‘Licença-paixão’: enquanto não é um direito, a gente precisa improvisar

Pergunte a qualquer psiquiatra se uma pessoa apaixonada tem condições de trabalhar

Publicado em 27 de abril de 2024 às 11:00

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É porque o mundo nunca foi bem-humorado como deveria. É porque todo mundo respeita tristeza, mas não felicidade. É porque temos muitos problemas relacionados a afetos e sexualidades. É porque confundimos seriedade com chatice. É porque a gente adora diagnósticos complicados, mas desdenha saúde simplezinha. Também é porque temos muita dificuldade em lidar com prazeres e transbordamentos vários. É porque somos viciados em certo tipo de ‘produtividade’.

É porque precisamos exercer controle e ser controlados. É por causa da revolução industrial, das religiões, da política, do capitalismo e de todos os parentes antipáticos. É por causa de chefes carrancudos. É porque expulsaram Wilhelm Reich da Sociedade Psicanalítica de Viena que a gente não tem, por exemplo, direto legal à ‘licença-paixão’. Se quiser, pode rir. Mas eu não estou brincando.

Pergunte a qualquer psiquiatra se uma pessoa apaixonada tem condições de trabalhar. Ou de cumprir, normalmente, seus afazeres diários. A não ser que o profissional esteja de conluio com os donos dos meios de produção (e a verdade é que quase todo mundo está), ele vai dizer que não, que não há a menor possibilidade.

Você pode viver normal se estiver com tesão ou indo com a cara ou curtindo um pouco ou tentando pra ver se dá certo ou simpatizando bastante. Zero impacto. Até amando você consegue produzir com tranquilidade, levar o cachorro pra tomar banho, priorizar lavar os pratos. Mas se o caso for de paixão a vera, lembrar de desligar o farol do carro estacionado pode ser um desafio, que dirá entregar o relatório dentro do prazo.

Tudo da vida cotidiana fica meio complicado. Em qualquer idade, em qualquer tempo, e dane-se Bauman que o povo até hoje adora citar. Nada mais sólido do que uma paixão bem apaixonada. Líquida, quem fica é a rotina. Por isso que a gente desliza nela, com a certeza que tem coisas bem mais importantes pra fazer e pensar.

É físico, é no corpo, é palpável. Aquela psiquiatra famosa que eu gosto, Ana Beatriz Barbosa, explica bem direitinho. Ela fala (quase sempre rindo) que, durante a vigência desse sentimento, todo ser humano é um viciado no objeto romântico, que invade o centro do espelho (escute É você, dos Tribalistas). Nesse tempo, não adianta tentar resistir: tudo que se quer é saber do outro, tocar o outro, estar com o outro. Melhor ir. Mesmo quando a gente tenta evitar, acontece de pensar no vivente e nem desses pensamentos, a vida concreta consegue ganhar.

Ana também diz que esse estado alterado (bagunçado e intenso) de humanidade pode durar de sete meses a três anos. Mais do que isso, nossos cérebros não conseguiriam suportar. Depois desse tempo inicial, as coisas vão se ajustando. Se não evoluiu, a relação acaba. Quando ‘dá certo’ (vencidos todos aqueles processos sobre os quais Lacan falou, mas aí sou eu pensando aqui), a paixão passa a ser intermitente e misturada com outros sentimentos mais suaves, digamos. Aí, sim, a vida chega a um ‘novo normal’. Igual a antes, suspeito de que nunca mais será.

(Seja qual for o desfecho, paixões importantes nos modificam e essa é parte da graça.)

Tudo muito fácil de diagnosticar, não vejo dificuldade. Então, uma vez fechado o diagnóstico, seria muito justo conceder licença ao trabalhador que estivesse passando por esse momento de (deliciosa) provação. É claro que profissionais capacitados poderiam, facilmente, perceber possíveis patologias permanentes, desvios e fraudes que posso até supor. Aí, é encaminhar da maneira mais pertinente. Por exemplo, quem fingisse paixão, mas estivesse só com fogo no rabo. Fraude. Senta lá, Cláudia. Licença negada.

Outra coisa é esse povo que se apaixona não sei quantas vezes por ano. Caso de tratamento psicológico. Os narcisistas ‘love bombers’ também já seriam identificados e, assim, protegeríamos toda a sociedade. Quem estivesse apaixonado sem reciprocidade poderia ter a licença, coitado. Mas com apoio médico pra superar. Finalmente, às pessoas mutuamente apaixonadas, apenas a licença. Remunerada, claro. Avaliação a cada três meses pra ver se há condições de retorno ao trabalho.

(Talvez, com o tempo, começar a trabalhar de casa, depois voltar ao presencial. Enfim, medidas específicas para cada caso, um olhar humanizado.)

Tudo lindo e civilizado, seria. Eu acho. Mas, infelizmente, só artistas é que levam a sério as pessoas apaixonadas. O resto do mundo caga. É também por essa hierarquia toda errada - entre o que é importante e o que é frivolidade – que a humanidade está do jeito que está. É por isso que minha amiga - que tá apaixonadíssima, depois de muitos anos - vive inventando lorotas. Principalmente, pra bloquear o turno (em dia útil) que ela e o namorado reservaram para apenas namorar.

Naquelas cinco horas semanais, ela me contou que não soltam uma bomba no Oriente Médio. No mesmo período, nenhum cachorro morre em bagageiro de avião, nenhuma criança é agredida e todos os outros problemas e catástrofes - pessoais e coletivos - se recolhem, envergonhados. Ela também me falou que no encontro das próprias forças e fragilidades com as forças e fragilidades do outro, ambos imersos na química (e biologia e física e geografia e história) daquela paixão, é que ela sente coisas próximas do que poderia chamar de ‘espiritualidade’.

Tá, ela me disse isso fazendo graça. Mas entendo perfeitamente o sentido e fico suspirando o bem que faria ao planeta se todos os casais apaixonados tivessem tempo de sobra pra passar entre músicas, abraços, sexos, danças, brindes e aquelas conversas que quase sempre se referem ao próprio casal. Isso é meditação, sintonia da mais alta qualidade, é ‘pray for’ tudo que precisa de oração. É cuidar da egrégora, do jeito mais natural, sem precisar de ‘coach’ nem de concentração nem de mais nada.

Pauta de interesse coletivo, portanto, a ‘licença-paixão’. Confere? Questão de civilidade essa pausa que, por enquanto, mora nas esquinas dos dias, em minutos inventados, em ‘bunkers’ feitos de tempo e com dois corpos, muitas vezes, ocupando o mesmo espaço. Entre o susto e o aconchego, juntando outras pessoas pra poder viver o ‘nós’, inventado horas, existindo em duplicidade. O que eu sei é que é lindo, dá um trabalho danado e exige criatividade, esse tempo de amar que, enquanto não é um direito, a gente precisa improvisar.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo