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Paulo Sales
Publicado em 19 de abril de 2021 às 05:00
- Atualizado há um ano
Olivia Colman e Anthony Hopkins no drama familiar Meu Pai (divulgação) Saí devastado de Meu Pai, filme de Florian Zeller. Um drama duro, amargo e ao mesmo tempo comovente e afetuoso, no qual percorremos um terreno movediço, que é o aniquilamento da lucidez provocado pelo Mal de Alzheimer. Acompanhamos a ruína mental e emocional de Anthony, o idoso desalojado da própria existência vivido com entrega extraordinária por Anthony Hopkins. Em algum momento, o seu sofrimento, o seu desamparo e a sua vulnerabilidade tornam-se nossos.
Deixei o filme e fui me abrigar no escuro da varanda. Sentia uma enorme compaixão por Anthony e também um desconforto estranho, como se aquele destino me aguardasse em breve. Pensei em minha mãe e liguei para ela, mesmo já sendo tarde. Conversamos um pouco e me senti mais leve. Mas Anthony permanecia ali, rondando como uma assombração. Sua história lembra a de tantas famílias com idosos incapacitados: a filha vai se mudar e não tem com quem deixá-lo.
No auge do desespero, por não saber mais quem era ou o que fazia naquele lugar desconhecido que deveria ser sua casa, ele se exaspera: “Eu me sinto como se estivesse perdendo todas as minhas folhas”. Isso mexeu comigo de uma forma que não sei mensurar. Anthony não perdia apenas os galhos, o vento e a chuva. Perdia a si mesmo.
Na canção Anthem, Leonard Cohen escreve que “há uma rachadura em tudo, e é assim que a luz entra”. No caso de Anthony ocorre o oposto: é através das rachaduras na sua mente que a luz se esvai, deixando apenas pasmo e incompreensão. O filme tem a capacidade de nos transportar para esse cérebro em frangalhos, alternando dias, pessoas, lugares, situações. Parafraseando Belchior, a sua alucinação é suportar o dia a dia. E o seu delírio é a experiência com coisas reais.
Anthony parece meu avô paterno nos seus anos derradeiros, implorando por migalhas de consciência enquanto se apagava aos poucos como um candeeiro sem gás. Parece Eunice, a mãe de Marcelo Rubens Paiva, que acabou derrotada pelo Alzheimer depois de enfrentar, com coragem e resiliência, os militares que assassinaram seu marido. Morreu anos atrás, já sem se dar conta de quem fora, mas seu filho honrou o seu legado no belo livro Ainda Estou Aqui.
Enquanto escrevo, recordo outras pessoas que se perderam na treva da demência. O escritor uruguaio Mario Benedetti foi uma delas. Sim, Benedetti, que nos legou coisas lindas como A Trégua, Gracías por el Fuego e Primavera num Espelho Partido, terminou como um arremedo de si mesmo, conforme descreveu seu amigo Juan Cruz no último encontro que tiveram: “Não sabia o que estava fazendo, onde estava, quem éramos, quem era. Como se tivessem roubado ou extraviado as chaves que guardam a felicidade de um homem.”
Não deve haver sofrimento que se assemelhe ao de se perder alguém querido antes da perda propriamente dita. Ganha-se um desconhecido, idêntico em tudo à pessoa que amamos, mas incapaz de se dar conta do nosso amor – ao menos no plano da racionalidade. Daí porque os afetos passam a se manifestar de maneira quase sensorial: um carinho no braço inerte, uma camisa sendo pacientemente vestida, um monólogo diante de uma estátua.
O que há ali dentro? O que o olhar absorto esconde? Apenas treva? Pensando bem, talvez seja o mais perfeito caminho de volta àquilo que fomos um dia, encerrados confortavelmente na inconsciência de um ninho escuro, aquoso e morno.