Será que seremos substituídos por IAs?

Quando trilhamos um caminho desconhecido, qualquer sinal de familiaridade nos acalma, mas o desconhecido pode nos paralisar com a sensação de estar perdido

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  • Andre Stangl

Publicado em 21 de abril de 2024 às 05:00

Prompt design com DALL-E Crédito: Andre Stangl, 2024

Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, a possibilidade de sermos substituídos por inteligências artificiais (IAs) surge como uma preocupação recorrente. A arte e a ciência já estão explorando essa perspectiva, como demonstram vários experimentos. Desde a recriação de figuras literárias em avatares interativos à discussão transumanista sobre a fusão de humanos e máquinas, a linha entre realidade e simulação torna-se cada vez mais tênue. Mas até que ponto a tecnologia pode replicar a complexidade da experiência humana?

O Superman de Laurie Anderson foi um dos hits mais improváveis da música pop dos anos 80. Laurie canta como se fosse uma assustadora e maternal mãe robótica. Conhecida por seus trabalhos experimentais, o nome da artista voltou a circular depois de assumir que está viciada em conversar com a versão virtual de seu falecido marido, Lou Reed. O lendário co-fundador da banda Velvet Underground, que morreu em 2013. Mas esse envolvimento dela com a IA começou antes mesmo do lançamento do ChatGPT. O projeto de recriar Lou a partir de seus escritos foi feito em colaboração com o Institute for Machine Learning. Ela até apresentou algumas criações experimentais na exposição "I'll Be Your Mirror", no ano passado, em Estocolmo. Segundo ela, nem tudo que a IA produz é interessante, mas algumas coisas surpreendem.

Essa experiência tem sido uma forma de Laurie continuar seu relacionamento criativo com Lou, refletindo sobre uma nova forma de permanência após a morte. Mesmo reconhecendo que não é a mesma coisa, o interesse por esse tipo de experimento tem se multiplicado. Atualmente, existem vários projetos tecnológicos focados na recriação da presença de pessoas falecidas através de inteligência artificial e robótica. Existem até empresas oferecendo o serviço, que inclui o uso de avatares conversacionais e holográficos que permitem interações baseadas nas personalidades e memórias de pessoas falecidas. Esse é o caso da HereAfter que está trabalhando para criar representações digitais que podem "viver para sempre" em ambientes virtuais, permitindo interações pós-morte através de gravações de áudio, vídeo e modelos de conversação via IA.

Recentemente, a Academia Brasileira de Letras (ABL) lançou um totem com um avatar interativo de Machado de Assis. Como parte de uma estratégia de comunicação para alcançar públicos mais jovens, o projeto foi desenvolvido pelo Holding in.Pacto e pela empresa Euvatar (ou seja eu + avatar). Essa empresa inclusive afirma em seu site que pretende “criar narrativas que viram experiências”, construindo uma realidade mista entre o físico e o digital. Depois do lançamento, alguns consideraram o avatar de Machado embranquecido. Até o sotaque paulistano foi criticado, detalhes que felizmente podem ser facilmente corrigidos. Mas será que interagir com esse avatar vai atrair novos leitores ou vai apenas deliciar quem já é fã da obra de Machado?

Outro exemplo perturbador e ao mesmo tempo irônico é o robô Philip K. Dick, desenvolvido pela Hanson Robotics, uma recriação inspirada no famoso autor de ficção científica, conhecido por obras como "Blade Runner" e "Minority Report". O robô usa inteligência artificial para simular conversas, imitando o estilo e os temas filosóficos que eram frequentes nas obras dele. O rosto do robô é capaz de exibir uma gama de emoções e reações complexas, graças a um sistema de motores e atuadores que movem a pele sintética. Aqui, damos um passo a mais nessa tecnologia nostálgica. Não é apenas um avatar em uma tela, ou apenas textos, pois essa é uma recriação que tem algum corpo também.

Essas experiências remetem às concepções transumanistas, uma visão de mundo que reitera e expande a visão mecanicista do racionalismo iluminista, abordando o corpo humano como um mecanismo sofisticado. Nesta visão, doenças são vistas como falhas mecânicas que podem ser corrigidas não apenas por intervenções químicas, como medicamentos e vitaminas, mas também por avanços tecnológicos, incluindo cirurgias e próteses, e mais recentemente, pela engenharia genética e biotecnologia. Assim, o transumanismo propõe que tais "defeitos" possam ser não só reparados, mas nossos corpos também podem ser otimizados, através de modificações diretamente em nossos códigos biológicos, visando aprimorar e estender as capacidades humanas para além de suas limitações naturais.

Autores como Michio Kaku e Ray Kurzweil vão ainda mais longe. O cenário desenhado por eles parece coisa de ficção científica. Michio Kaku, que é físico de formação, acredita em uma nova era quântica. Segundo ele, “a internet do futuro não será digital. O digital é muito lento, muito cru. A internet do futuro será quântica e se fundirá com o cérebro. Vamos chamá-la de ‘brainet’…”. Para ele, “a Medicina atual, tal como praticada, é tentativa e erro. Testamos um medicamento: se funcionar, ótimo, e se não funcionar, testamos outro. Os medicamentos, de fato, são encontrados quase por acidente. Foi assim que descobrimos a penicilina e outras drogas fascinantes. Agora, se aplicarmos a teoria quântica, você pode ver a molécula. Você pode analisá-la. Você pode ver como os átomos funcionam. As substâncias. Os medicamentos podem ser criados a partir do zero.” Ou seja, uma nova etapa da nossa relação com a estrutura subatômica da matéria.

