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Paulo Sales
Publicado em 26 de junho de 2023 às 15:46
Gosto muito de uma canção que Cesária Évora gravou com Caetano, chamada Regresso. Ela evoca algo de muito ancestral, de uma saudade enorme, nascida do tempo e da distância. Como se o passado fosse a matéria-prima que molda o presente – e talvez seja assim mesmo. “A chuva amiga, mamãe velha, chuva que há tanto tempo não batia assim. Ouvi dizer que a Cidade Velha e a ilha toda em poucos dias já virou jardim”. >
Esse embrenhar-se em nostalgia me leva a outra canção, esta do próprio Caetano: Genipapo Absoluto. Puro suco de memória, agora de um universo mais próximo de nós, nascidos e criados no Nordeste do Brasil. A voz da mãe, que é sua própria voz, o labor do pai e seu tanino, seu mel. “Praias, paixões fevereiras não dizem o que junhos de fumaça e frio”. A saudade como uma contraluz que vem do que se deixou para trás.>
Saudade que permanece e emana das reminiscências de minha mãe, do pequeno interior onde nasceu, Santa Inês. Lembranças que eu também guardo, mesmo passados 40 anos sem ir lá: a casa grande com o enorme jardim na frente, a gruta habitada por santos, o gosto da pitanga que colhíamos diretamente da varanda, os rostos sisudos dos antepassados em retratos na parede, os trilhos abandonados de uma antiga ferrovia na rua da frente.>
Recordo os dias de São João. Fogueiras, bombas, névoa sobre os morros que circundam a cidade. O cheiro do milho, o gosto do leite com nata, a algazarra de primos, a velha que pedia esmola com baba escorrendo da boca. Galinhas, porcos e pássaros. O sorriso de minha mãe no lugar que foi seu. Um mundo radicalmente oposto ao que estava acostumado na capital.>
Enfrentávamos longas, exaustivas e afetuosas viagens em família a bordo de Fuscas e Brasílias. O frio crescente à medida que adentrávamos o interior. A montanha que chamávamos de “pedra da boca” e que aguardávamos ansiosamente para rever quando passávamos por Milagres. Eu voltava a cabeça e contemplava, pelo vidro traseiro, aquele enorme maciço de pedra com uma boca imensa esculpida em sua face.>
Minha mente de criança absorvia tudo com fascínio e avidez: a vastidão avassaladora de céu e sertão, pessoas e animais que eram pouco mais que borrões na margem da pista. Estradas de uma Bahia árida e empobrecida cortando vilarejos anônimos – traduções de um país que aos poucos se desvencilhava do seu passado rural e seguia firme na direção do caos urbano. Quando me tornei adolescente e já não acompanhava meus pais rumo a Santa Inês, continuei cruzando estradas, reproduzindo numa escala muito maior o tédio e o encanto que experimentara na infância.>
Cesária canta em outra canção: “Sodade, sodade dessa minha terra”. Mas é a saudade de um lugar ou do que vivemos nesse lugar? Nascido em Salvador, encerro em mim Santa Inês, do mesmo modo que encerro em algum recanto obscuro a cidade de onde meus bisavós paternos vieram, possivelmente na região portuguesa de Trás-os-Montes. Minha árvore genealógica é um modesto arbusto com galhos desfolhados. Desconheço as minhas origens mais remotas e de que modo os sobrenomes que me identificam chegaram até mim.>
Carrego comigo todos esses fragmentos de outros tempos, mas não sinto falta do passado. Entendo como um período que teve sua relevância, mas acabou esmagado pelas descobertas e experiências subsequentes, que sedimentaram quem de fato sou. Não é um território apartado de mim, do qual me exilei e observo à distância, desejando regressar. Cultivo, claro, algumas saudades. Do meu pai. Da minha filha quando pequena. Da época em que a vida se descortinava feito uma enorme rodovia, na qual continuo avançando e espero permanecer, ao menos por mais um bom par de décadas.>
Como minha mãe, creio que nunca voltarei a Santa Inês. Até porque Santa Inês não existe mais. Falo da pequena cidade povoada pelos fantasmas de minha infância, com seus parentes hoje extintos e seus cheiros, sabores e epifanias esmaecidos. Toldada pela pátina dos anos, ela é, como diria Borges, um ínfimo instante do ontem. Para onde regressar, se não há mais destino?>