Um retrato da Igreja do Bonfim nos anos de 1830 e o gatilho para um mistério

Leia texto de Pablo A. Iglesias Magalhães

Publicado em 14 de janeiro de 2024 às 11:34

Igreja do Bonfim nos anos de 1830 em pequena tela a óleo
Igreja do Bonfim nos anos de 1830 em pequena tela a óleo Crédito: Reprodução

O Instituto Flávia Abubakir (IFA), em Salvador, possui uma valiosa coleção de imagens de Salvador, constituída pelo casal Flávia e Frank Abubakir. No seu acervo, destacam-se imagens singulares que retratam a cidade e seu cotidiano entre os séculos XVII e XX, revelando novas informações sobre seus lugares e personagens.

Entre seus tesouros, há uma pequena tela a óleo, medindo 23,4 x 31,2 cm, que chamou-me a atenção por conta do cenário que representava. Na base de dados do Instituto, contudo, não havia maiores informações sobre aquele item do acervo.

Ao examinar a moldura, é possível ler uma inscrição em francês, grafada em tinta já esmaecida pelos anos: “Peint en 1820 par Buvelot, Secretaire, au Consulat Suisse de Rio Janeiro Mexico Vue de L’Eglise di Santa Fide ou est le Tombeau de Fernand Cortez” (Pintado em 1820 por Buvelot, Secretário, no Consulado Suíço do Rio de Janeiro Mexico Vista da Igreja de Santa Fé, onde está o túmulo de Hernan Cortez). Estava aí o gatilho para um mistério: o corpo do conquistador espanhol nunca esteve na Igreja de Santa Fé, no México.

Havia, ademais, inconsistências entre a inscrição e a cena representada. Uma igreja mexicana não fazia sentido, visto retratar homens e mulheres negros, em um cenário de ladeira sem calçamento e modestas casas. Um cenário muito mais baiano do que mexicano. Mas, qual a Igreja retratada na imagem? Identificá-la seria a chave para assinalar o local correto. Assim, ignoramos parte da inscrição e passamos a tentar identificar a igreja.

Os pináculos das torres na tela não remetiam a nenhuma das atuais igrejas da capital baiana. Por ser uma representação dos fundos da Igreja, em nada facilitou a identificação. Porém, uma visita ao Bonfim em meados de dezembro passado me fez perceber algumas similaridades.

Permanecia, contudo, a questão de que os pináculos das torres em nada pareciam com as estruturas atualmente presentes no alto das duas torres da Igreja do Bonfim. A imagem mais antiga que conhecíamos da Igreja do Senhor do Bonfim era a gravura feita a partir da foto de Victor Frond (1858) e publicada no livro de Charles Ribeyrolles (1861), que já mostrava os pináculos como estão hoje em dia.

Eis que no acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro existe um desenho em nanquim da Igreja do Bonfim, feito entre 1836 e 1839, conservando os antigos pináculos (http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13874), tal qual a pintura atribuída a Buvelot. Mistério, em parte, resolvido.

Consideramos a atribuição de autoria a Abram-Louis Buvelot, mas descartamos a data indicada de 1820, posto que o artista nasceu em 3 de março de 1814, em Morges, na Suíça. Deixou sua cidade natal em dezembro de 1830, para estudar na Escola de Desenho de Lausanne, dirigida pelo pintor suíço Marc Louis Arlaud (1772 – 1845). Por volta de 1834, passou sete meses em Paris, onde foi aluno do pintor francês Camille Flers (1802 – 1868), que estivera no Rio de Janeiro entre 1821 e 1823.

Buvelot viajou para a Bahia, onde já se encontrava seu tio, François Buvelot, proprietário de uma plantação de café na colônia Leopoldina. O jovem artista veio para Salvador em 1835, onde sobreviveu ministrando aulas de pintura. Entre 1839 e 1840 anunciou ter “aberto uma casa onde desenha paisagens, retratos de todos os tamanhos e tudo quanto diz respeito a esta arte” (Correio Mercantil, 8 de fevereiro de 1839), associando-se ao também suíço Frédéric Albert Gabriel Secretan (1793-1852), personagem importante para a memória gráfica da Bahia e de Pernambuco. No ano seguinte, associou-se ao pintor francês Louis Auguste Moreau (1818 – 1877) com quem ministrou aulas de desenho e pintura na rua Direita do Palácio, nº 65 (Correio Mercantil, 29 de janeiro de 1840). Na coleção Abubakir há mais três telas de Buvelot, com vistas da Bahia, que possivelmente datam desse período.

Buvelot deixou a Bahia, no patacho Minerva, em 25 de outubro de 1840, chegando ao Rio de Janeiro em 31 de outubro (Jornal do Commercio, 1 de novembro 1840). Três dias depois registrou-se no livro de legitimação de passaportes como suíço, solteiro, 27 anos, retratista, 3-11-1840 (Arquivo Nacional, Col. 381, vol. 13, fl. 263). Faleceria em Melbourne, Austrália, em 1888.

A tela, aceitando que seu autor seria mesmo Buvelot, foi produzida, portanto, não em 1820, mas entre 1835 e 1840, quando o artista atuou em Salvador. A Igreja do Bonfim, contava, então, 90 anos, construída por iniciativa do capitão da marinha portuguesa Theodozio Rodrigues de Faria, entre 1745 e 1746, tendo-se finalizado a parte externa em 1772, incluindo as duas torres primitivas.

Em primeiro plano, estão algumas casas, manifestando alguma tranquilidade. Ledo engano. A Cidade da Bahia não estava tão tranquila quanto na pintura de Buvelot. A Revolta dos Malês (1835), a Cemiterada (1836), ocorrida após a proibição de sepultamento dentro dos templos religiosos católicos, e a Sabinada (1837-38), guerra civil impulsionada por ideais republicanos e federalistas, agitavam a cidade e seus moradores. Buvelot vivenciou uma Bahia politicamente instável e rebelde.

Interessante notar que, diferente de outras representações conhecidas da Colina Sagrada, a grande protagonista da cena não é a Igreja do Bonfim, mas o cotidiano local. Destaca-se o movimento das pessoas comuns, quase todos negros, possivelmente alguns escravizados. Há uma quituteira, talvez ganhadeira, com tabuleiro na cabeça, e ao seu lado um negro com um pote de barro também sobre a cabeça. Ainda compõe o cenário uma cadeira de arruar carregada por dois negros, mulheres negras conversando e um cavaleiro, que parecer ser o único personagem branco na tela, que deve ter sido produzida entre 1835 e 1840. Talvez seja este, o mais antigo retrato que temos da Igreja do Bonfim.