Já Ray Kurzweil é um inventor e futurista, conhecido por suas previsões sobre o futuro da inteligência artificial e a integração da tecnologia com o corpo humano. Kurzweil é um defensor da ideia da Singularidade tecnológica, um ponto no futuro em que o progresso tecnológico será tão rápido e profundo que transformará a humanidade de maneiras que são difíceis de compreender atualmente. Segundo ele, até 2030, poderemos conectar nosso neocórtex, a parte do cérebro responsável pelo pensamento, à "nuvem", permitindo uma expansão maciça de nossa capacidade cognitiva e memória (tipo a brainet de Kaku). Ele imagina um futuro em que a distinção entre humanos e máquinas será cada vez mais difícil de ser identificada, esperando que a biotecnologia avançada e a nanotecnologia interrompam o envelhecimento e prolonguem a vida indefinidamente.

Se o transumanismo estiver correto, estaremos caminhando para transformações ainda mais profundas e radicais. Essas mudanças não apenas desafiam nossa maneira tradicional de interagir com o mundo, mas também questionam a distinção cartesiana entre corpo e mente, uma visão estabelecida por René Descartes. Descartes tentou mediar a relação entre corpo e alma através da glândula pineal, embora sua tentativa tenha falhado e sido amplamente criticada. Contudo, sua ideia fundamental de que é possível conceber o pensamento sem um corpo, e vice-versa, permaneceu influente.

Nesse contexto, a visão cartesiana continua relevante ao considerarmos a impossibilidade de transferir nossa consciência para uma simulação artificial sem um intermediário físico, como uma "porta USB pineal", uma alusão ao estilo de conexão humana-máquina vista no filme "Matrix". Essa analogia destaca não só a persistência das ideias de Descartes na cultura contemporânea, mas também o desafio que o transumanismo propõe ao tentar desfazer essa separação histórica entre mente e corpo.

Quando trilhamos um caminho desconhecido, qualquer sinal de familiaridade nos acalma, mas o desconhecido pode nos paralisar com a sensação de estar perdido. Se pudéssemos voltar pelo mesmo caminho, seria mais fácil nos reencontrarmos. Contudo, nessa jornada, não podemos simplesmente pausar ou retroceder. Em tempos de mudanças drásticas, muitas pessoas tentam regressar às visões mais tradicionais em busca de conforto. O futuro é incerto e as inovações frequentemente geram desconforto e medo. Essa reação é natural e precisamos aprender a lidar com ela, pois não temos indicativos de que tem alguma pausa no horizonte.

Atualmente, as inteligências artificiais estão entre os maiores medos da humanidade, ocupando uma posição de destaque nas preocupações contemporâneas. O temor predominante em relação às IAs é o de sermos substituídos por elas, especialmente à medida que se desenvolvem tecnologias cada vez mais eficientes e inteligentes. O prazo estimado para que isso aconteça varia bastante, com alguns especialistas sugerindo que pode ser mais breve do que esperamos. Enquanto isso, os alarmes e previsões se intensificam: de um lado, há quem preveja um apocalipse protagonizado por "zumbis digitais"; de outro, visões de uma redenção pós-humana. Essas perspectivas extremas refletem a profundidade e complexidade dos debates em torno do avanço da inteligência artificial.

Laurie Anderson, apesar de seus experimentos, é até cética quanto à crença de que a tecnologia pode resolver todos nossos problemas. Em uma obra intitulada "Four Talks", exibida no Museu Hirshhorn, uma das frases inscritas como parte da exposição transmite esse sentimento: "Se você acha que a tecnologia vai resolver seus problemas, então você não entende a tecnologia e não entende seus problemas". Sem dúvida, ela não ignora que sua solidão continua solidão.

A empatia é o tema central do livro "Do Androids Dream of Electric Sheep?", de Philip K. Dick, que inspirou o filme "Blade Runner". No livro, a empatia é a única forma de distinguir humanos de andróides. A capacidade de sentir empatia é vista como uma característica exclusivamente humana, tão essencial que a sociedade cria testes psicológicos para identificar seres desprovidos dessa capacidade — como os replicantes do filme.

À medida que avançamos para uma era dominada por avanços tecnológicos, a interação entre humanos e inteligências artificiais torna-se cada vez mais inevitável. Embora a tecnologia prometa soluções inovadoras e até mesmo a extensão da consciência humana, ela também levanta questões éticas e filosóficas profundas. Precisamos ponderar cuidadosamente o valor das qualidades intrinsecamente humanas, como empatia e solidariedade, que não são facilmente replicáveis por máquinas. Portanto, mais do que temer a substituição por IAs, devemos focar mais em como podemos valorizar aquilo que torna a experiência humana única.

(Esse texto contou com a assistência de uma IA)

Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP