Cientistas baianos mantêm monitor da covid com patrocínio de bilionário canadense

Sem apoio no país, desenvolvedores do Geocovid, uma das maiores contribuições científicas do Nordeste na pandemia, só passaram a receber por trabalho após um ano

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 30 de maio de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Imagem: Reprodução/Portal Geocovid

Quando as autoridades brasileiras colocaram os rostos na mídia para oficializar a primeira morte por covid-19 no país em março de 2020, o geólogo baiano Washington Franca-Rocha ocupava o cargo de superintendente de desenvolvimento científico na Secretaria de Ciência e Tecnologia da Bahia (Secti). Professor titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) há mais de três décadas, Franca-Rocha estava naquele momento cedido ao órgão com a missão de implementar e dinamizar iniciativas de ciência no estado, mantendo contato direto com as universidades a fim de articular projetos.

Assim que a ameaça viral foi constatada, o superintendente, um homem de cabelo grisalho, lábios finos, diastema e poucas vaidades, se pôs a mandar e-mails e mensagens para um sem número de pesquisadores. Estava encarregado de correr atrás de linhas de frente acadêmicas para armar o estado na guerra biológica que viria. Entre as iniciativas listadas, Washington apostou tanto em uma que até se envolveu diretamente. Surgiria com urgência, em apenas 15 dias, o Portal Geocovid, uma plataforma de monitoramento da pandemia que começou com dados locais e foi sendo demandada por todo o país até virar ferramenta a nível nacional, com dados dos 5.570 municípios brasileiros.

As bases para o projeto vieram da experiência com o Portagro, um painel que compila toda a produção agropastoril de cada município baiano, ideia que foi desenvolvida na Uefs e gestada com a ajuda de uma startup incubada na própria universidade, a Geodatin. Para construir aquele painel, foram produzidos mapas inteligentes que indicavam, por exemplo, características de cada região que são favoráveis a determinadas culturas, informações sobre lagos, açudes e rios do semiárido baiano com o intuito de prover dados para otimizar a produção, além de um sistema de previsões de riscos climáticos. 

Ao analisá-lo, Washington pensou que algo parecido poderia ser feito para o combate à covid-19, usando um princípio similar de visualização das informações, colocando números em mapas, mas adaptando para a epidemiologia. Aí, pronto, o primeiro passo foi marcar uma reunião com um grupo de pesquisadores de diferentes especialidades para montar a força-tarefa. 

O superintendente já sabia que, dois anos atrás, o professor José Garcia, do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia (Ufba), havia desenvolvido junto a alunos uma modelagem para estudar cenários de outros vírus, como zika e chikungunya, e que poderia ser aplicado à covid-19. E, assim, sob o tripé da computação, geografia e epidemiologia, nasceu uma das maiores contribuições científicas do Nordeste no combate à covid-19. 

A iniciativa envolve esforços intelectuais de cinco instituições públicas de ensino superior da Bahia — três estaduais e duas federais, com o intuito de contribuir para as decisões de governantes em relação à liberação de atividades e até outras estratégias como análise da necessidade de leitos. Totalmente gratuito, o portal foi lançado no fim de março do ano passado e já registrou mais de 232 mil acessos, feitos a partir de 96 países e 1.865 cidades. Durante todo 2020, a ferramenta funcionou à base do trabalho voluntário de professores e alunos. Atualmente, mais de 30 colaboradores diretos e indiretos alimentam e analisam o portal. Professores, alunos e empreendedores envolvidos no projeto (Imagem: Reprodução/Portal Geocovid) Enfim, os refrescos... A construção de toda a estrutura só foi possível graças a uma rede colaborativa. No entanto, sem recursos financeiros, é sempre mais difícil manter as atividades voluntárias porque os envolvidos têm outras atribuições de vida e trabalho. Os colaboradores, então, passaram a buscar financiamento para continuar e aperfeiçoar o projeto. Chegaram a tentar bolsas nacionais de pesquisa através da Capes e CNPq, mas não foram contemplados. O MapBiomas, uma rede do Observatório do Clima, trabalhou como parceira na captação de recursos para sustentar o portal, que hoje é financiado pela Skoll Foundation, do bilionário engenheiro e filantropo canadense Jeff Skoll. A fundação doou R$ 300 mil, ou seja, cerca de US $56,7 mil, ao Geocovid por meio do Instituto Arapyaú, instituição filantrópica. O dinheiro permitiu pagar pelo trabalho dos seis colaboradores da Geodatin, startup que antes atuava como voluntária, e ainda possibilitou reformular as funcionalidades e design do site. “Acredito que a coisa mais interessante do portal é que dá para enxergar os dados no mapa em multiescala, seja município, território de identidade, regiões, e tudo isso dinamicamente. E a outra é que vemos os dados ao longo do tempo, você consegue escolher a data e ver qual era a situação da pandemia naquele momento”, diz Diêgo Costa, geógrafo e CEO da Geodatin.

'Não deixa nada a perder' Enquanto projeções de prestigiadas universidades de língua inglesa — como o Imperial College, Johns Hopkins e Universidade de Washington — vão sendo mencionadas pela mídia brasileira, o professor Franca-Rocha ri do quanto se desconhece as iniciativas do próprio país, sobretudo as do Nordeste. 

“Nossos dados são bastante refinados, é uma pena que ainda não chegou em todo mundo, acredito que é por falta de divulgação mesmo. No começo, o que essas universidades faziam que a gente não fazia era o cálculo da taxa de transmissão do vírus e, olha, hoje a gente consegue calcular isso até a nível de municípios. Nós monitoramos a pandemia e a vacinação, outros portais só apresentam os dados do Brasil no máximo por estado”, diz ele. 

O portal da Johns Hopkins University (JHU) teve sua solução desenvolvida pela ESRI, líder mundial no mercado de geotecnologia. Tão louvável quanto lamentável, a Bahia produziu praticamente o mesmo tipo de solução sem investir um só real, usando as habilidades de colaboradores de uma startup, “e que não deixa nada a perder”, gargalha Franca-Rocha.

O CORREIO entrou em contato com a comunicação do JHU por e-mail solicitando o valor investido na montagem da plataforma, mas a universidade não respondeu aos questionamentos até esta publicação.“Os objetivos são diferentes e todos são importantes. A Hopkins pensa a nível global. Mas o problema é quando a gente só valoriza o que é de fora. Nós temos o costume de falar que compramos uma coisa importada como se ela fosse melhor do que o que é produzido no país e nem sempre é assim. Então, nós temos nossos prórios bons dados e estamos vivendo a realidade. Quem melhor para falar sobre um assunto do que quem está vivendo a realidade?”, reflete Jocimara Lobão, pesquisadora do projeto e coordenadora do Programa de Modelagem em Ciência da Terra e do Ambiente da Uefs.Os dados da plataforma já foram usados para dar base às matérias do CORREIO e de outros veículos jornalísticos como a Revista Piauí, G1, Estado de Minas, Diário de Goiás, O Povo (Ceará), O Liberal (Pará), Bahia Notícias, Metro 1 (Bahia), Brasil de Fato, Portal MSN, revista Nova Escola, Agência Sertão, Meus Sertões (Nordeste), Acorda Cidade (Bahia) e Agência de Notícias das Favelas (ANF). Ele também foi mencionado em artigo científico na revista internacional Nature, uma das mais prestigiadas do mundo, e foi usado por pesquisadores do Comitê Científico do Consórcio Nordeste. Jocimara Lobão aponta que, além dos cortes na ciência, historicamente, o envio de recursos para pesquisas sempre foi mais direcionado para a região Sudeste. Em junho do ano passado, aliás, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) denunciou que uma portaria da Capes, que reformulou o fomento aos cursos de pós-graduação no país, prejudicou ainda mais o Norte e Nordeste, que tiveram perda média de 14% nas suas bolsas, enquanto o Sudeste apresentou perda de 7%, ou seja, mesmo com os cortes, seguiu beneficiada na mudança.

