'Grande Sertão': tom exagerado é a grande virtude do filme

Diretor Guel Arraes abusa de tom hiperbólico na fotografia, edição e performance de atores. E isso fica fascinante

  • Foto do(a) author(a) Roberto Midlej
  • Roberto Midlej

Publicado em 6 de junho de 2024 às 07:47

Luisa Arraes e Caio Blat
Luisa Arraes e Caio Blat Crédito: divulgação

Incrível, impactante, impressionante, deslumbrante, chocante, espetacular. E perdão pelo clichê, mas é um “clássico instantâneo”. Falar isso tudo sobre Grande Sertão, que estreia hoje nos cinemas, soa exagerado, sabemos. E talvez seja mesmo. Mas é que o filme baseado na obra de Guimarães Rosa, por seu tom hiperbólico, pede adjetivos igualmente exagerados. A interpretação dos atores, o figurino, os diálogos, a fotografia, a edição… tudo é “over”. Mas os exageros se encaixam muito bem e, claramente, essa foi uma opção consciente do diretor Guel Arraes, o mesmo de O Auto da Compadecida (2000).

Em entrevista ao CORREIO, o cineasta foi provocado a falar sobre esses supostos excessos do filme e ele não negou. Ao contrário, foi enfático quando questionado se, ao dirigir os atores, pedia isso: “Totalmente! Todo o filme é meio grande e foge da estética realista. O texto é poético, grandioso… [os diálogos] tem sonâncias incríveis! Queríamos algo ‘grande’ mesmo. Queríamos contar a guerra como ele [Guimarães Rosa] contou”. Arraes compara o tom épico do livro ao poema Ilíada, de Homero, sobre a Guerra de Tróia e faz um paralelo entre os personagens. Para o cineasta, Joca Ramiro, de Grande Sertão, corresponde a Aquiles e Zé Bebelo é o Heitor do poema.

Nesta adaptação que estreia hoje, o sertão original de Guimarães Rosa é substituído pela periferia urbana. No filme, a comunidade conhecida como Grande Sertão é controlada por facções criminosas e Riobaldo (Caio Blat) acaba entrando em uma delas para seguir Diadorim (Luisa Arraes), seu amigo, por quem ele tem uma paixão que reluta admitir. No lugar dos jagunços do livro, estão bandidos que remetem aos criminosos contemporâneos ligados ao tráfico.

Sem maneirismos

A transposição da história para o ambiente urbano poderia soar como mero maneirismo e corria risco de resultar em algo artificial, forçado. Mas, incrivelmente, não é isso que ocorre, porque tudo soa verossímil. “Trazer Grande Sertão para hoje não é um cacoete, não é um truque. Pois aquela guerra que existiu no Brasil [e está no livro] é hoje a mesma guerra”, afirma o diretor.

E, junto com Guel Arraes, há outro responsável por essa bem-sucedida experiência de transpor Grande Sertão para o cinema: Jorge Furtado, que assina o roteiro com o diretor. Furtado foi revelado no clássico curta-metragem Ilha das Flores (1989) e se firmou um dos mais importantes roteiristas e diretores do audiovisual brasileiro contemporâneo, de filmes e séries como Saneamento Básico (2007) e Sob Pressão. “Jorge é incrível! Quando nos juntamos, parece que surge uma nova entidade: poderíamos assinar juntos como um pseudônimo”, brinca Guel.

Junte-se ao ótimo roteiro a escolha de atores muito talentosos, a começar pela garotinha que interpreta Diadorim criança, Vittória Seixas. E, se você ainda insiste em lembrar de Eduardo Sterblitch por seu histrionismo em Pânico na TV, esqueça de uma vez por todas: é, seguramente, um dos atores mais versáteis do país. O Hermógenes que ele cria é assustador. Para isso, contribui, claro, o ótimo trabalho de maquiagem, que ajuda a dar ao personagem um aspecto demoníaco.

O diretor diz que nunca cogitou outro ator para o papel e queria de Sterblitch o histrionismo que marcou o início trabalho dele: “Em vez de esquecer o que ele fez no Pânico, lembrei muito do que ele fez. O tom do filme é ‘sublinhado’ e aquele cara, que é a possível encarnação do demônio, tem que ‘sobrerrepresentar’ aglo que já é ‘sobrerrepresentado’. O personagem tem um tom acima e isso me dava segurança para chamá-lo”, defende Guel.

Caio Blat vive Riobaldo em dois momentos: na juventude, quando se junto aos bandidos, e na velhice, quando já está preso. O ator brilha nas duas circunstâncias, mas é nesse segundo momento, quando atua sozinho, que mais se destaca. O personagem aí ganha tons proféticos e o espectador tem a sensação de assistir a um monólogo teatral.

Caio já havia interpretado Riobaldo no teatro, mas diz que, no filme, “começou do zero”: “No cinema, é um personagem diferente, professor de uma favela contemporânea. Comecei a pensar quem seria ele, como falava… afinal, o livro é a fala do Riobaldo”, observa o ator. Caio diz que, sob influência do rap, mexeu em algumas falas e inseriu nelas as batidas do ritmo musical. “Mexi nas frases para ressaltar as rimas. Fiz, por exemplo, a sugestão de dizer os nomes do diabo em rima”, revela.

No elenco, também está o baiano Luís Miranda, no papel de Zé Bebelo, um militar que pretende ser político. “Ele é um anti-herói, que parece que vai fazer uma coisa e acaba fazendo outra. Um herói às avessas. Ele percebe que a lei lhe dá uma rasteira e, quando olha para o outro lado, vê pessoas que vão na linha de Robin Hood. E, se é para ter ética, ele prefere a ética dos bandidos”, reflete Luís.

Em cartaz: UCI (Shopping da Bahia, Barra e Paralela); Cinemark (Salvador Shopping); Cineflix (Shopping Bela Vista); Cinépolis (Parque Bahia e Salvador Norte); Glauber Rocha e Saladearte (Paseo e Ufba)