Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Estadão
Publicado em 21 de outubro de 2024 às 06:00
Há 20 anos, o escritor colombiano Juan Cárdenas descobriu Machado de Assis ao traduzir a obra do Bruxo do Cosme Velho para o espanhol. “Descobri um gênio”, disse durante a 22ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). “Graças a Machado, comecei a compreender situações da região onde nasci, Popayán, no interior da Colômbia”.
Cárdenas traduziu também obras de Eça de Queiroz, João Gilberto Noll e Guimarães Rosa. Foi, portanto, quase impossível que a prosa desses clássicos não influenciassem sua escrita pessoal.
Como o trabalho de tradutor influencia seu texto?
A cozinha da minha escritura sempre foi a tradução, com seu ritmo, sua sintaxe. E a musicalidade de outras línguas contagia o meu próprio idioma. É algo parecido com o trabalho de um médium, ao sintonizar com as energias espirituais.
Autores de língua portuguesa, como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Eça de Queiroz, foram ainda mais decisivos?
Sim, são um grande alimento. No caso de Guimarães, por vezes é frustrante. É incrível essa relação com um texto que é praticamente intraduzível. Já no início do trabalho, você sabe que não vai dar certo. Mas, essa impossibilidade é também importante.
E o que dizer de Machado?
O universo do Machado fica muito próximo daquele do lugar onde nasci e cresci, uma região na Colômbia marcada pelos traumas da escravidão. Aliás, como a organização política, social e econômica da região, por séculos, esteve ligada à estrutura de fazendas, ler também Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre, é como descobrir algo muito familiar para nós. E, com Machado comecei a compreender as minhas situações locais. Essa foi a primeira impressão. Anos depois, descobri a incrível sofisticação do Machado em termos do procedimento literário. Sempre digo que o Brasil teve um Jorge Luis Borges antes do surgimento do próprio Borges. Veja Memórias Póstumas de Brás Cubas: é um texto que, por baixo das curvas, é cervantino ao jogar com os planos da realidade. Ele simplesmente atualizou Cervantes no século XIX. Machado foi um gênio da escrita.
Em sua obra, como consegue conciliar acontecimentos fantásticos com fatos corriqueiros, sem que um não contraste com o outro?
Foi um escritor brasileiro que me deu a chave para entender a oposição entre realidade e fantasia. Quando traduzi Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll, logo no começo eu me deparei com uma situação totalmente cotidiana, normal, que se transforma em algo completamente estranho. E sempre no plano da realidade, Noll não faz um corte para introduzir o fantástico. Com isso, a percepção da realidade se torna muito mais rica.
O avanço da tecnologia pode facilitar o trabalho dos escritores?
Não me preocupo com os avanços tecnológicos porque a IA comprova que as máquinas sabem cada vez mais de tudo. E, na literatura, é melhor não saber de tudo. Daí a vantagem humana. A fantasia é muito importante hoje, assim como a projeção do desejo.