Nem pra rico, nem pra pobre: entenda como a lagosta está sumindo da costa baiana

Símbolo de luxo e ostentação, fruto do mar deixa cardápios de restaurantes e corre risco de desaparecer da natureza

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  • Da Redação

Publicado em 17 de setembro de 2022 às 05:00

. Crédito: Marina Silva

Diga para seu amigo que vai fazer uma moqueca de lagosta. A resposta é automática: “ficou rico?”. Um crustáceo que sempre foi sinônimo de ostentação também está se tornando um artigo raro no mar e nos pratos dos mais afortunados. Pescadores estão reclamando do desaparecimento  do bicho na costa baiana, vendedores alegam pouca oferta e até chefs de cozinha estão deixando de fazer pratos com este animal do grupo dos decápodes. Para especialistas, esse sumiço não é repentino, mas gradativo. Falta de fiscalização, desrespeito no período de defeso, pesca predatória e falta de estudos sustentáveis são alguns 'predadores' que ameaçam a lagosta brasileira. 

Na verdade, falar sobre pesca da lagosta é como mergulhar no escuro, seja na Bahia ou no restante do país. Os estudos sobre o tema são escassos e o controle sobre o que é pescado e quem o pesca é precário. O sumiço da lagosta é uma questão que gera até controvérsia, pois a costa baiana se tornou a segunda maior exportadora de lagosta no país nos últimos três anos, ultrapassando o Rio Grande do Norte. Segundo os  dados da Secretaria do Comércio Exterior  do Ministério da Economia, a Bahia exportou 282.765 toneladas de lagosta, somente em 2021, gerando mais de 16 milhões de dólares. Este ano, foram 119 toneladas até abril deste ano. Só perde para o Ceará, estado dono de 80% de toda exportação no país. 

Todos estes números otimistas do mercado significam que não falta lagosta no mar? Não é bem assim. Vale lembrar que 90% da pesca da lagosta é destinada ao exterior, principalmente Estados Unidos e China. A exportação, portanto, depende da demanda e a oferta não significa que seja de animais capturados naquele ano, pois também estão incluindo pescados de estoques anteriores. Procuramos três empresas que trabalham na exportação da lagosta, incluindo o Prime Seafood, uma das maiores exportadoras e que também atua na Bahia, mas nenhuma respondeu. 

Engenheiro de Pesca pela Universidade Federal do Ceará e doutor em Ciências da Engenharia Ambiental pela USP, José Augusto Negreiros diz que este número de lagostas exportadas não significa fartura no mar. É uma falsa impressão, já que hoje não existe qualquer programa de monitoramento das pescarias de lagostas no Brasil. Pouco se sabe sobre a composição atual da frota, composição das capturas por tamanhos, áreas de pesca, entre outros controles importantes para se ter uma dimensão do risco que a lagosta corre na costa brasileira. Inclusive, nada impede, por exemplo, que embarcações cearenses pesquem lagosta na costa baiana. Como se trata de uma costa de âmbito federal, não existem limites estaduais neste caso. 

“Um dos principais problemas quando se tenta avaliar a situação das pescarias no Brasil, em especial da pesca da lagosta, é a falta de informações. No caso da lagosta, o que se dispõe são basicamente dados de exportação. E a análise desses dados tem que ser feita com muito cuidado, pois eles podem induzir conclusões distorcidas, pois geram uma impressão que a produção está estabilizada, o que não implica em estabilidade de abundância. É preciso levar em conta que algumas oscilações positivas podem ser estoques do ano anterior [que foram comercializados]”, afirma José, também pesquisador aposentado do Ibama.

Para José Augusto, a falta de informações e controle são vilões da preservação da lagosta, pois deixa o caminho livre para pescas predatórias, captura indivíduos fora da sua fase comercial e o descumprimento do período de defeso, quando é proibida qualquer pesca da espécie entre os dias 1º de novembro a 30 de abril do ano subsequente. Desde 2021, o Governo Federal diminuiu em um mês este período, o que está gerando preocupação entre biólogos e estudiosos da área. 

