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Luiza Gonçalves
Publicado em 2 de julho de 2025 às 08:00
A primeira vez que tive contato com os livros de Dalton Trevisan (1925–2024) foi mexendo nas estantes do meu pai. Lembro de ficar muito intrigada pelas capas: criatividade, mistérios e sensualidade em nomes de vampiros, polacas e Curitiba. Professor de literatura e paranaense, mesmo que radicado na Bahia, os exemplares eram itens essenciais, frutos de um dos maiores contistas da literatura nacional. Hoje, outro professor paranaense - o escritor e tradutor Caetano Galindo- ratifica mais uma vez o fato: >
“Dalton Trevisan é o maior contista do Brasil. Entre parênteses, depois de Machado de Assis. Ele era um obcecado pela reescrita, pela reedição, pelo corte dos seus próprios textos. Ele passou a vida muito conscientemente montando uma obra literária. Do seu primeiro ao último conto. Inclusive, o primeiro conto que ele publica é o último conto que ele publica, com 70 anos de diferença, em versões diferentes. Um contista do cotidiano, do pequeno, do doméstico, do violento, da ternura e também um cara que, acima de tudo, como diz o Felipe Hirsch, nunca julgou ninguém, ele era moralmente invisível.”>
Galindo e o parafraseado diretor de teatro carioca Felipe Hirsch foram os responsáveis por uma missão árdua, mas prazerosa: apresentar o universo literário de Dalton Trevisan, em suas mais de 700 narrativas e quase oito décadas de escrita, na antologia Educação Sentimental do Vampiro (Todavia). O volume foi lançado neste ano, celebrando o centenário do escritor curitibano, e compõe a coleção Dalton Como Você Nunca Viu, projeto da Todavia que publicará a obra completa de Trevisan nos próximos anos. Junto com a antologia, já foram relançados: Pão e Sangue, O Beijo na Nuca, Chorinho Brejeiro, Ah, É, Desgracida e o célebre O Vampiro de Curitiba.>
Antologia>
Tanto Galindo quanto Hirsch tiveram amplo contato com a obra de Trevisan ainda na juventude, por conta da vivência em Curitiba e das influências escolares, familiares e culturais dos anos 1980 e 1990. “Minha primeira impressão [da obra de Trevisan] foi de espanto, de ‘isso é diferente, isso é forte’, mas imediatamente esse choque se transformou em curiosidade”, relembra o professor. A ideia de organizar uma antologia surge, entretanto, de uma vivência contrária, quando Hirsch descobriu que sua assistente de direção, uma ávida e inteligente leitora um pouco mais nova, nunca havia lido o escritor.>
“Ao contrário das nossas gerações, existem gerações jovens do Brasil que nunca passaram pela experiência Dalton Trevisan e a gente tinha que remediar isso. E ele pensou em montarmos uma antologia nova, pessoal, com a nossa cara, para apresentá-lo para essas novas gerações”, explica Galindo. Parceiros em projetos e espetáculos anteriores, a dupla leu individualmente toda a obra do escritor, gerou suas listas de prioridades e definiu coletivamente quantos e quais textos entrariam no volume, com uma ajuda especial do próprio Trevisan, por intermédio de sua agente Fabiana Faversani. “Ele muito amavelmente entregou uma listinha pequena dos seus contos preferidos e a gente levou isso em consideração na hora de estabelecer a nossa seleção também”.>
Um livro que promete surpreender pela divergência tanto o novo quanto o antigo leitor, reunindo contos, crônicas, cartas e extratos representativos de cada estilo e de cada fase de Trevisan. Nas temáticas: violência rural, tensão doméstica urbana, sexo, solidão, desejo e a complexidade das relações humanas, que costuram um panorama variado do legado literário do artista. “A construção de um fio condutor foi um desafio. O Felipe é um homem do teatro, que está acostumado a trabalhar com fragmentos e desde o começo pensava no que ele chamava de montar uma partitura, ou seja, fazer com que a leitura do livro não desse a impressão de ser uma gaveta de guardados, mas sim um livro que te faz evoluir. E a gente acabou optando por apresentar os contos na ordem de publicação, mas propiciando essa condução de uma leitura organizada”, destaca Galindo.>
Contraste com a literatura atual>
Durante as leituras para a composição do livro, Galindo afirma ter sido surpreendido pela percepção da coerência da obra como um todo construída por Trevisan e pela precocidade do autor em abordar e adotar certas posturas desde os anos 1970 em relação a temáticas como homossexualidade, drogas, o amor pelos animais de estimação, entre outros. Mas sua maior curiosidade está em como o leitor de hoje irá interpretar a liberdade e o não julgamento de Trevisan ao escrever sobre todos os assuntos.>
“Os contos dele vão ter assassinos, estupradores, vítimas, mártires, crueldade, amor, o que quer que seja, e essas coisas nunca serão julgadas, elas estarão simplesmente expostas. Eu tenho um amigo que uma vez disse que ele não tinha medo que o Dalton fosse cancelado, que, muito pelo contrário, Dalton é o antídoto contra o cancelamento. E eu acho que ele tem razão. Ele é um choque térmico para o leitor de hoje, ele é diferente, não está preocupado com gatilhos, com sensibilidades, com identitarismos. Ele vem de outro lugar, e eu não estou dizendo isso porque ele é velho. É porque ele tem um outro projeto de literatura, e esse é muito mais baseado numa ideia de interesse total pelo ser humano nas suas mais variadas formas, inclusive nas ruins, e destoa bastante do que a gente está acostumado a produzir e a ler hoje”, pontua.>
Celebrando a publicação da obra completa de Trevisan pela Todavia, que expande sua escrita para cada vez mais pessoas, para Galindo, ler Dalton Trevisan é uma experiência ímpar, marcada por invenção e radicalidade. “A pessoa que nunca leu Dalton Trevisan e nunca viu o que ele fez com a língua portuguesa está perdendo uma experiência única. E, além de tudo, tem esse lado de antídoto para certas obsessões do nosso tempo, certas limitações da nossa cultura literária atual. O legado dele é fundamental, incontornável e seria um pecado se ele ficasse limitado à cidade de Curitiba ou aos leitores das gerações anteriores”, finaliza.>