Conheça quem está por trás da preparação das fanfarras do 2 de julho

33 grupos ajustam os últimos detalhes para o desfile de domingo (2)

  • Foto do(a) author(a) Maysa Polcri
  • Maysa Polcri

Publicado em 30 de junho de 2023 às 05:00

Cerca de 50 alunos vão se apresentar na fanfarra da Escola Municipal da Palestina
Cerca de 50 alunos vão se apresentar na fanfarra da Escola Municipal da Palestina Crédito: Paula Fróes

Enquanto a maior parte dos alunos aproveita as férias escolares, sons de instrumentos de percussão e sopro ecoam pelos corredores vazios de colégios estaduais e municipais de Salvador. Alunos, professores e voluntários definem os ajustes finais do tão aguardado desfile do Dois de Julho, que acontecerá no domingo (2). No ano em que é comemorado o bicentenário da Independência do Brasil na Bahia, dez fanfarras disputam os títulos de melhor banda e balizador. Para que os 33 grupos estejam prontos para ganhar as ruas, uma equipe se dedica durante meses na preparação de coreografias e figurinos, mesmo com a escassez de recursos financeiros.

Passaram quase 60 anos, mas Iza Maria Mendes, 68, lembra bem do dia em que pediu para viajar de Feira de Santana, onde morava, para a capital baiana. O motivo? Se apresentar como dançarina na fanfarra do colégio no desfile do Dois de Julho. Os tempos eram outros e o desejo não foi bem recebido pelo pai, que a proibiu de participar da festa. “Minha irmã era dois anos mais velha e tocava. Meu pai sempre foi muito ciumento e só deixou ela ir, ele cortou meus sonhos muitas vezes”, relembra.

A paixão de Iza Maria permaneceu latente no peito mesmo com o passar das décadas. Apesar da decepção de quando era criança, o destino não deixou que ela se afastasse das fanfarras. Há 30 anos, Iza participa da coordenação de uma das fanfarras mais tradicionais de Salvador: a do Colégio Estadual Raphael Serravalle, na Pituba. Iza Maria é a responsável pelo desenho e costura de todos os figurinos utilizados no desfile. Foram cerca de três meses até que as 65 vestimentas ficassem prontas.

Iza Maria é a responsável pelo desenho e confecção dos figurinos há 30 anos e não pretende parar
Iza Maria é a responsável pelo desenho e confecção dos figurinos há 30 anos e não pretende parar Crédito: Paula Fróes

Mas a presença de Iza na organização do desfile supera a confecção das vestimentas. É ela quem fica de olho em todos os detalhes nos ensaios para garantir que tudo saia perfeito no trajeto entre a Lapinha e o Campo Grande. Perfeccionismo, aliás, é a sua principal característica, junto com a rigidez. “Até hoje eu tenho muita garra para fazer isso tudo por amor. Eu acordo cedo e, às 6 horas, começo a fazer os figurinos, paro para o almoço, e vou até às 23 horas”, diz.

Voluntariado

Todo o trabalho de Iza Maria é voluntário. O que ela ganha em troca da dedicação é a gratidão dos alunos, que a enxergam como uma figura vital para a continuidade da tradição, que passa através das gerações. Prova disso é que os dois netos da senhora, de 18 e 8 anos cada, também participam dos desfiles. O mais velho, David Mendes, já se formou no colégio, mas continua se apresentando e ensina os mais novos.

“Quando eu era pequeno, via minha avó trabalhando na fanfarra e pedi para participar. Comecei tocando corneta e, conforme o tempo foi passando, evolui nos instrumentos de sopro”, conta David, que é monitor dos sopranos da fanfarra do Serravalle. Agora, que está no papel de ensinar, entende a rigidez que a avó sempre teve com os alunos. “Antes, achava que não era nada demais, hoje, vejo que não é nada fácil. Representamos o nome do colégio e, se não tivermos disciplina, vamos ficar mal vistos”, ressalta.