“A composição da frota, bem como o número de barcos efetivamente operando hoje, é desconhecida. Deve haver informações sobre o número de barcos licenciados no Ministério da Pesca e Aquicultura,  mas não têm sido divulgadas e, certamente, não correspondem à realidade”, revela José, que completa: “É evidente o excessivo número de embarcações atuando, muitas delas não permissionadas, além do elevado nível de esforço de pesca e a participação expressiva de indivíduos jovens nas capturas”. 

Declínio  Afinal, por que não existe uma fiscalização atuante, tampouco um estudo constante vindo de órgãos ambientais? Não dá para cravar se esta negligência é proposital. Contudo, com certeza é nociva. “O poder público deveria fazer mais para garantir a continuidade desta pescaria. Há décadas persiste um quadro de caos administrativo, mas o cenário tende a se agravar à medida em que os estoques de lagosta declinam. Atualmente, as avaliações indicam que a biomassa [tamanho do estoque] já foi reduzida em 82%, e que persiste um quadro de capturas excessivas que vão dar continuidade à perigosa trajetória de declínio”, disse Martin Dias, diretor científico da Oceana, graduado em Oceanografia e Mestre em Ciência e Tecnologia Ambiental. Oceana é uma organização internacional sem fins lucrativos, focada exclusivamente nos oceanos. Buscamos esclarecimentos do Ibama e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, mas ninguém retornou nossos pedidos. 

A falta de fiscalização leva ao descontrole da pesca, que leva ao risco iminente. Especialistas ainda não falam de extinção, mas o colapso é uma realidade. “Difícil falarmos em extinção no contexto biológico porque, antes de chegarmos nesse ponto dramático, a pesca da lagosta já estará falida devido à falta do recurso no mar. O que temos muito claro à nossa frente é o colapso da pescaria”, avisa Martin. “Não haverá mais lagostas suficientes para sustentar a pesca e as indústrias. Será uma tragédia tanto ambiental quanto socioeconômica. E isso pode ocorrer a qualquer momento, pois a situação é muito delicada”, complementa.

Um estudo do  Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), datado de 2014, já mostra que o colapso não é recente.  É possível projetar uma diminuição das espécies mais capturadas no país: as lagostas vermelha (Panulirus argus), verde (Panulirus laevicauda) e pintada (Panulirus echinatus). Na época, o ICMBio já classificava as espécies como ‘quase ameaçadas'. Na pesquisa, a população de lagostas teve uma redução de 30% nos últimos 40 anos (1974-2014). A tendência, segundo a pesquisa, é continuar diminuindo e chegar a outros 30% até 2029. “A causa não cessou, projeta-se igual redução para os próximos 15 anos”, diz o estudo.

O problema pode estar justamente na captura predatória. Segundo um estudo realizado pela Oceana, “o estoque da espécie tem apenas 18% de seu tamanho máximo, e segue diminuindo, tornando o cenário cada vez mais alarmante”, conclui a pesquisa. O que seria este ‘estoque da espécie’? É como se apenas 18% das lagostas na costa brasileira estivessem aptas para a captura. Em outras palavras, que estariam na sua fase adulta. Uma lagosta da espécie vermelha, a mais abundante e pescada no país, leva 36 meses para chegar à maturidade. Aquela lagosta pequena (menos de 20 centímetros de tamanho) que é vendida na estrada do Litoral Norte ou no Mercado do Peixe, certamente é comercializada de forma ilegal. Elas deveriam estar no mar aumentando este número de ‘estoque’.

Pelo menos na teoria, existem regras rígidas para se capturar lagosta. Só é permitida a pesca da espécie aquela embarcação que tiver licença para a atividade. Todo ano é preciso renovar a permissão. A última divulgação do Governo Federal sobre  licença é de 2013. Na época, a Bahia tinha 61 embarcações regulares, contra 1.798 no Ceará. Estas permissões são como alvarás de táxi. Uma portaria datada de 2021 passou a proibir novas autorizações para a captura de lagosta. Bonito no papel, já que parte significativa da produção vem de embarcações não registradas ou que utilizam uso de métodos de captura proibidos. 