O portal já abriu um grande caminho para o desfile científico da Bahia. Com uma base de dados histórica e bem detalhada, alunos de pós-graduação estão sendo envolvidos para análise das informações a fim de fazer leituras sobre o prolongamento da pandemia no país. A ideia é incentivar a produção de artigos, analisando as fases da covid-19.

Com o patrocínio internacional, novas ferramentas foram adicionadas ao portal, como o monitoramento da vacinação nos estados. Além disso, outros três bolsistas de pesquisa foram contratados para auxiliar o Prof. José Garcia no tratamento dos dados e também um bolsista de pós-doutorado para evoluir ainda mais os modelos matemáticos.

Força-tarefa nortista e nordestina No desenvolvimento da ideia, a Uefs entrou com apoio institucional hospedando o portal e fazendo divulgação científica, a rede ambiental MapBiomas auxiliou com computação em nuvem para o abrigo dos dados, prospectou recursos e contratou soluções tecnológicas e o Brasil.IO forneceu voluntários para coleta e organização dos dados em tabelas.

Localizado em Salvador, o Senai Cimatec cedeu horas de processamento em seus supercomputadores para o grande volume de dados nacionais e pesquisadores da Uefs, Uesc, Uneb, Ifba e Ufba entraram como consultores.

Filiaram-se ainda outros parceiros, nortistas e nordestinos, das empresas de base tecnológica Solved, do Pará, e InLoco, de Pernambuco. A primeira fez a organização dos dados e a segunda forneceu índices de isolamento social por estado.

No futuro, mesmo passada a pandemia, pretende-se que o Geocovid continue sendo utilizado como base para monitorar outras doenças que assolam o Brasil, como dengue, chikunkunya e malária. "O tema da pandemia continuará sendo pertinente para estudos. O volume de informações disponível precisa ser digerido e explicado. A gente viu um sucateamento da ciência, o que diminuiu as nossas capacidades de resposta, mas existe um legado de como precisamos estar pré-organizados para enfrentar novos desastres, ficaram várias lições", diz Angelo Loula, professor da Uefs e colaborador do Geocovid.COMO USAR O PAINEL PARA SABER A SITUAÇÃO DA SUA CIDADE

1. Acesse o www.portalcovid19.uefs.br 2. Ao abrir a página, será exibido já no topo o botão "Conferir agora". Clique nele. 3. O site te levará para o mapa, no qual você pode escolher qual área brasileira deseja ter dados sobre a covid-19. A plataforma tem três opções: Casos, Projeções e Vacinação. Ela inicia automaticamente na opção Casos. 4. O portal já abre mostrando dados gerais do Brasil, então, se você quiser ver um local específico, basta clicar no estado e depois na cidade, mas também é possível digitar diretamente o local através do filtro superior, que também tem a opção de ver por território de identidade, região de saúde e áreas ao redor de municípios de referência. Os dados serão exibidos à direita da tela. 4. Nos filtros superiores, você pode escolher qual é o tipo de dado que deseja ver, como por exemplo: casos por dia, casos acumulados, casos por cem mil habitantes, taxa de evolução dos casos, óbitos por dia, óbitos acumulados, óbitos por cem mil habitantes, taxa de evolução dos óbitos e o famoso R(t), que é a taxa de transmissão. Também há uma escala para determinar a data, possibilitando ver a trajetória temporal do vírus na área escolhida.  5. Para ver as as Projeções de casos e óbitos, bem como o avanço da Vacinação, é só trocar no menu superior.  6. Em relação à imunização, o portal oferece dados de vacinados com 1ª dose, vacinados com 2ª dose, porcentagem de vacinados com a 1ª dose, porcentagem de vacinados com 2ª dose.  A aba Projeções oferece dados que preveem a quantidade de casos por dia, quantos casos acumulados haverão, taxa de evolução de óbitos, óbitos por dia, óbitos acumulados, demanda de leitos de UTI e enfermaria, entre outros.