Alunos do Colégio Estadual Raphael Serravalle fazem os últimos ajustes antes do ensaio final, no sábado (1º)
Alunos do Colégio Estadual Raphael Serravalle fazem os últimos ajustes antes do ensaio final, no sábado (1º) Crédito: Paula Fróes

Neste Dois de Julho, 33 fanfarras vão se apresentar. Dez grupos foram escolhidos para participar da disputa de melhor banda e balizadores, que fazem as acrobacias. Seis jurados avaliarão a apresentação das fanfarras em dois pontos do cortejo: na Praça da Piedade e no Largo do Rosário. A fanfarra ganhadora da competição receberá uma placa que será instalada na escola.

Dedicação

A casa de Valteir Santos, 47, precisou ser ampliada para abrigar as duas máquinas de costura utilizadas para a produção dos figurinos dos 50 integrantes da Banda Marcial da Escola Municipal da Palestina (Bamup). Com um apito e olhares atentos, ele rege a fanfarra e orienta os alunos, que possuem idade entre 8 e 18 anos. Impressiona a forma com que os estudantes se movem, ao acompanhar, com os pés, as batidas dos instrumentos de percussão em sincronia com os colegas.

Isso porque a fanfarra é do tipo banda marcial com evolução, como explica o regente Valteir. “A fanfarra tem o pelotão cívico, o corpo musical, balizadores e dançarinos. Nossa banda é do tipo com evolução, isso significa que eles tocam fazendo a coreografia, o que deixa a apresentação mais difícil”, diz. Valteir faz parte de uma equipe de voluntários que realizam todo o trabalho dos bastidores para a preparação das fanfarras, que começa em janeiro.

A paixão de Valteir pelas fanfarras teve início quando ele, ainda criança, desfilava
A paixão de Valteir pelas fanfarras teve início quando ele, ainda criança, desfilava Crédito: Paula Fróes

Por trás dos figurinos que os alunos vestem na avenida, estão as mãos de Hélio Alves, 45, e Ivan Paulo, 47. São eles que desenham as roupas e comandam as máquinas de costura que ficam na casa de Valteir. O trabalho é pesado, mas vale a pena quando chega o dia da apresentação. “É uma emoção muito grande porque a gente enfrenta muita dificuldade, falta de dinheiro e de verba. São quase dez anos de muita dedicação e nós ficamos emocionados quando vemos os meninos, que passaram o ano inteiro ensaiando, nas ruas”, afirma Hélio.

Resgate das ruas

Quando estão dentro da quadra ensaiando, os meninos e meninas esquecem a violência que assola o bairro para além dos portões da Escola Municipal da Palestina. Não são poucos alunos que tiveram que sair da fanfarra porque familiares precisaram se mudar do bairro pelo envolvimento com o tráfico de drogas. A apresentação da fanfarra, para os voluntários mais velhos, é uma forma de retirar o estigma de que o bairro é marcado pela criminalidade.

“Não queremos que a Palestina seja reconhecida pela violência e esse trabalho fortalece isso. A música, a dança e o civismo são formas de tirar os meninos de estigma do bairro”, defende Hélio Alves. Para os alunos, não há melhor lugar para fortalecer as amizades e ocupar a mente, como conta Ítalo Avelino, 15, que, desde os oito, participa da fanfarra.

Hélio é mais um voluntário que ajuda a colocar as fanfarras nas ruas no 2 de julho
Hélio é mais um voluntário que ajuda a colocar as fanfarras nas ruas no 2 de julho Crédito: Paula Fróes

“Ficar aqui é divertido e ajuda que a gente não vá para o caminho errado”, diz. Mesmo sendo veterano nas apresentações, o jovem não esconde a ansiedade em participar da comemoração do bicentenário da independência. “A gente pode se apresentar quantas vezes for, mas sempre bate um nervoso na hora de começar o percurso”, revela.

O projeto Bahia livre: 200 anos de independência é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.

*Com orientação de Monique Lôbo.