Há 30 anos Tio Correia pega lagosta na praia de Jauá. No início do mês, ele comemorou o fato de ter pescado 8 quilos da espécie vermelha, algo que está se tornando cada vez mais raro. “Quando pego 3 ou 4 quilos, é muito”, resume. Tio utiliza uma rede fixa, que fica no mar. Todos os dias ele vai conferir quantas lagostas ficaram presas. O método é proibido pelo Ibama, que só permite o uso de covos ou manzuás, espécies de armadilhas em forma de gaiolas que diminuem os riscos ambientais e mantêm as lagostas vivas, podendo ser soltas quando ainda não estiverem na fase adulta (com 22cm de tamanho). 

Contudo, Correia diz que só pode pescar com a rede, pois seria preciso uma embarcação grande para levar as gaiolas até o mar, além de precisar de outras pessoas no manejo. “Há uns 10 anos, mais ou menos, eu cheguei a ser preso, iriam levar minha embarcação, mas viram que eu tinha pouca lagosta no barco. Só disseram para eu soltar as espécies pequenas e me liberaram. Eu tento respeitar, sei que é preciso preservar, mas é difícil. Eu não tiro minha rede no período de defeso, pois o governo não paga mais o auxílio no período que não posso pescar. Solto os pequenos, mas não posso parar”, revela Tio. 

Na Bahia, o sul do estado é um forte produtor de lagosta e as queixas são frequentes. Um pescador de Ilhéus, que pediu para não ser identificado, diz que pega lagosta com rede de arrasto ou com mergulho, ambos proibidos. Ele alega que é o principal meio de sustento e não dá para parar. “Aqui ninguém nunca me abordou. De fato, está diminuindo, mas acho que não está acabando. Até jogo no mar os menores, mas não dá para escolher muito. Arrasto a rede, que fica chumbada no fundo, e pego”, disse o pescador, que também não vê controle na venda. “Vendo para restaurantes e até peixarias que revendem para fora do país. Ninguém deixa de comprar”, completa.  Ciclo de crescimento da Lagosta (Ibama) Integrante de uma associação de pescadores de Itacaré, Gilson Conceição não pesca lagosta, mas denuncia o descaso de alguns colegas. “Aqui no Sul do estado, a pesca de lagosta é predatória. Ela é capturada com redes de arrasto, que deslocam tudo que está na frente, pegando lagostas de todos os tamanhos e com ovas, outras espécies e ainda destroem o habitat da espécie. Aqui o número de pescadores com rede só aumenta e a tendência é diminuir o número de lagostas. Muitos já sentem a diminuição e se queixam. Mas o Ibama não tem efetivo para fiscalizar e não existe nenhuma ajuda governamental para uma pesca sustentável”, disse.

A rede de arrasto, além de indiscriminar o que leva, destrói o próprio habitat da lagosta, que são as algas calcáreas que ficam no fundo do mar e servem como moradia e fonte de alimento das espécies. No mergulho, o pescador artesanal costuma pegar um número bem maior de lagosta, mas arrisca a própria vida. Diferente do mergulho esportivo, nesta forma de captura o mergulhador desce com um tubo que gera oxigênio por meio de uma combinação entre o próprio motor do barco, um compressor e um botijão de gás. Segundo a Marinha do Brasil, ano passado seis pessoas morreram por conta deste método. Não foi informado se houve vítima na costa baiana.

Na verdade, praticamente não existe um recorte específico da produção de lagosta no estado. “Falar de pescado com lagosta aqui é como trabalhar no escuro. Para se ter uma ideia, até 1999 a Bahia era tida como um estado que não tinha lagosta. Tanto que não existia permissão para embarcações baianas aqui, o que foi acontecer anos depois. Este controle sempre foi de competência federal, mas existia um convênio entre a Bahia Pesca e o Ibama até 2006, nosso último estudo sobre a pesca sustentável da lagosta aqui. Naquela época, fizemos um censo e constatamos que mais de 50% da frota pesqueira baiana eram de canoas artesanais. De lá pra cá, a gente não tem informação de absolutamente nada relativo a pescado, inclusive de lagostas”, disse Roberto Pantaleão, biólogo e assessor técnico da Bahia Pesca.

Para Pantaleão, é impossível saber tecnicamente se a lagosta está sumindo. “Aí você me pergunta se a lagosta está acabando na Bahia. Cientificamente, não posso afirmar nada, pois não existem dados de nada. Não temos número de pescadores, captura, pesca, nada. Mas, apesar de não termos  comprovação científica, é evidente que está ocorrendo esta diminuição”, completa.

