Por dentro da lista de transplantes: entenda como funciona o sistema em que 65 mil pessoas aguardam por um órgão

O caso de Faustão, que passou por um transplante cardíaco, chamou atenção para o financiamento; hoje, 95% dos procedimentos são custeados pelo SUS

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  • Thais Borges

Publicado em 26 de agosto de 2023 às 05:00

Faustão aguarda por um transplante de coração
Faustão aguarda por um transplante de coração Crédito: Reprodução

Espera, sofrimento, ansiedade. Basta ouvir "fila de transplantes" para imaginar uma peregrinação ou um tempo que parece tanto finito quanto infinito para quem aguarda nela. Com o Brasil tendo o maior sistema público de transplantes em todo o mundo e com até 95% dos procedimentos sendo financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), todos os dias, a expectativa por um novo órgão coloca pessoas de diferentes realidades sociais no mesmo contexto.

Assim, quando o boletim médico do apresentador Fausto Silva, o Faustão, indicou que ele estava na fila única de transplantes por um novo coração, a notícia não apenas provocou comoção como gerou questionamentos. Nem todo mundo entendeu por que um dos apresentadores mais bem-sucedidos da televisão brasileira, internado no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, estaria aguardando por um órgão no SUS. Isso acontece porque, mesmo em hospitais particulares, é o SUS quem custeia o procedimento.

Há, contudo, uma diferença importante: embora a expressão ‘fila’ tenha se popularizado, ela não é a melhor definição para o processo. Na verdade, trata-se de uma lista de transplantes, especialmente porque os critérios, na maior parte das vezes, têm a ver com compatibilidade e gravidade, com exceção das córneas.

“Para a córnea, é tempo de chegada, ou seja, é uma fila cronológica. Quem se inscreveu primeiro transplanta primeiro. Os demais órgãos têm critérios específicos. Aquele que é mais compatível passa a ser o primeiro”, explica o coordenador do Sistema Estadual de Transplantes, Eraldo Moura.

Ou seja: para o órgão de um doador X, um paciente pode ser o mais compatível entre todos, sendo, portanto, a primeira escolha. Já para receber o órgão de outro doador Y, esse mesmo paciente pode viver uma situação oposta e ir parar no final da lista, sendo o menos compatível entre os que aguardam.

Na Bahia, onde só são feitos transplantes de rim, fígado e córneas, pouco mais de 3,2 mil pessoas aguardam por um desses órgãos. O transplante de coração está suspenso no estado há dois anos, como uma reportagem do CORREIO mostrou na última terça-feira (22). Atualmente, 58 baianos esperam por um coração, mas para fazer o procedimento em outros estados.

Em todo o Brasil, são mais de 65 mil na lista. Em 2022, o país teve o maior índice de recusa de doação de órgãos em dez anos, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), chegando a 47%. Antes da pandemia da covid-19, esse percentual era de 40%.

Com taxas baixas de doação de órgãos no país, por vezes o paciente não pode mais esperar. Esta semana, a equipe médica que atende o funkeiro MC Marcinho, conhecido pelo hit 'Glamurosa' nos anos 2000, decidiu retirá-lo da lista de transplante cardíaco porque o músico teve uma infecção generalizada. Em estado crítico, ele não conseguiria passar pela cirurgia.

Por que essa lista é única?

Os estados têm listas regionais, mas todos estão conectados a esse sistema nacional onde há uma lista única para todo o país. Precisa ser feito dessa forma para garantir que não vai existir nenhum favorecimento de um paciente ou outro e que todos terão as mesmas chances, como explica o médico Pedro Carvalho Diniz, que foi coordenador da Central Regional de Transplantes de Petrolina (PE) por dez anos, até março deste ano.

“Se um paciente foi transplantado em Pernambuco, tendo a lista única, ele não sai apenas da lista de Pernambuco, ele sai do Brasil inteiro. A gente começa a tocar a lista, passa a oportunidade para uma próxima pessoa e garante mais a lisura do processo, além de garantir a confidencialidade”, explica.

Como é o financiamento?

