Auxílio emergencial para arte

Recursos da Lei Aldir Blanc podem não sair dos cofres federais por  pura burocracia

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  • Ronaldo Jacobina

Publicado em 6 de setembro de 2020 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: foto/Arisson Marinho

Os tambores que já ecoaram em mais de 30 países silenciaram. A agenda de viagens está cheia de rabiscos que marcam os cancelamentos de compromissos profissionais. Os shows minguaram e a renda do trabalho, que durante mais de quatro décadas alimentou a família, sumiram de uma hora para outra.

O percussionista e compositor baiano Boghan Gaboot - que tem obras gravadas por nomes consagrados como Carlinhos Brown e Daniela Mercury, e sua percussão registrada em mais 120 álbuns de artistas nacionais e internacionais – está, desde fevereiro passado, enfrentando dificuldades para abastecer a despensa de casa.

Em maio último, parte dos boletos que acumulava na gaveta foi quitada com a primeira parcela de R$ 600 que recebeu do Auxilio Emergencial do Governo Federal. Para o artista, que trabalha para sobreviver desde os 10 anos, o maior agravante é a incerteza do futuro. “Nosso setor foi o primeiro a ter as atividades suspensas e, com certeza, será o último a voltar”, lamenta.

A ausência de trabalho e a dificuldade para colocar comida na mesa também tem tirado o sono de Neemias Almeida Oliveira. O baiano, que atua nos bastidores da indústria de espetáculos há mais de 20 anos como roadie, tem vivido de bicos desde março passado.“Tenho aceitado o trampo que aparece para não deixar minha família passar fome”, conta. O percussionista Boghan Gaboot viu os shows serem cancelados e a despensa de casa esvaziar (foto/Sora Maia) A história de Boghan e Neemias é o retrato fiel da realidade vivida desde o começo da pandemia por grande parte dos mais dos cerca de 5 milhões de trabalhadores do setor cultural no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad). De acordo com uma pesquisa realizada pelo Observatório da Economia Criativa, em parceria com universidades públicas, como UFBA e UFRB, realizada entre março e julho passados, 80,7 % dos trabalhadores da cultura no estado não têm vínculo empregatício.

No final de junho deste ano, estes profissionais começaram a enxergar uma luz no fundo do palco. Boghan, Neemias e outros milhares de trabalhadores da cultura celebraram a Lei Emergencial para a Cultura, batizada de Lei Aldir Blanc (em homenagem ao compositor, uma das mais de 124 mil vítimas da covid-19 no Brasil), que, depois de passar pela Câmara e Senado, foi sancionada pelo presidente da República.

 Divisão A nova lei vai tirar do cofre do Fundo Nacional de Cultura (FNC) R$ 3 bilhões para ajudar o setor combalido. A lei reza que deste montante metade será destinada a mais de cinco mil municípios brasileiros enquanto a outra metade irá para os estados e Distrito Federal para realização de ações como o pagamento de um auxílio emergencial de R$ 600 aos trabalhadores da cultura (80%). Os 20% restantes do que cabe aos estados deverão ser direcionados para a realização de editais e chamadas públicas.

Assim, feita a divisão, caberá ao Governo da Bahia, R$ 110 milhões - Salvador receberá R$ 18,7 milhões. Os gestores municipais ficarão responsáveis pela execução das ações previstas em dois dos incisos da lei: ajuda com subsídios mensais para espaços culturais, micro e pequenas empresas, cooperativas e organizações culturais comunitárias; e a realização de editais e chamadas públicas promovidos pelo estado.

Esta é a primeira vez que a área cultural receberá uma soma tão vultosa, assim como é a primeira vez também que os recursos serão descentralizados, assim como acontece nas áreas da saúde e educação, com a verba chegando aos municípios.“A forma como a lei foi montada foi muito acertada porque vai além do auxílio emergencial. Foi importante por pensar na organização do sistema. A descentralização dará maior chance de alcançar um maior número de trabalhadores da cultura”, defende o pesquisador e gestor da área cultural, Carlos Paiva. Para ele, este não é um desafio fácil, mas é uma conquista.A liberação dos recursos do FNC era tudo que o setor sonhava muito antes mesmo do mundo girar sem o novo coronavírus. Mas os aplausos duraram pouco. Três meses depois da aprovação, o dinheiro ainda não saiu dos cofres de Brasília. Um dos entraves foi o atraso na regulamentação pelo presidente da República, que só aconteceu no último dia 18 de agosto. Para dificultar ainda mais, a lei está atrelada ao decreto de calamidade pública  previsto para terminar no próximo dia 31 de dezembro, o que tem deixado a categoria insone.

“O governo federal postergou demais, acho que o que ele quer é dizer: ‘olhe aí, eu dei o que vocês queriam e vocês não usaram’, porque vai ser muito difícil para estado e, sobretudo, para os municípios, conseguirem aplicar e cumprir todas as exigências num tempo tão curto”, diz Gabriel Pires, diretor da Associação dos Produtores e Cineastas da Bahia  e coordenador-geral do Nordeste-Lab.

O produtor cultural Thiago Tao, também partilha da mesma opinião:“O governo federal demorou tempo demais para regulamentar a lei. Para completar, o presidente vetou apenas um item, justamente o que dizia respeito ao prazo da execução, que seria de 120 dias, e este não foi estendido, o que dificulta a instrumentalização, a organização do setor, já que estados e municípios têm agora menos de 50 dias para informar ao governo federal como serão gastos os recursos”.A Prefeitura de Salvador garante que tem trabalhado dia e noite para cumprir os prazos. “A primeira parte já fizemos, que é enviar o plano de ação do município de Salvador para a plataforma Mais Brasil. O plano já foi aprovado e estamos habilitados para receber os recursos já no primeiro lote, previsto para 11 de setembro”, afirma Felipe Dias Rego, gerente de promoção cultural da Fundação Gregório de Mattos, responsável pela politica de cultura do município.

Reinvenção Se para a capital baiana parte do caminho já foi feito, parte significativa dos outros 416 municípios do estado, especialmente os menores, ainda não deram nem os primeiros passos. Isso pode significar que o artesão, por exemplo, distante dos grandes centros, e que muitas vezes é excluído digitalmente, corra o risco de continuar esquecido. Osvaldo Rosa passou a dar aulas online porque as escolas onde trabalhava foram fechadas (reprodução) Para tentar reverter esta situação e garantir que o dinheiro seja aplicado pelos municípios e não tenha que voltar aos cofres do governo federal, o Fórum de Dirigentes Municipais de Cultura tem auxiliado nas questões burocráticas. “Realizamos uma caravana para visitar os 27 territórios de identidades do Estado”, diz o presidente do Fórum, Davi Terra. Apesar do empenho, ele acredita que muitos não conseguirão cumprir.“Tem municípios que não têm nem diretoria de cultura”, afirma.Para o produtor cultural Rodrigo Wanderley, de Senhor do Bonfim, município com previsão para receber mais de R$ 567 mil,  a situação vai além: “Tem prefeituras que vão abrir mão do recurso porque não sabem lidar com toda a burocracia que a lei exige”. Se depender da secretaria de cultura local, este não será o caso de Senhor do Bonfim. “Temos 1,3 mil trabalhadores da área cadastrados e estamos formando uma comissão com representantes do poder público e sociedade civil, já que nosso conselho de cultura está desativado”, afirma a secretária Nalva Aguiar.

Já o Governo do Estado, a quem cabe aplicar 80% do recurso total no pagamento do auxílio emergencial, afirma que o cadastramento para os profissionais da cultura está aberto desde 14 de julho. “Já recebemos cerca de 20 mil inscrições e estamos intensificando a divulgação”, garante a secretária estadual de Cultura do estado, Arany Santana. Ainda de acordo com Arany Santana, a Secult vem realizando desde junho, reuniões virtuais com representantes da sociedade civil de coletivos de artistas, além de audiências públicas em parceria com o Conselho Estadual de Cultura para discutir a Lei e ampliar o maior número possível de trabalhadores da cultura para receber o auxílio emergencial.

Enquanto gestores varam as madrugadas para atender as exigências da legislação, os artistas seguem buscando alternativas para continuar sobrevivendo. De preferência fazendo arte. Um dos mais premiados atores da cena teatral baiana, o ator Marcelo Praddo, trocou, temporariamente, o palco pela cozinha:“Estava planejando a abertura de um restaurante no litoral sul do estado quando a pandemia chegou. Como precisava continuar pagando as contas, pensei: vou continuar fazendo arte, desta vez, culinária. Adaptei o cardápio que estava preparando e o lancei nas redes sociais. Assim nasceu o Mané Delícia, que tem funcionado bem no delivery”.Já o ator Talis Castro, migrou dos palcos para as telinhas: “Para continuar sobrevivendo de arte, solicitei o auxilio emergencial para garantir um troco e comecei a me reinventar. Tenho investido cada vez mais nestas plataformas para continuar em cena, mesmo que de forma virtual”. Este também foi o caminho que sobrou para o ator, dançarino e professor de teatro e dança, Osvaldo Rosa. O artista, que não bota fé nas políticas públicas para o setor, segue se reinventando: “As escolas onde trabalhava suspenderam os contratos e eu tive que encontrar outros formatos para oferecer aos alunos”.