No Mercado do Peixe, em Água de Meninos, ainda é possível ver dois ou três boxes vendendo lagosta. O preço varia conforme o tamanho do animal, o que denuncia a falta de fiscalização na captura e venda. Uma lagosta aparentemente jovem, antes da fase adulta, chega a ser vendida por R$ 70, o quilo. As maiores, que teoricamente seriam as liberadas para a venda, chegam a R$ 90, o quilo. “Precisa ser licenciado para pescar, é? Não sabia. Eu compro de pescadores locais mesmo, ali na Gamboa, ou no Litoral Norte. Eles chegam, eu compro. Pergunto nada, não. Há 20 anos, todo mundo vendia aqui, mas diminuiu o número. Antigamente a gente comprava uns 100 quilos de lagosta, hoje não passa dos 15 quilos”, disse um vendedor de lagosta, que preferiu o anonimato. 

Para os especialistas, apenas duas palavrinhas podem salvar a lagosta: fiscalização e sustentabilidade. A culpa deste sumiço começa do pescador e acaba naquela moqueca gostosa, mas sem procedência. “Só existe pesca ilegal de lagosta porque esse produto entra facilmente nas empresas, ganhando uma roupagem de legalidade. A coisa simplesmente ‘passa’. Deveria se estar trabalhando em uma cota máxima de exportação. Uma vez atingido certo volume, a pesca e as indústrias suspendem suas atividades. Essa medida é a mais urgente a ser tomada. Posteriormente, há de se discutir a questão da pesca ilegal, das licenças, etc. Mas, o importante agora é frear as capturas”, avisa  Martin Dias.

Você deve estar se perguntando o motivo da lagosta ser uma iguaria tão cara, né? Se torna meio óbvio agora. A lagosta leva tempo até chegar à vida adulta, não consegue se adaptar ao cativeiro para a produção controlada e tem uma complexidade na captura. Agora, a diminuição de indivíduos. Se continuar assim, aquela comidinha de barão não será mais cara, pois sequer existirá. Nem pra rico, nem pra pobre. 

RAIO X DA LAGOSTA

Família Existem cerca de 47 espécies de lagosta no mundo. No Brasil, apenas três são comercializadas em larga escala: as lagostas vermelha (Panulirus argus), verde (Panulirus laevicauda) e pintada (Panulirus echinatus).

Crescimento   Uma lagosta tem o ciclo de crescimento relativamente lento, em comparação com outros frutos do mar. É um dos motivos para o preço elevado. São sete fases até chegar na fase adulta, o que pode chegar a 36 meses. Atualmente, apenas 18% de todas as lagostas na costa brasileira estão aptas para serem capturadas. Quanto mais jovens são capturados, menos chegam à fase adulta para se reproduzir e manter a colônia em harmonia.

Exportação de lagostas da Bahia  (Kg/milhões de dólares)

2016 - 444.643 / 17.772 2017 - 519.126 / 18.948 2018 - 58.322 / 3.003 2019 - 90.068 / 4.397 2020 - 340.853 / 13.031 2021 - 282.765 / 16.911 Fonte:  Sec. do Comércio Exterior  do Ministério da Economia.

Período de defeso 1º de novembro a 30 de abril do ano subsequente. Fora deste período, a venda de lagosta só é permitida se for de estoque, pescado no período permitido, com selo de fiscalização.

Pesca    Só é permitido pescar lagosta se tiver licença do Governo Federal. O licenciado só poderá capturar a lagosta com covos ou manzuás, espécies de armadilhas em forma de gaiolas. O bicho fica vivo, mesmo capturado, o que permite ao pescador devolver o indivíduo fora da idade permitida e o tamanho mínimo de 22cm.

Perigo Segundo pesquisas, apenas 18% das lagostas no mar estão próprias para capturas. O último estudo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) sobre ameaça da lagosta é de 2014. Na época, o ICMBio já classificava as espécies em ‘quase ameaçadas', pois houve uma redução de 30% na população de lagosta, diminuindo outros 30% até 2029.