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Paulo Leandro
Publicado em 22 de abril de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
No tempo a.c. (antes do coronavírus) foi possível curtir um brinquedo tido como estranho logo ao tomar as ruas de Salvador, na virada do século XIX para o XX, quando desembarcaram aqui objetos esféricos e pulantes.>
Chamamos a estes objetos, provisoriamente, de bolas. Havia poucas, trazidas pelo menino traquina Zuza Ferreira, ao voltar da Inglaterra, onde fora passear por imposição da família, com o objetivo de dar-lhe uma melhor educação.>
O resultado de todo o zelo e mimo foi uma baderna a céu aberto pois Zuza não largou de ser peralta e o novo brinquedo exigia a participação de outros rapazes – era o The Association. Nasce, assim, o football, aportuguesado para futebol.>
No início, havia um livro de regras, mas não de táticas, então, ali onde fica o largo de Santana, onde vendia-se acarajé das filhas de Dinha, bem ali começaram os jogos improvisados, sabia-se marcar o gol e pouco mais.>
O impulso inicial – podemos imaginar – da rapaziada era abafar a bola e controlar aquela coisa marrom saltitante com as mãos, mas eis uma infração prevista no livrinho de regras. Só o goalkeeper, o guardião da meta, depois goleiro, podia usar as mãos.>
A tática resumia-se em dar um chutão pra cima e pra frente, o mais forte possível em direção ao goal adversário, marcado por estacas, sem travessão nem rede. Depois deste chutão, todos corriam atrás da perseguida e não havia – podemos imaginar – o foul.>
Foul é como o inglês chamava falta, hoje conhecida como a infração de paralisar a jogada usando uma força desproporcional sobre o corpo do adversário. Naquela animação de pioneiros, ignorantes de quase tudo sobre o football, era demais querer conhecer o foul.>
Eu sei que foi indo, foi indo e, em 1903, a agremiação de jovens mais organizada, por ter fundado um clube de cricket – esporte inglês praticado com bastão e bolinha – decidiu armar seu próprio team de football.>
Rapazes de educação fina, moradores do Corredor da Victoria, distribuíam convites para os jogos, escritos em letras clássicas, como as lidas até hoje em embalagem de Coca-cola, ainda inexistente naqueles idos.>
Mas tinha vinho do Porto com o qual brindavam após os disputados matches no Campo da Pólvora, berço do nosso football, em animados confrontos contra o time dos estudantes de medicina do Terreiro de Jesus e os integrantes da comunidade inglesa.>
Os ingleses estavam presentes, seja no cemitério, até hoje aberto para visitação na Ladeira da Barra, na construção de ferrovias, bondes, os primeiros puxados a tração animal, e até na água encanada e o primeiro vaso sanitário, além dos candeeiros.>
Tantas são as conquistas de Salvador e do football, pari passu! É preciso necessariamente entristecer-se ao saber da existência, mais de um século depois, de gente estúpida o suficiente para querer jogar tudo isso no nada ao quebrar o isolamento!>
Paulo Leandro é jornalista e professor doutor em Cultura e Sociedade.>