direta das obras de Verrocchio. Com o tempo, os discípulos também eram estimulados a desenvolver uma assinatura própria. Na era moderna, com a ascensão da autoria individual, esse conceito ganhou novas mídias — da pintura e música ao cinema e fotografia — até se tornar o selo de originalidade de cada criador. Nos séculos XIX e XX, durante o romantismo, o modernismo e as vanguardas, o estilo deixou de ser apenas um aperfeiçoamento técnico para virar reflexo íntimo da visão de mundo do criador e forma comercializável de produto cultural.

Mas como, afinal, conseguimos identificar ou definir um estilo? Essa pergunta, que parece simples, esbarra numa contradição curiosa: o estilo é aquilo que distingue, mas também o que pode aprisionar. Muitas vezes descrito como a “assinatura” de um artista, o estilo é reconhecido por padrões recorrentes — escolhas de cor, ritmo, traço, composição, tom. E, ainda assim, é comum que artistas sejam acusados justamente de não ter estilo — ou pior, de serem repetitivos por demais ao seguir um estilo que já é seu.

Essa tensão revela o quanto o estilo é tanto um gesto de afirmação quanto um campo de expectativa. Se é muito variado, parece falta de identidade; se é muito coeso, corre o risco de parecer fórmula. A crítica muitas vezes confunde consistência com estagnação, e inovação com falta de eixo. No fundo, estilo é menos uma estrutura fechada e mais uma relação viva entre expressão, reconhecimento e contexto — algo que só faz sentido quando ressoa com um olhar que o percebe como tal.

A estilometria é uma tentativa de criar parâmetros objetivos para reconhecer o estilo. O poeta e pesquisador Décio Pignatari, em Informação, Linguagem, Comunicação (1968), já destacava a importância da estilometria na escrita, isto é, a ideia de que o estilo de um autor pode ser analisado estatisticamente por meio da frequência de palavras e estruturas gramaticais. Nos primórdios da linguística computacional, autores como Colin Cherry, Alfredo Niceforo e G. Udny Yule já reconheciam um aspecto objetivo e mensurável do estilo literário. Embora na época ainda não existisse a tecnologia necessária para os atuais modelos generativos, já se discutia a possibilidade de criar textos inspirados no estilo de autores consagrados.

O papel do estilo na forma como entendemos as expressões culturais é bem pouco compreendido. Por exemplo, o gênio João Gilberto, com sua batida de violão, definiu a Bossa Nova. Mas João não era, de fato, um compositor prolífico; compôs poucas músicas próprias, porém tudo o que cantava ficava imediatamente marcado por seu estilo. Ainda assim, não existe nenhuma regra que impeça outros artistas de cantar no estilo de João, e é bem provável que ele nunca tenha recebido um centavo por ter criado essa forma de expressão tão reconhecível. Vale lembrar que ele mesmo bebeu na forma suave e quase sussurrada de cantar de Chet Baker.

Outro exemplo interessante foi o caso do quadrinista baiano Hugo Canuto, que usou o estilo de Jack Kirby para recriar a mitologia do candomblé. A HQ Contos dos Orixás, lançada originalmente em 2018 pela Ébórá Comics, chegou aos Estados Unidos em 2023, pela Abrams Books. Mas, nesse caso, o uso do estilo de Kirby é interpretado como homenagem. No cinema, os exemplos são inúmeros: cineastas absorvem estilos alheios — seja ao recriar cenas icônicas ou experimentar outras linguagens. Antigamente até se usava expressões dizendo que um filme era “godardiano” ou “felliniano” — e é justamente nessa releitura de legados que cada autor descobre sua própria voz.

Segundo o pesquisador Lev Manovich, a lógica fundamental da mídia digital desde os anos 1970 é a de “separar e recombinar” elementos visuais — como forma, textura e luz — permitindo a criação de imagens sintéticas que escapam às limitações das mídias analógicas tradicionais. Softwares como o Photoshop, por exemplo, não foram pensados para desenhar, mas para alterar imagens existentes, reorganizando seus componentes internos.

Para Manovich, a IA generativa leva essa lógica a um novo patamar: ela permite combinar inúmeros estilos e técnicas artísticas por meio de um único comando textual, produzindo imagens que jamais existiram antes — nem como desenho, nem como fotografia. Mas esse poder vem acompanhado de dilemas — ferramentas de IA tendem a “comprimir” ou padronizar detalhes únicos, favorecendo padrões mais comuns, o que pode limitar sua capacidade de gerar obras com mais profundidade e singularidade. Esse desafio continua na mão do artista.

Mais importante do que discutir como fazemos arte — manualmente ou com auxílio da IA —, permanece uma pergunta fundamental: por que fazemos arte? A arte não reside apenas no domínio técnico ou estilístico, mas na capacidade de expressar questões humanas profundas, estabelecer conexões emocionais e provocar reflexões sobre o mundo em que vivemos. Talvez resida aí o grande desafio — e a grande oportunidade — da era da inteligência artificial: aproveitar o potencial dessas novas ferramentas sem perder de vista o motivo central pelo qual criamos e valorizamos a arte. No fim, a questão maior não é técnica, jurídica ou estilística. É existencial. Criamos não só para mostrar o mundo, mas para compreendê-lo, habitá-lo e transformá-lo. A era da IA não aboliu o estilo; ela nos obriga a revisitar seu sentido. A arte é um espelho da experiência humana e cabe a nós decidir se usaremos essas novas ferramentas para diversificar ou diluir esse reflexo.

(Esse texto foi coescrito com uma IA)

Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP