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Publicado em 6 de janeiro de 2024 às 11:00
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Há umas semanas, li alguma coisa sobre Gilberto Gil ter ensinado, à filha Bela, a importância do “direito ao segredo”, esse conceito tão bonito que tá lá na Constituição Federal. É óbvio que há esquinas e todas aquelas possibilidades de interpretações dentro da lei, os “tipos” de segredo e tal, mas o que ficou em mim, dessa lição de pai pra filha, foi bem simples e soou familiar: ninguém precisa falar sobre si, bastando, para isso, não ter vontade. >
Essa conversa ficou em minha cabeça por mais tempo, também por ter sido justamente depois de eu ter anunciado um desejo de “namorar” escondido e, em seguida, ter topado realizar esse desejo, com alguém de quem pouco eu sabia. As informações eram apenas suficientes pra supor afinidades e ter certeza de que ele não me ofereceria perigo. O segredo não tinha um motivo específico, nem havia ninguém me perseguindo ou procurando saber. Era só um querer. Fantasia, brincar livre e exercer o direito de sumir.>
Combinamos – sem nos conhecermos nem por chamada de vídeo – nove dias numa casa pequenininha, perto de uma praia bonita. Foi desse jeito mesmo. Eu, um interessante “desconhecido”, um quarto, uma cama, um banheiro e uma cozinha americana, por nove dias. Em segredo. Isso, enquanto, lá fora, rolavam Natal/Réveillon, com todos os rituais associados. Uma espécie de Thelma e Louise adaptado, nos dias em que o planeta declarava aqueles sentimentos anuais e mergulhava nas hipérboles e pirotecnias costumeiras. >
Agora e aqui, ainda a tentação de contar das epifanias e situações da intimidade fácil, dos prazeres combinados e cumpridos, da elegância que nos acompanhou e do zero estranhamento que senti. Foi muito bom, seria levinho escrever e as pessoas curtem ler histórias assim. Para um “bom causo” publicável, bastava trocar uns detalhes. Assim, não descumpriria o acordo e ficaria tudo bem. Mas, de repente, a consciência de que o “direito ao segredo” desse “nós” recém-nascido (possivelmente efêmero e é tudo bem nem saber) não é algo que tenha dono além do “nós” que existiu ali. Aquele conteúdo também é feito desse silêncio no qual decido, então, não mexer. >
Bobagem? Pode ser. Mas contar a minha história me transforma, precisamente enquanto me narro. Contar uma história interfere na história, fiquei pensando assim. Ou na elaboração dela. Mesmo que eu conte só para a minha amiga mais íntima, um acontecimento bem pessoal. Ainda que eu escreva um conto com o cumprimento rigoroso de todas as regras de preservação dos personagens, quando é o caso. Mesmo com a mais competente literalidade, se a intenção for expor apenas a verdade dos fatos. O verbo também constrói. Tudo por ele é tocado.>
O que pode ser ruim, bom ou nada, a depender, e não é esse juízo que faço. Há um tempo, mais coisas do que gostaríamos eram silêncio e isso também não ajudava em tudo, pelo contrário. É medida, acho. E escolha, no que é íntimo e pessoal. Agora sabemos bibliotecas e universidades inteiras sobre funções, múltiplos meios e modos de narrar. Junto com isso, se fortalece o imperativo de que “as histórias precisam ser contadas”, “eu preciso dizer o que sinto”, “não tenho nada a esconder”. Uma (entre tantas) dimensão do humano passa a protagonizar todos os atos. Certo, vamos nessa. Mas e do segredo? Ninguém tem saudade?>
Eu tenho, descobri. Poder falar não é ser obrigado e isso parece bem óbvio, mas não é, na prática. A “obrigatoriedade” foi internalizada. Você observe como é comum que a gente viva uma situação já pensando em como ela poderá ser narrada. Às vezes já fazemos foto e legenda, em cima do lance. Minimamente, já gravamos um áudio pra alguém ou escrevemos uma mensagem. Galera mais surtada já abre uma live. Às vezes chorando, já viu? Fico besta e me perguntando sobre o que a gente deixa de elaborar quando, enquanto vive, já precisa comunicar. >
Na psicanálise, a qualquer momento, uma sessão pode ser interrompida, se algo importante for vivido ou falado. Aí, só retoma no encontro seguinte. Quando esse corte é bem-feito, lhe joga num silêncio onde você labuta por dias, até que alguma coisa seja compreendida, construída e/ou iluminada. Às vezes é bem desconfortável. Também pode ser um prazer danado. Nesse processo, não dá pra falar muita coisa. É um natural estado de segredo, que se impõe imenso e inevitável. Essa necessidade humana, esse direito constitucional que, hoje, nem a vontade de escrever um texto cheio de poesia – meio doc, meio ficção - conseguiu me roubar. >
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo>