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Entenda por que o livro O avesso da pele foi banido de escolas em quatro estados

Livro de Jeferson Tenório, vencedor do Jabuti em 2021, denuncia mazelas como racismo estrutural, objetificação dos corpos pretos e violência

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  • Andreia Santana

Publicado em 9 de março de 2024 às 05:00

Jeferson Tenório, autor de O avesso da pele Crédito: Carlos Macedo/Divulgação

O pai de Pedro, o professor de literatura Henrique, foi morto durante uma truculenta abordagem policial. Após esse episódio, o rapaz parte em busca de desvendar a história familiar e o passado do pai, um homem negro. Essa é a sinopse de O avesso da pele, romance do escritor Jeferson Tenório vencedor do Prêmio Jabuti, em 2021, e já traduzido para 16 idiomas. Ambientado em Porto Alegre (RS), nos anos 1980, trata-se de um relato intenso, ao mesmo tempo sensível e brutal, ao abordar temas dolorosos como o racismo estrutural, a objetificação de corpos pretos, a educação deficiente e a violência.

Inserido no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2021), O avesso da pele viralizou na internet essa semana não por conta da trajetória vitoriosa no mercado editorial ou por abordar temas necessários à reflexão, mas porque foi banido de escolas e bibliotecas públicas de pelo menos quatro estados: Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul, sob a justificativa de "trazer cenas de sexo impróprias para menores".

A onda conservadora contra o livro começou na cidade de Santa Cruz do Sul (RS), quando a secretária de Educação local, Janaina Venzon, gravou um vídeo lendo trechos aleatórios do livro que ela classificou como lamentável pelo “vocabulário de baixo nível”. Na esteira do episódio, Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul decidiram recolher o livro "para análise", segundo alegaram.

O avesso da pele ganhou um Jabuti e já foi traduzido para 16 idiomas Crédito: Divulgação

Na internet, as redes de bibliófilos (leitores e colecionadores de livros) começaram a comparar a censura a O avesso da pele com o que acontece na distopia Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), onde um corpo de bombeiros especialmente treinado queima livros ‘proibidos’ porque livros 'são perigosos para a mente dos cidadãos'.

O avesso da pele é indicado para alunos do Ensino Médio. O Ministério da Educação (MEC), afirma que foi escolhido por professores de literatura em catálogo digital com 530 títulos que, por sua vez, foram selecionados por mestres em literatura e língua portuguesa. O PNLD tem diversos critérios que os livros precisam cumprir antes de constarem no catálogo.

A censura ao livro de Jeferson Tenório repercutiu também ao longo da semana em meio a autoridades públicas, editoras, escritores e intelectuais, resultando em atos de defesa da obra e também em muita condenação do senso comum, baseada no que o autor, em artigo para sua coluna no UOL, publicado na quinta-feira (07), chama de 'interpretação distorcida'.

Gente que nunca abriu sequer a folha de rosto do livro começou a criticar que era impróprio para crianças com base no vídeo da secretária de educação da cidade gaúcha ou em fake news espalhadas por grupos de mensagem. O livro é indicado para leitores acima dos 14 anos, ou seja, estudantes do Ensino Médio, não para crianças.

"Reforço que O avesso da pele não é livro sobre sexo, mas uma reflexão sobre o letramento racial de jovens negros", argumenta Tenório diante da polêmica. "Não me surpreende que a acusação traga o sexo como argumento para a censura, pois o pensamento ultraconservador não quer pensar a sexualidade", acrescenta o escritor em seu artigo no UOL.

Censura a livros não é uma novidade na história. Em 2023, a Secretaria de Educação de Santa Catarina determinou o recolhimento do clássico Laranja Mecânica, distopia sobre a brutalidade do Estado que, em vez de educar, reprime. Grupos religiosos e políticos conservadores, ao longo do tempo, já perseguiram outras obras (veja uma lista no final do texto).

O escritor Paulo Scott, autor de Marrom e Amarelo, gravou vídeo em defesa de O avesso da pele e traduziu bem a situação: "O fascismo não gosta de literatura, não gosta de reflexão, não gosta de pensamento, ele não gosta de liberdade, sobretudo a liberdade do outro", enfatizou no video que foi compartilhado pela Companhia das Letras, editora que publica o livro de Tenório.

Editoras como a Todavia, que é responsável pela publicação dos livros do baiano Itamar Vieira Jr. (Torto Arado), autor que também denuncia o racismo a partir de suas obras, lançou um manifesto em defesa de O avesso da pele e contra a censura de livros subindo a hastag #defendaolivro, prontamente adotada pela comunidade de leitores no Instagram.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, repudiou o banimento do livro de Tenório. "Meu total repúdio a qualquer tipo de censura em relação à nossa literatura". O secretário-executivo do Minc, Márcio Tavares, também manifestou solidariedade ao autor ao considerar o livro "um dos melhores dos últimos anos".

Disposta a comprar briga contra o conservadorismo, a Companhia das Letras divulgou nesta sexta (08), em seu perfil @companhianaeducacao - voltado para professores e comunidade escolar -, um chamado aos professores de três dos estados onde a obra foi censurada, oferecendo a versão digital de graça.

"Educadores do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul, para ter acesso, na íntegra, à versão digital de O avesso da pele, de Jeferson Tenório, aprovada no PNLD 2021, envie um e-mail para [email protected]. No assunto, coloque #Emdefesadoslivros e, no corpo da mensagem, nome completo e nome da escola em que leciona".

A editora estendeu o benefício aos docentes de todo o país que tiveram o acesso vetado ao livro, lançando a campanha #emdefesadoslivros, para engajar mais leitores contra o obscurantismo.

Dez livros censurados que você deveria ler

1. 1984, George Orwell - Proibido nos EUA durante a Guerra Fria sob acusação de fazer propaganda do comunismo. No mesmo período, foi banido pela União Soviétiva por criticar estados totalitários

2. Feliz Ano Novo, Rubem Fonseca - Censurado pela Ditadura Militar por "ferir a moral e os bons costumes"

3. Harry Potter, J.K. Rowling - Banido nos Emirados Árabes sob acusação de incentivar a bruxaria

4. Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll - Banido na China dos anos 1930 por causa da antropomorfização dos animais da história (quando bichos em fábulas usam linguagem e tem comportamento humanos)

5. O crime do padre Amaro, Eça de Queirós - Incomodou a Igreja Católica em Portugal, que julgou que havia um "teor erótico" que desrespeitava o celibato clerical

6. Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez - Na Rússia, Irã e Kuwait foi banido por conter muitas cenas com "apelo sexual". O livro foi censurado até na Colômbia, país de origem do autor, mas o veto caiu após Gabo vencer o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982

7. As vantagens de ser invisível, Stephen Chbosky - Escolas conservadoras nos EUA consideraram o livro impróprio por abordar dilemas juvenis sobre sexualidade e experimentação de drogas

8. Frankenstein, Mary Shelley - Banido na África do Sul, durante o regime de apartheid, por ser considerado "obsceno"

9. O senhor das moscas, William Golding - Na década de 1960, foi proibido nas escolas de Norwalk, nos EUA. Protestantes interpretaram que a obra retratava humanos como selvagens

10. O Diário de Anne Frank - Em 2010, o relato verídico da adolescente que morreu em um campo de concentração nazista aos 15 anos, teve a sua versão integral considerada imoral em diversas escolas americanas, porque trazia relatos dos anseios sexuais da autora