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Série chega ao fim com provas vivas de como a arte pode ajudar a reconstruir a autoestima e a vida de jovens que virariam estatística no mapa da violência
Laura Fernades
Publicado em 17 de outubro de 2015 às 07:43
- Atualizado há um ano
Aos 8 anos, a brincadeira que o pequeno Tauamim Kuango mais gostava não era jogar bola, nem empinar pipa. “Gostava é de tocar lata no quintal. E todo dia a vizinha jogava água e mandava parar, porque não aguentava mais a zoada”, conta, aos risos, o músico que hoje, aos 28 anos, é um dos percussionistas da Band’Aiyê, principal formação do Ilê Aiyê.
Na época, ao ver a brincadeira do filho, a cuidadora e empregada doméstica Célia Maria da Silva, 46, teve a ideia de colocá-lo num projeto recente no bairro, a Band’Erê. Além de deixar o garoto longe da rua, a decisão a permitiria trabalhar, já que cuidava sozinha de Tauamim: o pai foi assassinado quando ela estava grávida de seis meses.O músico Tauamim Kuango diz que entrar no Ilê, há 20 anos, o livrou da violência que matou seu pai(Foto: Arisson Marinho/CORREIO)“A perda foi uma mudança muito brusca na minha vida. Eu era muito jovem, tinha 18 anos. Precisava trabalhar e foi um meio de proteger Tauamim da violência”, conta Célia, ao revelar que o pai do garoto foi vítima de assalto em uma feira da Liberdade, com 24 anos. “Hoje, agradeço meu filho ser o que é por causa da música, do Ilê”, comemora.Foi então que o garoto começou a traçar sua história. Hoje, além de tocar na principal formação do Ilê, é líder do grupo AfroDendê e de uma linha de acessórios inspirada na cultura de matriz africana. “Nasci na periferia, menino negro, de mãe solteira... A percussão entrou na minha vida para substituir o sentimento paterno e para me fortalecer como homem, como cidadão”, garante Tauamim.
A história do percussionista é apenas uma das que ilustram como jovens em situação de vulnerabilidade social, fisgados pela música, dão continuidade ao aprendizado da infância, seja tocando ou transformando a vida de outros.“Poderia, por vários problemas, não querer tocar e procurar o caminho do tráfico. Mas preferi a cultura, a arte, o tambor. Acredito no poder que a música tem perante nossa sociedade. Encaro a música como salvação de tirar o jovem da rua, porque sou a prova disso”, diz Tauamim.
InvestimentoSe, depois de acompanhar as duas reportagens da série A Música Transforma, o leitor ainda tem dúvidas sobre o poder da arte, aí vai um novo convite. Nesta terceira e última matéria, conheça exemplos de vidas tocadas pela música.Com trajetória inicial à de tantos conhecidos, Luciano “Piu” Santos, 30, mostra que mudar é possível, principalmente se começa na infância. O percussionista começou na Band’Erê com apenas 7 anos, passou pela Band’Aiyê e hoje vive de música: é integrante da banda do pagodeiro Léo Santana.Luciano hoje toca com Léo Santana (Foto: Divulgação)Com orgulho, Luciano conta que já fez diversas turnês pela Europa e Estados Unidos, além de ter sido convidado a participar de workshops em vários estados do Brasil. “Tudo o que tenho foi graças à música”, comemora, ao destacar sua gratidão pela oportunidade que lhe foi dada quando era bem pequeno. “Você se descobre mais e vê que tem potencial”, justifica.
Agora, Luciano está montando um projeto de percussão dedicado às crianças: “Por que crianças? Porque deu certo comigo. Me descobri assim. Pode ter alguém na rua, desacreditado, que talvez se encontre num projeto como esse”.
PotencialOutro que escolheu fazer a diferença é Mestre Mario Pam, 38, aluno da primeira turma da Band’Erê, em 1991, com Mestre Senac. Depois de tocar na banda mirim e na adulta, onde está até hoje, Mestre Mario se aperfeiçoou com um curso de percussão na Universidade Federal da Bahia e uma licenciatura em música, na Universidade Católica.A música entrou na vida de Mestre Mario há 24 anos e ele se aperfeiçoou com cursos na Ufba e Católica(Foto: Arisson Marinho/CORREIO)“Com 15 anos, fiz minha primeira turnê na Europa. Pra gente que é de comunidade, que não tem oportunidade de viajar nem até Feira de Santana, foi muito bom”, lembra. Hoje, ele lidera o projeto Tambores do Mundo, de intercâmbio percussivo entre grupos que executam a música afro- baiana pelo mundo.
Mestre Mario, Luciano e Tauamim são apenas três exemplos de um extenso universo de projetos que apostam na música para mudar a sociedade. “Vivemos em um país onde muita coisa precisa melhorar. Mas, investindo em cultura e mais educação, a gente pode salvar muita criança, muito adolescente e adulto também. Seja através da música ou de qualquer outra arte”, conclui Tauamim.
‘Aprende quem ensina’ é lema entre alunos e professoresCriado na Liberdade, morador da Mata Escura, o músico e regente Esdrass Efraim, 28, reverbera o lema dos Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba): “Aprende quem ensina”. Aluno do programa desde o início, em 2007, Esdrass passou por qualificação interna e hoje é coordenador pedagógico do Núcleo de Prática Orquestral (NPO) Bairro da Paz. “Vi que quanto mais ensinava mais eu aprendia. Funciona mesmo, é impressionante”, destaca Esdrass, que começou a tocar, com 12 anos, na Igreja da Assembleia de Deus.Esdrass Efraim estimula a autonomia dos alunos do Bairro da Paz(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)Hoje, ele lida com 128 alunos do Bairro da Paz, de 8 a 19 anos, e destaca que é uma tarefa difícil, mas gratificante. “Quando a gente delega funções, coloca para liderar o naipe, a aula, muda o processo. Fico feliz em ver os líderes surgindo”, comemora a autonomia dos alunos. Então, destaca: “Se a gente quer transformar o Brasil, primeiro vem a gente, depois a família, a comunidade e vai expandido. Você quer que alguém faça algo? Demonstre. Por isso sempre repito: ‘a palavra convence, mas o exemplo arrasta’”.
Profissionalização e autoestima para mundo melhor“Nossa realidade é dura e os alunos falam da violência com muita naturalidade”, alerta a musicista Priscila Santana, 27 anos, responsável por coordenar o maior NPO do Neojiba, o do Sesi Itapagipe. À frente do núcleo, criado em 2011, Priscila é responsável por lidar com 300 alunos que vivem no entorno da Ribeira, entre crianças e jovens de 6 a 15 anos, e pessoas com deficiência intelectual de até 49.
Apesar de destacar a realidade cruel que atinge Salvador e outras cidades da Bahia (líder em assassinatos no Brasil, segundo pesquisa divulgada pelo Ministério da Justiça), a coordenadora ressalta que “a visão de mundo” permitida pelos projetos sociais é o que mais importa.
“A vida é muito cruel, mas tem outros pontos que podem ser muito legais. A música, por exemplo, conecta pessoas e isso abrange seu repertório, não só musical, mas de universo”, diz Priscila, que também é jornalista de formação e aluna do Rumpilezzinho Formação Musical para Jovens, criado pelo maestro Letieres Leite.Priscila Santana é musicista e coordena núcleo do Neojiba em Itapagipe(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)Priscila reforça que a prática musical não só permite crescimento humano, mas cria uma porta para a profissionalização. “Isso é muito importante nos projetos sociais, porque eles dão esse leque de possibilidades. E são possibilidades que vão além do ser profissional, porque você leva essas noções para o resto da vida”, defende. Sobre a autoestima, a coordenadora destaca que “80% dos alunos do Neojiba são declarados pardos e negros”.
Daí a importância, segundo ela, de se valorizar a música de matriz africana, além da europeia. “Se você se conscientiza, todo um processo de autoestima vem junto”, justifica. “São pequenas coisas que a sociedade não valoriza, porque não são retornos quantificáveis. Mas essa visão de mundo que os projetos sociais trabalha é que muda a pessoa para melhor”, conclui.