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Do Benin a Salvador: onde a herança africana se manifesta nos baianos

80% dos soteropolitanos se declaram negros

  • L
  • Luiza Gonçalves

Publicado em 25 de novembro de 2023 às 05:00

“Só quem carrega o dendê no sangue sabe a importância de um tabuleiro de acarajé
“Só quem carrega o dendê no sangue sabe a importância de um tabuleiro de acarajé" diz Cintia Maria, diretora do Muncab Crédito: Créditos: Marina Silva

Salvador, cidade de negritude pulsante. É impossível pensar numa cultura baiana, soteropolitana, que se desassocie da vida de seus mais de 80% de habitantes declarados negros e da herança afrodiaspórica que forjou a primeira cidade do Brasil. Território de identidade, espiritualidade, arte, enfrentamento político, fluxo e refluxo da história, a cidade de Salvador é a África explorada, ressignificada e aqui herdada.

A Bahia se destaca entre os estados brasileiros com mais presença de africanos em sua capital e na preservação de sua ancestralidade, trazendo a força do protagonismo negro na condução dessa trajetória que liga o Brasil à África. “A cidade de Salvador é resultado das continuidades dos elementos civilizatórios negros no novo mundo e, ao mesmo tempo, uma adaptação dessas culturas africanas que aqui chegaram” explica o antropólogo e babalorixá Vilson Caetano.

Esse processo descrito por Vilson foi estudado detalhadamente pelo etnólogo francês Pierre Verger no livro Fluxo e Refluxo: Do Tráfico de Escravos Entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos-os-Santos do Século XVII ao XIX, publicado pela primeira vez em 1968. Nele, Verger seguiu a documentação feita na costa da África e as cartas do negreiro José Francisco dos Santos, conhecido como Alfaiate, para dimensionar o tamanho do tráfico de africanos a partir do Golfo do Benin para o Brasil. “Apesar dessas comunidades terem praticamente perdido contato a partir do início do século XX, seus integrantes tornaram-se, em termos culturais, africanos do Brasil e brasileiros da África”, destaca Verger.

Para explicar melhor esse movimento, o autor dividiu o tráfico de africanos vindos para a na Bahia em quatro períodos: Ciclo da Guiné na segunda metade do Séc. XVI; Ciclo de Angola e do Congo no séc XVII; Ciclo da Costa da Mina durante três primeiros quartos do séc XVIIII e Ciclo do Golfo do Benin entre 1770 e 1850, com a predominância dos povos nagô-iorubá. Ainda de acordo com Verger, ao todo, a Bahia teria recebido mais de 1.5 milhão de escravizados, sendo 71% vindos do Golfo do Benin, região que se estende do sudoeste da Nigéria, Benin e Togo.

A vinda maciça de povos nagôs-iorubás, juntamente com a resistência às influências culturais externas e a consciência do valor de sua própria cultura, firmemente ligada aos preceitos de suas religiões, fez com que houvesse a fortificação dessa identidade em Salvador e a reverberação desse “fluxo-refluxo” ainda hoje.

Vilson Caetano percebeu isso claramente quando visitou a Nigéria: “Tive a oportunidade de ir a algumas cidades como Oyó, Ifé, Ibadan, Osogbo. Comi as mesmas comidas que como aqui, vi maneiras de mercar idênticas às maneiras que nós conservamos aqui, vi relações hierárquicas semelhantes às que nós temos aqui. Há uma continuidade do continente africano na cidade de Salvador e vice e versa, se a gente pensa os africanos retornados”.

Vilson Caetano babalorixá e antorpologo pesquisador da cultura afro-brasileira
Vilson Caetano, babalorixá e antropólogo pesquisador da cultura afro-brasileira Crédito: Créditos: Paula Fróes

Território negro

Para Jamile Borges, coordenadora do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Ufba, só é possível pensar na geografia de Salvador a partir do trabalho e da cultura dos povos negros escravizados que fundaram seu território enquanto local de luta pela permanência, troca materiais e espirituais e exercício da vida.

“A cidade das pessoas invisibilizadas e destratadas é também a cidade das festas, do imaginário religioso que confunde datas e santos; é a cidade da sinuosidade das ladeiras e das pedras portuguesas sobre as quais se erguem casas, terreiros, bares, sambas, formas, cores, cheiros e sons que ainda parecem ecoar histórias passadas como a nos lembrar do que já fomos, como motor para o que ainda podemos ser. Para nós, negros e negras, herdeiros do sonho da vida pós-abolição, ainda resta uma cidade bonita e enigmática” reflete Jamile.

Jamile Borges, professora, pesquisadora e  coordenadora do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Ufba
Jamile Borges, professora, pesquisadora e coordenadora do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Ufba Crédito: Créditos: Marina Silva 

Essa africanidade se expressa nas dinâmicas da cidade: nas cores, alimentos, nos mercados e feiras, nas placas, nomes de edifícios, palavras e gírias que carregam marcas do bantu, do iorubá nas religiosidades, nos modos de gesticular, na expressão artística. Uma memória viva, que começa pelo corpo. “A gente carrega no nosso corpo uma memória corporal, um DNA que vem de muito tempo e a partir desse corpo a gente vai ter uma ancestralidade que articula com visões de mundo africanas” diz Maria Estela Rocha, pesquisadora das arquiteturas afro-brasileiras.

Em suas pesquisas nos bairros da Liberdade e Engenho Velho da Federação, ela destaca a potência dos bairro negros como lugares onde essa ancestralidade é manifestada cotidianamente nos saberes e na coletividade. A arquiteta também destaca na geografia da resistência africana urbana os quilombos e os terreiros.

“Nos momentos iniciais de formação da cidade de Salvador, falando dos séculos XVIII, XIX e XX, eram buscados lugares estratégicos de esconderijo para os quilombos. Mas os terreiros também vão buscar a proximidade de fontes de água, rios, cachoeiras, dos mares e das áreas de mata. A partir daí, a gente também vai ter essa construção desses territórios negros passando por lugares de oferenda, como a Lagoa do Abaeté, e pelos mercados, de forma que essa cultura ancestral vai estar vinculada à geografia”, explica.

Ou, como sintetiza a professora Jamile Borges: “Salvador é um sopro contínuo, um corpo pulsante que teima, resiste, sempre em estado de fervor e insurreição, como quem se determina a ter sonhos, a produzir utopias, horizontes e futuros ainda que tudo diga não. E, como diz o poeta: ‘apesar de tanto não, tanta dor que nos invade, somos nós, a alegria da cidade’”.

Maria Estela Rocha, arquiteta e pesquisadora
Maria Estela Rocha, arquiteta e pesquisadora Crédito: Créditos: Marina Silva

Matriz na religião

Destaque nas falas de todos os entrevistados, a influência africana em Salvador aparece quase como um sinônimo de religiosidade, principalmente no candomblé. De acordo com dados do CEAO-Ufba, em 2016, Salvador tinha 1.165 terreiros registrados. “Na preservação e na manutenção desse conhecimento africano pré-colonial na Bahia, a gente tem que falar de espaços como os quilombos e os terreiros de candomblé. Espaços sagrados, onde, a partir da manutenção da religião, se mantém todo um conhecimento filosófico, espiritual, científico, sobre as culturas africanas advindas do processo de escravização” defende Ayrson Heráclito.

Em suas vivências enquanto artista visual, professor e no cargo de ogan, Ayrson é atravessado pelo universo religioso afro-brasileiro, que o faz refletir sobre a herança dessas relações com a natureza e a espiritualidade no cotidiano de Salvador.

Ele exemplifica com as festas populares: “Me comove bastante todas as festas, todos os rituais, onde a população afro-baiana e descendente do candomblé se relacionam a partir dos presentes. Por exemplo, os presentes na festa de Iemanjá. É muito interessante porque conecta toda a população num grande ritual, que é uma oferenda para uma divindade do mar. Então, a festa de Iemanjá, assim como a festa de Iansã/Santa Bárbara, a festa do Senhor do Bonfim , são festas que se transformam pela ritualidade dessa relação que a cultura afro-baiana estabelece com essas divindades.”

Sacudimento, de Ayrson Heráclito
"Sacudimento", foto de Ayrson Heráclito que esta na exposição Agô, no Palacete das Artes  Crédito: Bastien Defives/Divulgação

A origem de Jorjão Bafafé começa no Terreiro de Jagum, onde começou a aprender percussão com os alabês aos 8 anos, e se estende em mais de 40 anos de contribuições na música baiana. Foi um dos fundadores do Afoxé Badauê, participou do Araketu e criou, em 1982, o Bloco Afro Ókánbí. Mestre da percussão, tocou pelo mundo com grandes nomes da música negra, como Jimmy Cliff, Margareth Menezes e Lazzo Matumbi.

“A minha cultura africana, a minha influência, a primeira palavra África que eu conheci foi no terreiro de candomblé de minha avó Amélia, aqui no Engenho Velho de Brotas. Essa influência cultural me enriquece muito e eu não aprendi na escola, não aprendi na rua, aprendi com os grandes mestres da cultura que perpassam pelo candomblé. Essa é minha base cultural, essa é a minha formação, essa é minha universidade”, afirma Jorjão.

Mestre Jorjão Bafafé em apresentação no Ilê Axé Opô Afonjá acompanhado do percussionista senegalês Doudou Rose
Mestre Jorjão Bafafé em apresentação no Ilê Axé Opô Afonjá acompanhado do percussionista senegalês Doudou Rose Crédito: Créditos: Israel Fagundes

Herança africana 

Dança, música e figurinos coloridos em cena para narrar o continente africano. Em Áfricas, primeiro espetáculo infantojuvenil do Bando de Teatro Olodum, as narrativas que conectam a Bahia e a África são reinventadas e exploradas através de histórias, lendas e mitos. Em cartaz pela primeira vez há mais de 10 anos, a peça tinha o desafio de falar para as novas gerações sobre “outras Áfricas”.

“A arte tem um poder de criar o simbólico, que pode falar mais que as palavras, que a própria voz. Então, as artes visuais, a música, a dança, todas essas linguagens artísticas são importantes para manter e ressignificar essa herança artística africana“, diz Ayrson Heráclito. Ele se debruça no estudo desse conhecimento cultural herdado, principalmente na alimentação e na forma de se relacionar com a natureza, para pensar suas fotografias, esculturas e instalações.

Foi a partir da produção de Òrun Àiyé: a Criação do Mundo, documentário que aborda a mistura entre as culturas e as identidades de Salvador e de países africanos, que a cineasta Cintia Maria começou a pensar arte, negritude e africanidade: “Essa obra não apenas proporcionou uma incursão no autoconhecimento, através da ancestralidade, mas também ressaltou a importância da arte como instrumento político de resistência. A fé em nosso trabalho e o compromisso com uma sociedade antirracista, onde as futuras gerações negras não enfrentem os desafios que nós enfrentamos atualmente, são motivações que impulsionam minha atuação”.

Cintia Maria, gestora cultural, cineasta e diretora do Muncab
Cintia Maria, gestora cultural, cineasta e diretora do Muncab Crédito: Créditos: Marina Silva

Diretora do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), Cintia acredita na importância sociocultural do espaço para a valorização das artes, destacando a diversidade do Brasil e promovendo o reconhecimento dos artistas negros. “Só quem carrega o dendê no sangue sabe a importância de um tabuleiro de acarajé”, de uma infância marcada pela tradição das comidas afro-baianas, ao contato com referências como Ubiratan Castro, Fátima Fróes e Zulu Araújo, a cineasta cruza histórias da “África vibrante dentro de cada um de nós”.

Jorjão Bafafé conta que no contato que teve com o músico Jimmy Cliff pode ver as similaridades entre as culturas baiana e jamaicana, que também eram similares à de Cuba e de outros territórios afrodiaspóricos. O músico explica que isso faz parte da herança da cultura africana, em que parte é conservada, parte é transformada com as misturas de ritmos e influência político-cultural local. “A música da Bahia e a música da África são diferentes, mas têm o mesmo sentimento musical. Tem a forma de se expressar cantando, de protestar cantando, de chorar cantando, de amar cantando e é isso que nós fazemos aqui com nossa origem africana. Nós, negros que fazemos a música afro-baiana, temos esse sentimento nos blocos afros, nos afoxés. A música que os brancos da Bahia fazem é uma e a que os negros fazem é outra”, destaca Bafafé.