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Toda mulher sabe que liberdade é palavra de luxo

Ainda mais se é uma mulher preta: seus ancestrais tinham dono. Você não.

Publicado em 29 de junho de 2025 às 05:00

Parece esquema de pirâmide: quando acontece uma coisa de ruim no mundo, logo vem alguém pra dizer que foi culpa da mulher. E mais alguém, e mais alguém, até um coro de vozes furiosas se criar, numa indisfarçada misoginia. Sim, vivemos numa sociedade que odeia mulheres.

E as mães? Essas são amadas só até a página 2: até que se separem ou enviuvem e queiram viver sua liberdade, até que se lembrem donas e proprietárias do próprio corpo, até que discordem do rumo que filhos e outros familiares decidam pra elas. Porque todo mundo - na visão da sociedade misógina - sabe o que é melhor pra uma mulher, menos ela. Ou então até que elas precisem de rede de apoio para trabalhar, para ser contratadas nas empresas, ou de uma certa compreensão porque as crianças ficaram doentes. Dia de gostar de mãe é segundo domingo de maio e não se fala mais nisso. E mãe nem é mulher, dentro da perspectiva do mundo em que vivemos. Dá um trabalho danado desconstruir.

Agora imagina uma mulher viajando sozinha, amarradona na aventura que tá vivendo. Que revolução. Quando dá tudo errado, mulher, me diga aí se no seu sonho mais íntimo não é isso também que você quer? Um destino só seu, sem ter que negociar o passeio das férias com ninguém, conhecendo gente no meio do caminho, pensando na vida e seguindo seu ritmo, sem ter que acordar mais cedo ou mais tarde do que seu desejo? Seja você ou Julia Roberts em Comer, Rezar, Amar, toda mulher sabe que liberdade é uma palavra de luxo. Ainda mais se é uma mulher preta: seus ancestrais tinham dono. Você não.

É bonito ver uma mulher livre em ação. Ela tem uma aura que não se encontra em qualquer lugar, porque liberdade é flor de difícil cultivo, e há que se andar com ela numa mão e com uma espada noutra. Pra abrir os caminhos e pra por vezes lutar, defendê-la dos olhares, das palavras rudes, dos comentários de quem tem medo. Uma mulher livre desmonta a coragem e as certezas de muita gente. “Então é possível?", pensarão algumas. "Mas essa possibilidade não pode chegar aqui em casa", pensam outros. Desse medo nasce a violência. As estatísticas não negam: a cada seis horas, uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil.

Todos os dias, homens engravatados em reuniões intermináveis não conseguem evitar tragédias com mulheres. Têm poder mas pouca vontade dentro de suas salas climatizadas, que mais servem pra fechar acordos e lobbies escusos. O que fariam os políticos, afinal, com mulheres livres que se recusassem a aparecer nas fotos oficiais porque teriam compromisso com seus próprios projetos?

Os comentários diante da morte trágica de uma mulher feliz não assombram mais ninguém. A estupidez humana, a grosseria e a burrice - sim, ela mesma - já saíram dos bueiros faz tempo, e andam sem vergonha de se exibir por aí. Logo chegam os "preocupados", dizendo que se ela, Juliana, não tivesse viajado sozinha, não correria tantos riscos. Seguro mesmo deve ser ficar dentro de casa burnindo panela e passando fundo de cueca borrada, né? Naturalmente, enquanto o homem faz pós-graduação, janta com os clientes, recebe promoções, viaja toda semana. Pois é, também lembrei de gente.

Um acidente que poderia acontecer com qualquer pessoa, mas se é com uma mulher, parece a oportunidade perfeita pra deixar o chorume da sua misoginia escorrer. Era a hora de dizer que não tinha plano de socorro para quem faz trilha no lugar. Era a hora de falar da omissão do governo da Indonésia, das fake news que foram espalhadas. Era hora de falar dos homens - olhe que existem uns exemplares melhores que podem não precisar de recall - que ficaram perto do corpo de Juliana até que o resgate chegasse, evitando que ela caísse mais. Era hora de muitas coisas, mas você perdeu o timing: preferiu falar que lugar de mulher é em casa. Que se ela tivesse em casa não dava nada. Certeza?

Pois fica aí que vou te contar um negócio: sabia que na pandemia e nas emergências climáticas os abusos e as violências contra as mulheres pioram? Sabe por que? Porque elas ficam em casa. Adivinha com quem?

Mariana Paiva é escritora, jornalista, doutora pela Unicamp, idealizadora da Awá Cultura e Gente e colunista do Correio*