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Da Redação
Publicado em 12 de dezembro de 2021 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Um belo dia Márcio Seixas entrou no elevador, deu bom dia para as pessoas que estavam dentro e aguardou seu andar. Quando chegou ao seu destino, um cidadão olhou para ele e disse: tenha um bom dia, Batman. Na verdade, isto acontece com frequência na vida de Márcio, seja no Uber, no mercado, em qualquer lugar. Enquanto está calado, digamos que Seixas é um Bruce Wayne disfarçado, sem chamar muita atenção. Contudo, basta falar qualquer frase que sua identidade secreta é revelada: sem dúvida é o homem-morcego. Você pode até não ligar o nome à pessoa, mas com certeza conhece sua voz. Quer apostar? >
Um dos dubladores mais icônicos do país, Márcio Seixas emprestou sua corda vocal para personagens e atores clássicos da sétima arte, como o Batman, James Bond, o Cavaleiro Jedi Qui-Gon Jinn, entre outros. Sem contar que ele também é dono da vinheta mais famosa do Brasil: “Versão brasileira, Herbert Richers”. Mineiro de Belo Horizonte, Seixas esteve em Salvador na última semana para participar do Prêmio Benchmarking Saúde, que homenageou personalidades e profissionais da saúde que lutam contra a Covid. Com muita chuva na capital, Seixas não teve tempo nem de pedir um acarajé no Rio Vermelho com a voz do Batman. Porém, não deixou de causar alvoroço quando ligava a corda vocal e acabava descoberto. Ele até se diverte com isso. >
“É corriqueiro. Quando falo, a pessoa me olha, olha novamente, desconfia, fica aquele jogo divertido. Eu não me entrego, aguardo o contato. Geralmente a pessoa fala: ‘tenho a impressão de te conhecer’. Na verdade, conhecem minha voz. Aqui em Salvador não foi diferente. Vi médicos de cabelos brancos me pedindo selfies quando souberam quem eu era. Fico muito feliz em saber que minha voz ativa uma memória afetiva, um filme eterno, um personagem que marca. Isso é mágico. É o patrimônio da minha vida”, disse Márcio Seixas, mas poderia ter sido também Clint Eastwood ou Steven Seagal falando. Basta fechar os olhos. >
Radialista, Márcio Seixas começou sua carreira no mundo da dublagem em 1973, no Rio de Janeiro, após ver um anúncio no Jornal O Globo. O estúdio Herbert Richers procurava dois dubladores. Ele foi um dos escolhidos entre 300 candidatos. O estúdio, fundado nos anos 50, chegou a ser responsável por 70% das produções de dublagens de filmes estrangeiros no país. A empresa fechou em 2009, com a morte do seu dono e mergulhado em dívidas. Seu estúdio, que muitas vezes era emprestado para a Globo gravar novelas, hoje está em ruínas no Rio. >
“Fui escalado para o papel do pai de um corredor de Fórmula 1 que grita porque o filho sofre um acidente provocado pelo concorrente. Ele começa a gritar quando vê o filho morto. Rapaz… Eu não tinha nem um mês de trabalho no estúdio, estava fazendo pontinhas em filmes, como um índio que toma um tiro e cai, essas coisas. Precisei gritar loucamente, em francês, ‘Assassin, Assassin!’. Depois foi um bandido na série Havaí 5.0. Mas eu fiquei tão empolgado, que mandava cartas para amigos dizendo que minha voz estaria em tempo tal, bandido tal”, lembra Márcio. Seixas foi ganhando confiança até virar um dos principais dubladores de Herbert Richers. Mesmo assim, sua voz no Batman e na vinheta clássica surgiu sem pretensão, quase que um acaso do destino. Antes de ter sua voz na maioria dos clássicos da Sessão da Tarde, Seixas lembra que já tinha uma vinheta nos filmes antes dos anos 80, mas de forma bem improvisada. “Lembro que na antiga vinheta a pessoa dizia ‘versão brisisleira (sic), … Falei com Herbert para corrigir esta fala, a voz precisava ser mais clara, pois apresentava os filmes para o público. ‘Pare de encher o meu saco e faça você então. Vai lá no estúdio gravar agora’, disse ele. Fui, gravei e virou o que conhecemos”, conta.>
A voz de Seixas não está presente apenas na sétima arte. Aqui na Bahia, mais especificamente em Salvador, há 10 anos sua voz abre os shows da banda Herbert & Richard, especialista em músicas dos anos 80 e 90, além de trilhas sonoras clássicas. O melhor de tudo é que boa parte da banda não sabia de quem era a bendita voz. “A banda surgiu de uma festa temática e desde sempre abrimos com esta vinheta deste dublador tão especial. Que bom conhecê-lo assim. Esta festa bombou e hoje fazemos shows temáticos, como de trilha de filmes de terror ou desenhos infantis, por exemplo. Que legal conhecer esta lenda”, disse Valdir Andrade, um dos cantores da banda. >
Batman x Superman Se tornar o Batman também foi por acaso. Seixas lembra que estava se preparando para dublar outro personagem nos estúdios, quando foi chamado pelo filho de Richers. “Eu vi um dublador saindo irritado da sala de gravação, gritando e dizendo que não iria fazer a dublagem e tal. Hebert olhou para mim e disse que precisava de mim naquela hora pra fazer um teste de voz, pois Silvio Santos tinha um desenho para dublar com urgência. Entrei na sala sem saber do que se tratava. Quando apareceu quem era, tomei um susto. Era o Batman”, lembra. >
Dublar o Batman requer uma fineza única. E sem risadinha. “Nunca dublei o Batman rindo. Ele é elegante até na hora de falar com o bandido, sempre frio, mantendo o tom formal. É muito diferente de dublar o Tick, uma super traça, caricato e com tiragens engraçadas”, compara. Para ele, a voz da dublagem também precisa atuar. “Passamos a emoção da cena com a mesma riqueza da dublagem ou fala original. É preciso interpretar. Nem mais, nem menos, sempre alinhado com o original. Foi assim com personagens que traziam humor, como Leslie Nielsen, ou mais sério como o Sean Connery fazendo o James Bond”, completa. Vale lembrar que os primeiros “Meu nome é Bond, James Bond…” também foram de Seixas. >
É, mas o mundo da dublagem não é apenas alegria e também tem suas tretas. E a vida imita a arte. Em 2017, Márcio se desentendeu com um sócio, também dublador, o que gerou uma divisão entre os profissionais. E um deles, Guilherme Briggs, se tornou uma desavença de Seixas. Curiosamente, Briggs dublou nada menos que o Superman nos desenhos. Alguns áudios de ambos trocando farpas foram parar na internet e memes da briga foram colocados em cenas do filme original Batman vs Superman. Seixas não comentou o assunto, apenas pediu mais união entre os dubladores. Para quem não sabe, dublador não é uma profissão. Para dublar, é preciso ter formação em Artes Cênicas ou Teatro. “Parece irônico, mas o dublador não tem voz. Somos atores que fazemos dublagem. É um absurdo, mas não existe a profissão. Tem muito da desunião da classe. Somos hoje mais de cinco mil vozes, temos até número suficiente para a criação de um sindicato dos dubladores, mas não temos. Quando resolvemos convocar uma reunião para conversarmos sobre isto, aparecem 30 pessoas. É muito triste”, conta Seixas.>
Aqui em Salvador existem alguns cursos de dublagens. Com a pandemia, muitos estão de forma online, como a Oficina de Atores, que iniciou uma turma em março deste ano. A média da mensalidade gira em torno de R$ 350 e pode durar um ano, dependendo da carga horária. O salário fixo chega a R$ 2 mil mensais ou R$ 120, a hora de trabalho. Com o boom das séries nos streams, o Brasil conta com cerca de 50 estúdios, todos no Rio ou São Paulo. "Uma dica que eu dou é ter o hábito de ler em voz alta. Precisamos nos ouvir. Também precisa dominar a língua traduzida. Não apenas saber falar, mas saber gírias, sotaques, todas as particularidades. Já é meio caminho andado", completa Seixas. Vai negar um conselho do Batman?>