Bandidos 'poderiam ter outra arma na mão, o instrumento', diz aluna do Neojiba

Jovens contam como suas vidas foram transformadas pelo Neojiba, programa que comemora dez anos dedicados à música

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  • Laura Fernades

Publicado em 25 de abril de 2017 às 06:15

- Atualizado há um ano

Nos últimos dez anos, ficou cada vez mais comum encontrar jovens estudantes de música desfilando seus instrumentos por bairros populares de Salvador como Nordeste de Amaralina, Bairro da Paz e Pirajá, além de outros municípios como Simões Filho, que já chegou a figurar nas estatísticas das cidades mais violentas do Brasil.

A estudante e flautista Talita da Luz, 18 anos, diz que sempre que aparece alguém com trompete, oboé e outros instrumentos pelo Bairro da Paz, onde mora, é motivo de orgulho. “Os vizinhos ficam admirados!”, conta, com um largo sorriso. “O Neojiba chegou lá no bairro como um presente pra comunidade”, agradece Talita, ao citar o programa do qual faz parte e que este ano completa dez anos: os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia - ou Neojiba.Priscila e Talita, que são irmãs, e Daniel começaram como alunos, hoje são monitores e tocam na OCA(Foto: Arisson Marinho)

Monitora do Núcleo de Prática Orquestral e Coral (NPO), braço do Neojiba no Bairro da Paz, criado em 2013, Talita começou como aluna de flauta e hoje dá aula para os colegas, além de tocar na Orquestra Castro Alves (OCA). Uma das formações de destaque do programa, a OCA se apresenta nesta terça (25) em um dos concertos comemorativos dos dez anos, às 19h30, no Teatro Castro Alves, juntamente com a Orquestra Juvenil da Bahia e o Coro Juvenil do Neojiba.

Por conta da experiência com o projeto, Talita garante que vai prestar o vestibular para Licenciatura em Música e diz que, assim como ela, muitos dos seus colegas sonham com isso. “O Neojiba mudou nosso bairro, porque tem o objetivo de tirar crianças e adolescentes da rua e essa é uma boa forma”, destaca Talita, que não acha seu bairro violento, apesar de lembrar de um fato marcante.

Segundo a flautista, faz dois anos que uma criança morreu na porta de casa, vítima de bala perdida. “É trágico. A criança não pôde nem escolher o que queria ser... Em vez dessas pessoas que trocaram tiro com a polícia estarem na rua, poderiam estar tocando com outra arma na mão, o instrumento”, reflete Talita, que tem uma irmã no Neojiba, Priscila da Luz, 20.

As duas descobriram o NPO Bairro da Paz através do irmão, que recebeu um panfleto no cursinho e levou para casa. Interessada em música, porque tocava violão, Priscila correu para se inscrever e acabou escolhendo o oboé.Priscila da Luz, 20, integra a Orquestra Castro Alves e faz monitoria no NPO Bairro da Paz(Foto: Arissinho Marinho/CORREIO)

“Antigamente, quando não era do Neojiba, eu ficava em casa e só ajudava a arrumar as coisas. Mas agora saímos para crescer na música”, conta Priscila, que mora com a mãe, a vendedora de acarajé Maria José da Luz, 54, e o pai, o pedreiro Januário Alves, 62.

Assim como a irmã, Priscila ganha bolsa para atuar como monitora no NPO Bairro da Paz e para tocar na OCA. “Aprendi que, assim como na música, nós podemos consertar o erro, na vida também podemos. Fui transformada pelo Neojiba, porque o programa me abriu possibilidades de crescer na música e na vida”, comemora.

AlcanceResponsável por atender mais de  4 mil crianças e jovens, de 4 a 29 anos, o Neojiba é vinculado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social. Composto por 12 núcleos em cinco municípios baianos, o programa foi criado pelo maestro e pianista Ricardo Castro, em 2007, e é inspirado no El Sistema, modelo didático-musical criado há 40 anos na Venezuela. Atualmente, dos 1,6 mil integrantes do Neojiba, 80% têm entre 4 e 17 anos, 85% se autodeclararam pardos ou negros e 71% são estudantes do ensino fundamental I e II. Já 74% das famílias possuem renda mensal de até dois salários mínimos e 45% delas recebem benefícios socioassistenciais.

‘TODO SER HUMANO PRECISA SE SENTIR NECESSÁRIO’ DIZ MAESTRO RICARDO CASTRO“O que a gente observa é que, com todas as dificuldades que esse público tem, a música faz com que possa se centrar e ter oportunidade de fazer a diferença, transpor a condição social e ir além”, destaca a assistente social do Neojiba Joana Angélica Rocha, 41. “Essa coisa de se inserir no meio social, sair da sua comunidade, é importante”, completa.Morador de Paripe, o estudante Daniel Silva, 15 anos, conta que a música muda a pessoa em vários aspectos. “No comportamento, te motiva a estudar, abre sua mente para pensar mais. É meio difícil de explicar, porque música você sente e faz”, resume o jovem que fez parte do núcleo Federação e integra a OCA.Morador de Paripe, Daniel Silva, 15, integra a Orquestra Castro Alves e faz monitoria no NPO Federação(Foto: Arisson Marinho/CORREIO)O estudante Márcio Levi Gomes, 17, é um bom exemplo de mudança. “Eu era rebelde e o Neojiba me fez  mudar muito”, garante o jovem, que integra o núcleo que funciona no Centro Educacional Santo Antônio (Cesa), em Simões Filho. Violinista e apaixonado por regência, Levi entrou no Neojiba em 2013 e hoje faz monitoria em regência, além de auxiliar as aulas de violino.“Pela forma que o Neojiba me transformou, ele pode transformar outros jovens. O Neojiba pede muita responsabilidade, muito compromisso. Tudo o que passei no programa foi me preparando para a vida: saber me colocar, saber respeitar... Ele traz um ensino técnico, mas também ensino da vida, social”, acredita.A mãe de Levi, a dona de casa Eumárcia Gomes, 47, grava todas as apresentações do filho, cheia de orgulho. Mostrou para todo mundo? “Claro! Botei no ‘zap’” gargalhou a mãe coruja. “O Neojiba, em vez de colocar uma arma na mão de um adolescente, coloca o instrumento que ele vê na tevê e admira, mas não tem acesso. Acaba realizando um sonho, como aconteceu com meu filho, que começou como aluno e hoje é instrutor”, finaliza.