Como a violência das facções diminuiu a cultura do murro no Carnaval de Salvador

Aquela turma que 'treinava' para brigar na festa perdeu espaço na avenida

Publicado em 10 de fevereiro de 2018 às 10:58

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arquivo CORREIO

Foto: Arquivo CORREIO A minha cara de otário sempre me afastou do Carnaval. Na adolescência, e aqui já um ligeiro paradoxo, eu era atraído pela brincadeira, mas nunca chegava perto. Achava que quando pisasse o pé na avenida uma mão cerrada viria direto na queixada, porque era assim que a banda tocava. Ao menos assim pensava: pra ir pra Carnaval – na pipoca, já que não tinha grana pra desfilar de abadá – tem que saber brigar, ou ao menos se defender.

Mas onde nasceu esse medo meu? Onde nasci, na aprazível Mary Ronds (Marechal Rondon), cercanias de San Keite Califórnia (São Caetano) e meu esconderijo até 2007. Por lá cansei de ouvir histórias de conhecidos que tomavam murro na cara durante a folia, quase sempre sem saber de onde vinha. Além de inocentes feridos - com olho pocado, queixo deslocado -, conheci um bando de feras que feriam. Era a turma que “treinava pra Carnaval”, panelinha que tinha em toda academia de qualquer periferia. Eu digo tinha porque, tempos mudados, eles são quase extintos, hoje. Explicam-me os motivos um vigia, um PM e um aspirante a pastor: depois que as facções criminosas tomaram conta dos bairros pobres, ninguém mais bate em ninguém, assim, impunemente.

Abro a primeira de duas longas aspas para o vigilante Márcio, de Sussuarana, que morava numa rua onde tinha boxéu de Carnaval a dar com pau: “Avemaria! Era gente demais. Só da minha rua descia uns dez. A galera curtia ir pra rua brigar. A Sussuarana Velha ficava na Insinuante da Carlos Gomes, do lado da galera da (Sussuarana) Nova. E o pau comia. Era aquela questão de não comer reggae. Naquela época todo mundo fazia boxe. E não tinha facção (criminosa), não tinha arma. Então, tinha que saber brigar. Uns treinavam pra se defender, mas tinha uns que só gostavam de bater mesmo.”

Carlinhos Brown, ele mesmo, já foi vítima desse tipo de agressor e, lógico, reclamou."É uma coisa de otário no Carnaval. Murro pra lá e pra cá, broca. Cada broca, meu amigo, que eu tomava! Me despertou um sentimento, no Carnaval, diferente. Porque eu achei covarde. Eu tava sozinho, não tava nem com a turma. Poxa, enquanto era turma com turma, tudo bem", relata Brown, citando sua mocidade foliona, no documentário ‘Chame Gente – A História do Trio Elétrico’, de 2005.Em 2018, o vigia Márcio segue morando na mesma rua, e volto a abrir as aspas (as aspas!) para ele: “Hoje aqui não tem mais (brigões), não. Com essa questão de facção, ninguém tá querendo dar murro na cara de ninguém. Todo mundo tem medo por achar que Carnaval você dar um pau nos outros pode ficar marcado. Eu até perdi uns conhecidos assim. Teve um que deu um murro no cara, no Olodum, e depois pegaram ele e mataram na Ribeira. Teve outro que também gostava de bater em gente e morreu aqui perto do Todo Dia. E outro que deu um murro em um, uma vez, quando o cara ainda era novo; o cara cresceu, virou bicho e matou ele na Novo Horizonte”. Ok, aspa extra pelo terceiro morto: “Hoje em dia tudo é matar.”

Sem precisar admitir que o crime mudou a ‘cultura do murro na cara’ no nosso Carnaval, o soldado PM Aguiar, que trabalha nas ruas durante a folia, rubrica a tese da mudança comportamental. “Hoje não é mais como antes. Mudou muita coisa. Até uns dez anos atrás a galera se reunia, ficava de canto, e se pegasse alguém de bobeira, era pau. Mas hoje isso não é comum, não. Nem tem mais esses que treinam só pra isso", diz o também folião.Um amigo brinca: "Hoje em dia a galera só malha o dedo".O aspirante a pastor, relembrando os tempos que curtia, batia e corria, conta que havia uma ética na coisa: só se caia pra dentro de quem era maior. “Hoje eu não faço mais isso, mas na época a graça era bater nos malhados. Bater em magrelo não acrescentava muito pra mim e nem pros caras. A gente gostava de cara grande (ui!), porque a graça toda era ver o tombo. Quando a gente voltava pro bairro, ficava contando vantagem: ‘Derrubei o malhado! Caiu igual uma jaca’”, recorda.

Os covardes, citados por Brown, também tinham suas estratégias para picar a mão em alvos aleatórios. “Os caras botavam mulher, ou então um mais magrinho do grupo pra provocar um cara. Quando o cara se irritava, o magrinho corria pro lado da galera. Quando o cara vinha atrás, era almoçado”, cita o futuro líder religioso.

Em fevereiro de 2013, quando comecei a série invicta de ir pra Carnaval e não ser nocauteado – o medo da muqueta, por sinal, é pequeno –, entrevistei Reginaldo Holyfield para o Jornal da Metrópole. Na ocasião, perguntei se ele era além de boxeador, boxéu de Carnaval. Admitiu, e me saiu com mais um adendo paradoxal a estas mal traçadas:“No Carnaval sempre teve briga, aquela coisa gostosa de sair na mão um com o outro, mas na minha época não tinha peixeira. Hoje Carnaval tá muito violento". Hahaha! Gênio, Holy.Bom, se você não concorda que o aumento da violência é, estranhamente, o ponto de mutação para a redução desse tipo de violência na folia, convido você a brigar com os seguintes dados: desde 2011 não há aumento das ocorrências relacionadas a lesão corporal no Carnaval. Ano após ano, só quedas – e nem tô me referindo aos malhados do Chicletão e outros coitados de ocasião.

No ano passado, as lesões decorrentes de brigas ou ataques com armas brancas caíram em 43,8% em relação a 2016, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP). Dias atuais: nesta sexta-feira (9), a pasta divulgou o balanço do primeiro dia de folia: caíram pela metade as agressões em relação a 2017, chegando a sete casos registrados. [Edit: no segundo dia, também houve redução].

Ainda não lhe convenci, né? O jeito então é a gente sair na mão pra resolver a parada. Mas antes, por precaução, responda à pergunta que todo menino de 5ª série - com cara de otário - recorre para desestabilizar o malhado que ameaça agredi-lo na hora do recreio: ‘Você aguenta um pau na boca?’

*João Gabriel Galdea é subeditor de Minha Bahia