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Mariana Paiva
Publicado em 28 de setembro de 2024 às 05:00
Esses tempos teve um aí que veio dizer que mulher não devia ser CEO. Qual o maior problema dessa ideia? É que ele não tem que achar nada. Mulher pode o que ela quiser: ser CEO, dona de casa e até tudo junto, se for da vontade dela. Deixem as mulheres em paz. >
Porque mulheres são pessoas dotadas de vontade, capazes de escolher por si só e de responder por seus atos. Aliás, são elas que seguram as pontas em grande parte dos lares do país. Não tem certo nem errado, nem uma que seja melhor que a outra. Toda mulher é absolutamente legítima pra ser quem é, e isso não sou quem diz, é um fato. Mas na mulher todo mundo tem um pitaco a dar: a roupa, o jeito, o tom da voz. >
Tudo que no homem é tolerável na mulher fica "feio". E tudo que no homem é feio na mulher, segundo diz o senso comum (sempre burrinho, coitado), é "mais feio ainda". Vou dar um exemplo aqui: palavrão. Sempre tem alguém pra dizer: "Na boca de homem é horrível, mas na de mulher é pior". Pior por que? >
Nas empresas, a gente não vê ninguém perguntando nos processos seletivos se o possível funcionário tem filhos, quer ter ou se tem com quem deixar caso precise dar plantão. Mas se for mulher, a gente sabe que pergunta. "Tem quem fique com ele?", uma pergunta clássica depois da resposta que a mulher é mãe. É batata. Chega dia das mães tá todo mundo chorando com propaganda de perfume na televisão, mas até maio aparecer na folhinha é isso. Um segundo domingo expia os dedos apontados de um ano inteiro.>
Mas também todo mundo acha que pode se meter no corpo da mulher. "Você faz dieta ou tá tranquila com seu corpo? Nem é por estética que eu falo, mas por saúde mesmo", pergunta quem praticamente nunca te viu. Ser mulher é ser uma pessoa pública, praticamente uma celebridade sem os benefícios, ter de responder perguntas constrangedoras o dia inteiro. Se trabalha muito na rua tá errada, se é dona de casa (nunca caia na armadilha de achar que essa não trabalha) tá errada, se botou Botox tá errada, se tiver ruga tá errada. Mulher tá sempre, basta existir. Fácil não é.>
Enquanto isso, Richard Gere é um charme grisalho. Agora vá você, mulher, liberar seu cabelo natural pra ouvir besteira de gente desconhecida na rua. "Tá descuidada. Você não pensa em pintar?". Se for mãe cedo podia ter esperado mais. Se for tarde, é quase "avó do menino, por isso faz todas as vontades". E se não quiser ter filhos, você é insensível, nunca vai conhecer o amor. Veja só, tem como agradar um mundo assim?>
A resposta é não, não tem como agradar um mundo que odeia as mulheres. O que o discurso daquele lá revela é isso. Todo mundo se acha no direito de dizer o que a mulher deve, o que a mulher pode. Enquanto isso, o almofadinha que "acha" como a mulher ideal deve ser podia estar buscando sua melhora, mas não, fica ocupado com a vida de Quelé. Fazendo esse esforço tão grande pra viver nesse universo em que as mulheres existem, são mães, amigas, esposas, CEOs, dão risadas, sentem prazer, comem, viajam, têm dinheiro e até pagam para as empresas em que ele tem dinheiro investido. Um esforço tão grande pra aceitar mulher, parecendo aqueles filmes dos anos 1980 de Sessão da Tarde, em que o adolescente ficava montando a mulher ideal. Freud explica. Aí só terapia mesmo. >
Ah, mas pediu desculpa. Assim até meu ex-amigo trash pedia, porque bateu no bolso, né? Perdeu uns contratos. Não que eu ache que tenha sido distração de gente tão treinada e que vive de treinar os outros. Não foi. Mas pelo menos a gente espera que tenha entendido que, como a gente bem diz aqui na Bahia, ele dobre a língua dele pra falar de mulher. >
Mariana Paiva é escritora, jornalista, consultora em Diversidade, Equidade e Inclusão na Awá Cultura e Gente, head de DE&I no RS Advogados e colunista do Correio*>