Mesmo nos hospitais privados, o mais provável é que um transplante seja financiado pelo SUS. Isso acontece porque mesmo que o paciente tenha plano de saúde que custeie procedimentos, o transplante ainda vai ser regulado pelo sistema público.

É o SUS quem coordena o processo, além de credenciar e vistoriar as unidades. “Estando no hospital particular ou não, o processo é gerido pelo SUS e isso não vai ter ônus para o paciente”, acrescenta o médico Pedro Carvalho Diniz.

Existem casos de transplantes feitos de forma particular ou por meio de convênio, mas esses casos oscilam entre 5% e 10% dos processos. A maioria dos planos não cobre transplantes e apenas os procedimentos de córnea, rim, medula e fígado fazem parte do rol de coberturas obrigatórias da Agência Nacional de Saúde Suplementar, que regula os convênios. O último a ser incluído foi o de fígado, no ano passado.

Quanto custa?

O valor repassado pelo SUS a um hospital por um transplante é o mesmo, independente de ser público ou privado. Enquanto um transplante de córnea custa pouco mais de R$ 4 mil - sendo R$ 2.070 o total ambulatorial e R$ 2.070 o total hospitalar -, o de fígado pode chegar a R$ 68,8 mil.

O repasse para um transplante de coração é de R$ 37 mil, enquanto o de pâncreas é de R$ 38 mil e o pulmão unilateral é de R$ 44,4 mil. Para um transplante de pulmonar bilateral, o valor é de R$ 64,4 mil, ao passo que o renal vai de R$ 21,2 mil (doador vivo) a R$ 27,6 mil (doador falecido). Quando o paciente precisa transplantar rim e pâncreas simultaneamente, o total repassado é de R$ 54,9 mil, de acordo com a tabela do SUS para 2023.

Por que o transplante de fígado é o “mais caro”?

Trata-se de uma cirurgia de maior porte com mais risco de complicações, como explica o médico hepatologista Paulo Lisboa Bittencourt, membro da equipe de transplantes do Hospital Português e professor da Escola Bahiana de Medicina. Além disso, no pós-operatório, a pessoa fica mais tempo na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A média de permanência na UTI é de cinco dias, enquanto o tempo total de internação fica em torno de duas semanas.

Além disso, não é possível descartar a necessidade de diálise por disfunção orgânica nos dias que seguem à cirurgia. “Os insumos necessários para o pós-operatório são muito maiores do que os insumos para um transplante de rim ou de outros órgãos. Quando comparado a um rim, (o valor) pode ser duas a três vezes maior”, explica.

Quanto tempo um órgão pode ficar fora do corpo?

Esse intervalo é chamado de tempo de isquemia e varia de acordo com cada órgão. Enquanto um rim pode chegar a 36 horas - o que permite viagens entre os estados brasileiros - um fígado não pode passar de oito horas. Já o tempo máximo de espera do coração, caso de Faustão, é de quatro horas.

Quais são os critérios para ter um ‘match’ ou seja, encontrar um doador e um receptor compatíveis?

No caso de coração, pulmão e fígado é preciso ter compatibilidade pelo sistema ABO, que indica o grupo sanguíneo. Um paciente que está em situação mais grave também tem mais prioridade.

A idade do receptor também pode definir quem vai receber um órgão. Se houver dois pacientes com quadros clínicos semelhantes, sendo que um deles é uma pessoa jovem enquanto a outra pessoa é muito idosa, a pessoa jovem provavelmente vai ser priorizada. Em saúde pública, há uma leitura de que a pessoa mais idosa pode ter uma expectativa de vida mais curta, ao passo que a mais jovem ainda pode viver por mais tempo.

No caso do transplante de fígado, existe uma escala que indica a urgência de um transplante para um candidato. É um número calculado por uma equação que inclui exames laboratoriais que avaliam níveis de creatinina, bilirrubina, tempo de protrombina e sódio.

O problema é que a cirrose é uma doença silenciosa e, portanto, a maioria das pessoas não sabe até apresentar sintomas graves, como hemorragia digestiva, desorientação e ‘barriga d’água’ (ascite). “Quando a doença descompensa, o indivíduo tem uma expectativa de vida geralmente de dois anos. Quando a pessoa descobre, tem pouco tempo e chega tardiamente ao centro de transplantes”, alerta o hepatologista Paulo Lisboa Bittencourt.

Enquanto isso, o critério para um paciente ser alocado para o transplante de rim é ter um percentual renal inferior a 10% - embora, em alguns casos específicos, é possível incluir pacientes com 15%. “As clínicas de diálise têm 90 dias para avaliar a condição clínica do paciente, se ele tem condições de ser transplantado ou não”, diz a médica Ana Paula Maia Baptista, nefrologista do Hospital Português. Essa avaliação inclui analisar o histórico da pessoa - se já teve infarto, derrame, tumor e também fazer exames laboratoriais e de imagem.

Além do mesmo grupo sanguíneo, o receptor deve ter compatibilidade genética com o doador a partir de genes específicos. “Tem gente que se inscreve e, em 15 dias, é transplantada. Tem gente que fica mais tempo”.

Como acontece o transplante de fígado?

É possível ter transplante com doador vivo e com doador falecido. O primeiro cenário é considerado mais arriscado tanto para o receptor quanto para o doador, chegando ao índice 20% de risco de complicações, segundo o hepatologista Paulo Lisboa Bittencourt. No estado, este tipo de transplante só é feito com o doador falecido. “A Bahia não tem uma taxa de doação muito alta. Precisamos incentivar a doação porque quando é doador falecido, não tem risco”, explica.

Mesmo sendo um procedimento que existe há mais de 40 anos, muita gente - inclusive profissionais de saúde - ainda desconhece a possibilidade do transplante de fígado. Por isso, a lista de quem espera por um fígado é consideravelmente menor do que a de outros órgãos - este mês, eram 22 pacientes no estado.

“Existe um estigma muito grande de que esse é um tipo de cirurgia feita para quem tem cirrose ou câncer. Muita gente acha que a cirrose é causada exclusivamente pelo álcool e que quem bebe não deveria ter direito a um procedimento como o transplante”, diz.

No entanto, as principais causas de cirrose são quadros de hepatite viral e de gordura no fígado. Além disso, a maior parte das pessoas que faz o transplante tem um comportamento de consumo alcóolico muito parecido com a maior parte da população - ou seja, sem abusos ou dependência. Essas pessoas, porém, têm mais predisposição a desenvolver cirrose mesmo com o consumo moderado de álcool.

O transplante renal é o que tem maior número de pessoas na lista de espera, com mais de 1,5 mil pessoas esperando por um órgão na Bahia. Como ele acontece?

O rim é outro órgão que pode ser transplantado a partir de doador vivo ou de doador falecido. No caso do doador vivo, é preciso ter até quarto grau de parentesco, passando por pais, irmãos, filhos, primos e cônjuge. Se o parentesco for maior do que quatro graus, será preciso uma autorização jurídica para assegurar que não existe conflito de interesse. “Mas o transplante com doador vivo é minoria. Aqui na Bahia, em torno de 90% é com doador falecido”, conta a nefrologista Ana Paula Maia Baptista.

O que acontece com os pacientes enquanto eles esperam pelo órgão?

Depende, novamente, do tipo de transplante. No caso do fígado, existem pacientes que esperam em casa e existem pacientes que, por estarem em uma situação mais delicada, devem ficar na UTI.

“Isso é uma fonte de ansiedade muito grande para o doente. O cenário é muito variado na lista de espera. Mas uma vez que o fígado foi transplantado, existe um risco no pós-operatório e, depois, é vida normal. Tem histórias muito bonitas de pessoas que estavam à beira da morte e hoje tem uma vida inteiramente normal”, conta o hepatologista Paulo Lisboa Bittencourt.

Já uma pessoa que espera por transplante renal pode fazer diálise nesse período. A recomendação, contudo, é que o paciente passe o menor tempo possível em diálise. "Com o tempo, a pessoa pode adquirir algumas comorbidades, às vezes têm calcificação nos vasos, às vezes tem problema de acesso", diz a nefrologista Ana Paula Maia Baptista.

Quem aguarda um transplante de coração, como Faustão, pode precisar de cuidados específicos. O apresentador passa por diálise e tem usado medicamentos para ajudar o bombeamento do coração.

Quando é que alguém pode precisar de um transplante?

Em geral, o transplante é indicado em situações em que não há outra possibilidade de cura pelos demais tratamentos.

Qual é o primeiro passo para entrar na lista?

Incluir um paciente na lista é um processo complexo, onde a equipe de saúde deve considerar muitos fatores, como alerta o médico Pedro Carvalho Diniz. Ele pondera que, ainda que as pessoas frequentemente associem o transplante apenas à cirurgia, há outros processos e desdobramentos.

“É um tratamento extremamente complexo porque, após a cirurgia, caso dê tudo certo, ele tem que tomar medicamentos imunossupressores para que o órgão não seja rejeitado e isso deixa o paciente suscetível a infecções”, diz.

É preciso ter suporte familiar, psíquico, dar continuidade aos tratamentos e preencher requisitos. “Se a pessoa é candidata a um transplante de fígado porque tem cirrose e bebe muito, ela tem que ter no mínimo seis meses de abstinência de álcool. São vários critérios clínicos, sociais e cognitivos, porque a pessoa tem que ser capaz de entender esse tratamento”, acrescenta.

Qual a média de tempo para espera por um transplante?

Novamente depende não apenas do órgão, como do quanto a sociedade está inclinada para a doação, porque varia de acordo com o número de doadores.

“Se você tem mais doadores, terá um tempo menor. Para o transplante renal, a média de espera é de um ano a um ano e meio. Para córneas, antes da pandemia chegamos a seis meses, mas voltou para um ano e meio agora”, diz o coordenador do Sistema Estadual de Transplantes, Eraldo Moura.

Por que ainda é tão difícil aumentar o número de doadores de órgãos no Brasil?

O Brasil segue o modelo consentido para a doação, então presume-se que a pessoa não é doadora de órgãos até que haja a concordância da família. Por isso, a maior causa para não-doação, atualmente, é a recusa familiar.

“Muitas evidências mostram que o principal fator que pode aumentar a doação é o treinamento das equipes de saúde que lidam com potenciais doadores. São pacientes extremamente graves e as equipes têm que treinar a comunicação de más notícias. A família muitas vezes nem tem tempo de processar isso, então ela deve ser acolhida e respeitada”, afirma o médico Pedro Carvalho Diniz.

Ao mesmo tempo, os especialistas reforçam que é preciso investir em medidas de educação popular, campanhas nos meios de comunicação e combate à desinformação, porque não é difícil encontrar fake news relacionadas à doação de órgãos por aí.

Atualmente, o país com maior índice de doação no mundo é a Espanha - em 2022, era mais do que o dobro do Brasil, com 40 doadores por milhão de habitantes.

“É um país extremamente católico, com uma população conservadora, mas é o que mais doa porque foi feito um trabalho de longo prazo”, afirma o médico. “A gente viveu uma onda de desinformação sobre a covid, mas talvez a covid seja um tema que tem menos tabus do que a doação. Existem muitos tabus como de que haveria mutilação do corpo, venda de órgãos, tráfico, furação de fila. Uma pequena mentira, uma pequena desinformação pode ter consequências muito nefastas”, reforça.

Quem pode doar órgãos?

A doação de órgãos pode acontecer nos casos em que há morte encefálica e a família autoriza o procedimento. Ao contrário da morte por parada cardíaca, a morte encefálica é mais difícil de ser detectada. Para ser confirmada, ela precisa ser diagnosticada por dois médicos, sendo um deles obrigatoriamente especialista nas áreas de medicina intensiva, neurologia, neurocirurgia ou medicina de emergência, obrigatoriamente, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). Nenhum desses médicos pode trabalhar na equipe de transplantes.

Qual é o tamanho da lista de transplantes hoje?

Segundo o Ministério da Saúde, 65 mil pessoas estão na lista atualmente, em todo o país. A maior parte delas - 36,7 mil - aguarda por um rim.