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Publicado em 27 de abril de 2025 às 05:00
Faz mais ou menos um mês — o que, no ritmo das redes, já parece uma eternidade. Uma “nova” funcionalidade do modelo DALL·E 3, que permite criar imagens no estilo do Studio Ghibli, invadiu as timelines e agitou algumas bolhas culturais. Muita gente começou a postar versões estilizadas de fotos pessoais com o traço do Ghibli. O sucesso foi tão grande que chegou a sobrecarregar os data centers da OpenAI — o que levantou críticas sobre o impacto ambiental de uma brincadeira aparentemente inofensiva. Mesmo assim, várias figuras públicas aderiram, o que só aumentou a visibilidade da brincadeira... e, claro, as críticas. A suposta apropriação de um estilo tão autoral quanto o do Studio Ghibli não passou batida — e o debate sobre ética, autoria e IA ganhou força. >
O modelo DALL·E 3, agora integrado ao ChatGPT, permite gerar e editar imagens complexas por meio de comandos em linguagem natural: basta instruir “adicionar uma árvore” ou “mudar o fundo para pôr do sol” para que o sistema reconfigure o quadro de forma interativa dentro da própria conversa. Para mitigar riscos, a OpenAI afirma que aplica filtros rigorosos nos dados de treinamento (remoção de conteúdo explícito e símbolos de ódio), usa classificadores de entrada e saída, transformações de prompt que evitam referências a figuras públicas, marcas e artistas vivos, além de blocklists textuais. Segundo a empresa, essas camadas de proteção visam prevenir a produção de imagens impróprias, vieses demográficos, desinformação (como as fake news), o uso de estilos de artistas vivos ainda restritos e usos maliciosos em áreas como armas químicas ou biológicas, garantindo assim algum equilíbrio entre criatividade e responsabilidade. ?>
Além disso, o modelo oferece uma vasta paleta de estilos artísticos — de Studio Ghibli, Os Simpsons e Marvel a Lego, Muppets e outros. O modelo recusa qualquer pedido que mencione “no estilo de [artista vivo]” para impedir a reprodução não autorizada de traços protegidos por direitos autorais de criadores ativos, mas, ao mesmo tempo, aceita referências a “estilos de estúdio” consolidados (como Studio Ghibli), vistos como categorias estéticas amplas e não vinculadas a direitos pessoais específicos. Ou seja, bloqueia estilos de indivíduos vivos, mas permite apreciações genéricas de estéticas corporativas ou coletivas.>
Mas será que de fato houve uma apropriação indevida do estilo? O debate é antigo. Um artigo de 2023, de Kashmir Hill, publicado no The New York Times, conta o caso do Stable Diffusion (da Stability AI) que aprendeu a replicar o estilo do ilustrador Greg Rutkowski ao “raspar” bilhões de imagens online — o que levou à queda de encomendas para o próprio artista. Em resposta a isso, um grupo de pesquisadores da Universidade de Chicago, liderado pelo prof. Ben Zhao, lançou o Glaze: uma ferramenta que aplica perturbações quase imperceptíveis nas obras, suficientes para confundir os modelos de IA e impedir que eles aprendam fielmente o traço original do artista. >
Especialistas em propriedade intelectual apontam que IAs aprendem de forma análoga a como artistas humanos assimilam estilos alheios, e as empresas podem argumentar uso justo (fair use). Ainda assim, há movimentações para garantir compensação a criadores – seja via contratos de licenciamento, fundos de lobby ou sistemas privados que remunerem artistas quando suas obras entrarem no treinamento de modelos de IA.>
Para tentar entender essa polêmica pode ser interessante, primeiro, entender o que é um estilo. Estilo vem do latim stilus, o instrumento do escriba, semelhante a um estilete, e, na retórica clássica, traduzia-se na forma única de argumentar. Nos ateliês renascentistas, discípulos aprendiam imitando o mestre – como Leonardo da Vinci, que ensinava pela cópia direta das obras de Verrocchio. Com o tempo, os discípulos também eram estimulados a desenvolver uma assinatura própria. Na era moderna, com a ascensão da autoria individual, esse conceito ganhou novas mídias — da pintura e música ao cinema e fotografia — até se tornar o selo de originalidade de cada criador. Nos séculos XIX e XX, durante o romantismo, o modernismo e as vanguardas, o estilo deixou de ser apenas um aperfeiçoamento técnico para virar reflexo íntimo da visão de mundo do criador e forma comercializável de produto cultural.>
Mas como, afinal, conseguimos identificar ou definir um estilo? Essa pergunta, que parece simples, esbarra numa contradição curiosa: o estilo é aquilo que distingue, mas também o que pode aprisionar. Muitas vezes descrito como a “assinatura” de um artista, o estilo é reconhecido por padrões recorrentes — escolhas de cor, ritmo, traço, composição, tom. E, ainda assim, é comum que artistas sejam acusados justamente de não ter estilo — ou pior, de serem repetitivos por demais ao seguir um estilo que já é seu.>
Essa tensão revela o quanto o estilo é tanto um gesto de afirmação quanto um campo de expectativa. Se é muito variado, parece falta de identidade; se é muito coeso, corre o risco de parecer fórmula. A crítica muitas vezes confunde consistência com estagnação, e inovação com falta de eixo. No fundo, estilo é menos uma estrutura fechada e mais uma relação viva entre expressão, reconhecimento e contexto — algo que só faz sentido quando ressoa com um olhar que o percebe como tal.>
A estilometria é uma tentativa de criar parâmetros objetivos para reconhecer o estilo. O poeta e pesquisador Décio Pignatari, em Informação, Linguagem, Comunicação (1968), já destacava a importância da estilometria na escrita, isto é, a ideia de que o estilo de um autor pode ser analisado estatisticamente por meio da frequência de palavras e estruturas gramaticais. Nos primórdios da linguística computacional, autores como Colin Cherry, Alfredo Niceforo e G. Udny Yule já reconheciam um aspecto objetivo e mensurável do estilo literário. Embora na época ainda não existisse a tecnologia necessária para os atuais modelos generativos, já se discutia a possibilidade de criar textos inspirados no estilo de autores consagrados.>
O papel do estilo na forma como entendemos as expressões culturais é bem pouco compreendido. Por exemplo, o gênio João Gilberto, com sua batida de violão, definiu a Bossa Nova. Mas João não era, de fato, um compositor prolífico; compôs poucas músicas próprias, porém tudo o que cantava ficava imediatamente marcado por seu estilo. Ainda assim, não existe nenhuma regra que impeça outros artistas de cantar no estilo de João, e é bem provável que ele nunca tenha recebido um centavo por ter criado essa forma de expressão tão reconhecível. Vale lembrar que ele mesmo bebeu na forma suave e quase sussurrada de cantar de Chet Baker.>
Outro exemplo interessante foi o caso do quadrinista baiano Hugo Canuto, que usou o estilo de Jack Kirby para recriar a mitologia do candomblé. A HQ Contos dos Orixás, lançada originalmente em 2018 pela Ébórá Comics, chegou aos Estados Unidos em 2023, pela Abrams Books. Mas, nesse caso, o uso do estilo de Kirby é interpretado como homenagem. No cinema, os exemplos são inúmeros: cineastas absorvem estilos alheios — seja ao recriar cenas icônicas ou experimentar outras linguagens. Antigamente até se usava expressões dizendo que um filme era “godardiano” ou “felliniano” — e é justamente nessa releitura de legados que cada autor descobre sua própria voz.>
Segundo o pesquisador Lev Manovich, a lógica fundamental da mídia digital desde os anos 1970 é a de “separar e recombinar” elementos visuais — como forma, textura e luz — permitindo a criação de imagens sintéticas que escapam às limitações das mídias analógicas tradicionais. Softwares como o Photoshop, por exemplo, não foram pensados para desenhar, mas para alterar imagens existentes, reorganizando seus componentes internos. >
Para Manovich, a IA generativa leva essa lógica a um novo patamar: ela permite combinar inúmeros estilos e técnicas artísticas por meio de um único comando textual, produzindo imagens que jamais existiram antes — nem como desenho, nem como fotografia. Mas esse poder vem acompanhado de dilemas — ferramentas de IA tendem a “comprimir” ou padronizar detalhes únicos, favorecendo padrões mais comuns, o que pode limitar sua capacidade de gerar obras com mais profundidade e singularidade. Esse desafio continua na mão do artista.>
Mais importante do que discutir como fazemos arte — manualmente ou com auxílio da IA —, permanece uma pergunta fundamental: por que fazemos arte? A arte não reside apenas no domínio técnico ou estilístico, mas na capacidade de expressar questões humanas profundas, estabelecer conexões emocionais e provocar reflexões sobre o mundo em que vivemos. Talvez resida aí o grande desafio — e a grande oportunidade — da era da inteligência artificial: aproveitar o potencial dessas novas ferramentas sem perder de vista o motivo central pelo qual criamos e valorizamos a arte. No fim, a questão maior não é técnica, jurídica ou estilística. É existencial. Criamos não só para mostrar o mundo, mas para compreendê-lo, habitá-lo e transformá-lo. A era da IA não aboliu o estilo; ela nos obriga a revisitar seu sentido. A arte é um espelho da experiência humana e cabe a nós decidir se usaremos essas novas ferramentas para diversificar ou diluir esse reflexo.>
(Esse texto foi coescrito com uma IA)>
Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP>