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O tigrinho não joga dados

Um jogo, para ser lúdico, precisa ser imprevisível, e quando os jogos deixam de ser lúdicos podem se tornar um problema

  • Foto do(a) author(a) Andre Stangl
  • Andre Stangl

Publicado em 11 de agosto de 2024 às 05:00

Jogar, ou fazer uma fezinha, faz parte da tradição do brasileiro. Jogo do bicho, dominó, futebol, briga de galo. Para muitos, um simples lance de dados pode mudar tudo. É a oportunidade de resolver de uma só vez todos os problemas, que em geral parecem ser apenas financeiros. Quem dera. Mas por enquanto não custa sonhar ou pelo menos não custava.

O mercado de apostas esportivas e jogos online tem apresentado um crescimento significativo no Brasil, impulsionado pela recente regulamentação do setor e pelo surgimento de diversas plataformas de apostas, as chamadas "bets". Mas foi o famoso jogo do tigrinho que ganhou a medalha… de furada do ano. O tigrinho opera de maneira ilegal no país, sem o devido registro e autorização. O jogo tem sido alvo de críticas e investigações devido às práticas ilícitas e à falta de transparência. Além disso, é acusado de utilizar influenciadores digitais para se promover, oferecendo privilégios nas apostas em troca de publicidade. Alguns desses influenciadores foram até presos.

Já as plataformas conhecidas como "bets" operam através de um conjunto mais complexo, envolvendo até grandes empresas do esporte. Com sites e apps de fácil uso, nos quais os usuários fazem suas apostas, em geral com pequenos valores, alimentam o mito de que também é fácil ganhar. A mais famosa é a Bet365. Fundada em 2000, no Reino Unido, a empresa opera em diversos países. Uma espécie de Las Vegas virtual, incluindo apostas esportivas, cassino online, pôquer e bingo. No Brasil, a Bet365 é uma das operadoras de apostas mais conhecidas, oferecendo métodos de pagamento adaptados ao mercado local, como o PIX. A plataforma é popular, principalmente, por suas apostas ao vivo durante as transmissões de eventos esportivos, permitindo aos usuários fazer apostas em tempo real. Apesar do sucesso, a empresa enfrentou várias controvérsias, como irregularidades regulatórias e até a recusa de pagamentos a vencedores.

Em dezembro de 2023, foi sancionada a Lei nº 14.790/2023, que regulamenta as apostas esportivas online no Brasil, as "bets". A legislação define regras para tributação, exploração e monitoramento dessas apostas, destinando 15% de Imposto de Renda sobre os ganhos dos apostadores e 88% do faturamento bruto das empresas para custeio de atividades, com 12% alocados para saúde, educação, segurança pública e turismo. Além disso, a lei exige políticas de jogo responsável, como avisos de desestímulo, proibição de participação de menores de 18 anos e monitoramento da atividade dos apostadores para garantir um uso saudável. A lei busca regularizar o mercado de apostas, garantindo alguma proteção aos consumidores e a transparência das operações.

Por outro lado, a regulamentação também vai permitir que o governo arrecade recursos significativos, que podem ser utilizados para diversos fins. E até para combater a ludopatia, um transtorno caracterizado pela incapacidade de resistir ao impulso de jogar, mesmo quando isso resulta em consequências negativas significativas para a vida pessoal, profissional e financeira do indivíduo

O termo vem do latim "ludus", que significa jogar ou brincar. O curioso é que a ludicidade é algo que sempre fez parte da vida, uma prática milenar que antecede até a formação de nossa civilização. Como mostra o clássico "Homo Ludens", do historiador Johan Huizinga, publicado em 1938. Huizinga sugere que a cultura surge a partir do jogo e que a vida social é enriquecida por formas lúdicas. Quando a gente era criança, não brincava de casinha, imitando nossos pais? É assim brincando que vamos aprendendo a conviver. Ele analisa a relação do jogo com a criação das leis, afinal os jogos precisam de regras, e até a guerra é uma forma de jogar, muitas vezes representada nas partidas de xadrez ou futebol. No livro, Huizinga traça a relação entre práticas como poesia, mitologia, filosofia e artes, com os jogos e brincadeiras.

Para Huizinga, o jogo tem características essenciais: é um exercício de liberdade, é distinto da vida cotidiana, pois tem hora e lugar próprios (fora da rotina), cria um tipo de organização com regras definidas, não precisa estar ligado a nenhum interesse material e por isso é diferente da vida real.

Os jogos servem como modelos dramáticos de nossas vidas psicológicas, proporcionando uma liberação de tensões específicas. Um exercício que pode nos ajudar a aprender a ganhar e, principalmente, a perder. O elemento central dos jogos é que o resultado é imprevisível. Ou pelo menos deveria ser. Os debates sobre os resultados de partidas de futebol às vezes parecem verdadeiros tratados em busca de causas e defeitos. Vivemos em uma sociedade tão obcecada com o sucesso que, às vezes, esquecemos que os jogos são apenas brincadeiras. Quando uma derrota não pode ser aceita, sem que se aponte uma causa, temos pistas de que acreditamos ou não em destino, sorte, graça, ou em acaso.

Os conceitos de sorte e acaso atravessam a Filosofia e têm implicações no racionalismo, no determinismo e nas crenças metafísicas. Aristóteles via a sorte como uma causa divina oculta à inteligência humana, enquanto os estóicos consideravam a crença no acaso uma forma de ignorar o destino. Na visão moderna, adotando uma abordagem probabilística, o acaso é entendido como a insuficiência de dados na previsão dos eventos.

Se você não acredita em acaso, até uma coincidência pode ser interpretada como um sinal de desígnios obscuros. Os junguianos chamam esse fenômeno de sincronicidade. Na ciência moderna, por outro lado, um acaso pode fazer sentido e ajudar em grandes descobertas ou invenções. Isso até ganhou um nome bonitinho, serendipidade.

Buscar sentido no acaso é algo milenar e faz parte de várias tradições. O sentido oracular pode ser lido jogando cartas, búzios, moedas e até através da borra de café. Embora isso pareça incompatível com o moderno universo das máquinas e IAs, a coisa não é bem assim. Pois dados aleatórios são um importante meio de construção de sentidos, como acontece no caso dos algoritmos randomizados.

O livro "Algoritmos para viver: a ciência exata das decisões humanas", de Brian Christian e Tom Griffiths, demonstra de maneira acessível e prática como os princípios da ciência da computação podem ser aplicados na vida cotidiana. Um dos capítulos mais interessantes do livro é dedicado a entender a importância e a utilidade da aleatoriedade na programação. Eles mostram como a aleatoriedade pode equilibrar a busca por novas informações e a otimização do uso de informações já conhecidas. Um exemplo prático disso é o uso de amostragem para simplificar a análise de grandes volumes de dados.

O livro apresenta um conceito bem curioso, o algoritmo pseudo-aleatório, um método determinístico utilizado na computação para gerar sequências de números que imitam a aleatoriedade. Esses algoritmos são eficientes, permitindo recriar as mesmas sequências a partir de um marcador inicial. Amplamente usados em simulações, criptografia e jogos, os algoritmos pseudo-aleatórios são essenciais em contextos em que a geração rápida de números é necessária. Mas eles não são por definição imprevisíveis, pois tentar programar o acaso é impensável.

A expressão "Deus não joga dados", atribuída a Albert Einstein, reflete sua oposição à mecânica quântica, que sugere que o comportamento das partículas subatômicas é probabilístico e indeterminado. Einstein acreditava em um universo determinístico, ainda que relativo. Um jogo, para ser lúdico, precisa ser imprevisível, e quando os jogos deixam de ser lúdicos podem se tornar um problema. Jogos manipulados, como o jogo do tigrinho, não jogam dados e sufocam a ludicidade no estreito horizonte das certezas. O acaso ou a sorte só pode nos inspirar se for livre para ser imprevisível. Esse texto contou com a assistência de uma IA

Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP