'Está tudo meio sinistro': invasor volta a ocupar área de proteção no Vale do Capão

Prazos para regularizar parque não foram cumpridos e moradores deixam de frequentar área por medo de represálias

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 20 de fevereiro de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo pessoal/Leitor CORREIO

Há menos de duas semanas, o sobe e desce em direção ao Parque Municipal do Boqueirão, na Chapada Diamantina, confirmou a suspeita de moradores do Vale do Capão - um dos maiores invasores de terra voltou a ocupar a área de proteção ambiental. Homens vão e voltam com materiais como cercas e, no meio do parque, apareceu uma lona, semelhante à de um circo. Por medo, pessoas deixaram de frequentar o local.

CONHEÇA O CORREIO AFRO 

Quem acompanha a disputa em torno do Parque Municipal do Boqueirão, no Vale Caeté Açú (nome oficial do Capão), distrito do município de Palmeiras, desconfia que o retorno de José Mariano Batista ocorreu há, pelo menos, um mês. O Ministério Público da Bahia (MP) comprovou, depois de vistorias técnicas, que Mariano invadiu e ocupou terrenos do Parque, criado por decreto em 2015. 

Em setembro do ano passado, o órgão chegou a pedir a prisão de Mariano por crimes ambientais no Parque como a supressão de 500 m2 de Mata Atlântica e queimada em nove hectares (9 mil m²) de terra. A prisão solicitada à Justiça não ocorreu. 

O CORREIO noticiou um dos primeiros capítulos do conflito entre a população local e o apontado como invasor de terras, que é nativo do Vale, em setembro de 2019. Desde então, os crimes ambientais continuaram, Mariano foi preso - por acusação de agressão -, e a briga judicial seguiu, com novos desdobramentos. Área do atual Parque do Boqueirão (Foto: Relatório/Reprodução) Um primo de Mariano, identificado como Afonso pelo MP, também foi denunciado criminalmente por abrir uma estrada dentro do Parque, que tem 153 hectares, o equivalente a 150 campos de futebol, em tamanho. O promotor à frente do caso à época, Augusto Carvalho, afirmou que Afonso reconheceu o erro e tentaria um acordo judicial. A reportagem não conseguiu contato com Afonso. 

A volta de José Mariano ao Boqueirão acontece num período de incertezas: a Prefeitura de Palmeiras não regularizou o Parque, como estava previsto num Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) assinado com o MP em abril de 2019, e a Promotoria de Justiça Ambiental do Alto Paraguaçu, em Lençóis está sem promotor definitivo. A vaga é ocupada por um substituto, temporariamente, e o MP afirma que isso em nada prejudica os trabalhos.

No dia 4 de fevereiro, o órgão instaurou um procedimento para acompanhar o cumprimento do TAC. Entre os moradores do Capão que pedem a regularização do Parque do Boqueirão, a percepção é diferente: ninguém sabe exatamente com quem falar e como está o andamento da disputa pelo pedaço de terra em uma das regiões baianas que vive, hoje, um apogeu na especulação imobiliária.

As construções não param, os visitantes chegam a todo momento no Capão que, nos anos 80, passou a atrair turistas interessados no completo isolamento da localidade. 

O Parque do Boqueirão se tornou um dos alvos desse boom imobiliário no Capão e a suspeita é de que a ocupação e o cerceamento das terras do Parque ocorram para venda de lotes. Uma tarefa tem 4,3 mil m² e custa, em média, R$ 50 mil. Imobiliárias dizem não fazer negócios dentro do Parque.

A responsável pela administração do Parque é a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Sustentável (Sedesp). A secretária está de licença. A reportagem procurou, desde o início da semana, um substituto para comentar a atual situação do Boqueirão com o retorno do acusado de invasão de terras. Nenhuma opção foi disponibilizada. 

A reportagem teve, no entanto, acesso à informação de que a secretaria pediu acompanhamento da Companhia Independente de Polícia de Proteção Ambiental (Cippa) para visitar o parque. 

Em áudio enviado às 14h19 da última quinta-feira (17), em um grupo de mensagens, uma representante da secretaria disse que  “ninguém vai lá no Parque com a presença de Mariano sem a presença da polícia”. A Cippa foi perguntada quando isso aconteceria, mas não retornou até o fechamento da publicação. 

Prefeitura de Palmeiras não dá respostas

A última reunião do Conselho Municipal de Turismo e Meio Ambiente e Turismo (Conturma) abordaria a novidade que já tinha corrido pelo Capão: o retorno José Mariano ao Boqueirão. Não estava na pauta oficial do dia, composta por seis tópicos, mas parecia inevitável que o assunto sequer fosse mencionado e respostas fossem, mais uma vez, cobradas.

Por falta de quórum, a reunião do conselho, formado por órgãos da prefeitura e membros da sociedade civil, não aconteceu. 

Todos os ouvidos nesta reportagem pediram anonimato para dar entrevista, por medo de represália. Um deles é A., morador do Capão.“Todas as vezes que perguntamos algo sobre o Parque é como se estivéssemos incomodando. Eles [Prefeitura] dizem que não tem orçamento, que estão em processo de licitações, eu realmente nem sei se vai ser levado a cabo esse TAC”.Logo depois, ele acrescenta uma questão: “A prefeitura reconhece esse TAC? Eu não sei”. A dúvida tem fundamento. Em uma reunião da Conturma, que tem lugar na Câmara de Vereadores para debater temas relacionados ao Turismo e ao Meio Ambiente, o ex-procurador do município, que participava como convidado no encontro daquela manhã do dia 6 de maio de 2021, disse que “não existe nem esse nem nenhum outro TAC assinado”. 

A fala caiu no vazio, mas intrigou os presentes. Afinal, o TAC está ou não reconhecido e assinado? O documento está, sim, rubricado pelo prefeito de Palmeiras, Ricardo Guimarães, segundo o documento disponibilizado pelo MP. O posicionamento desse órgão - com novo monitoramento do cumprimento dos prazos - e as reuniões com o prefeito de Palmeiras também descartam a possibilidade de o TAC inexistir. Prefeito de Palmeiras assinou TAC para regularizar Parque (Foto: TAC/MP) Como a Sedesp não respondeu às dúvidas da publicação, também tentamos contato, sem sucesso, com o prefeito de Palmeiras, Ricardo Guimarães. O município possui o maior número de parques da Chapada. São quatro: além do Boqueirão, Parque do Pai Inácio, do Riachinho e Monumento da Carrapeta.

Nos arredores do Boqueirão, o retorno de Mariano provoca mudanças na rotina. São, ao menos, 150 moradores naquela área. Toda a região da nascente do Riachinho é conhecida por Boqueirão, daí o nome dado ao Parque.  A área ocupada por Mariano fica mais ao sul dele, segundo um dos vizinhos do Parque, antes uma área devoluta, onde eram soltos animais. 

“A área que ninguém quer entrar é o Boqueirão inteiro, mas o Sul é onde ele fica, botou cercas”, diz U., outro morador. Com o retorno do acusado de crimes ambientais, “está tudo meio sinistro”, afirma ele.

Retorno traz medo e mudanças na rotina

Há 10 dias, a notícia do retorno do acusado de crimes ambientais ao Boqueirão chegou aos ouvidos de F.*, nome fictício de um nativo. A primeira reação foi de medo. Assim que soube, ele, que é nativo e guia de trilhas, passa pelo lugar em silêncio e apenas a trabalho. As filhas, ele não leva mais. F. já chegou a ficar mais de um ano sem ir ao Boqueirão e, agora que soube da volta de Mariano, não lhe agrada a ideia de circular por lá nem a trabalho. “E estou com receio até de guiar pessoas relacionadas a áreas de justiça, porque não sei se haverá danos. Sozinho evito passar, e se as pessoas me perguntam quem mora ali, não falo”, contaO parque é rota para duas trilhas da Chapada Diamantina - a que leva à cidade de Lençóis e ao Riachinho de Lençóis - e um dos melhores destinos para crianças, idosos ou pessoas com dificuldade de locomoção, pois o caminho até um dos trechos do Riachinho tem, em média, 30 metros. 

Quem não conhece a história, como turistas ou recém-chegados, continua a frequentar. “Mas vejo que mais por turista, que não conhece a história. Quem conhece vai ao Poço dos Patos e no Parque do Riachinho”, diz F.

A reportagem perguntou à Associação de Condutores de Visitantes do Vale do Capão se a rotina das trilhas tinha sido afetada pelo retorno de Mariano ao Parque. O grupo informou que, até o momento, nenhum guia que pertence ao quadro de 56 associados se manifestou inseguro em circular por lá:“A visitação ao atrativo que passa próximo à região mencionada segue normal, nenhum conflito foi relatado por nenhum sócio”.F*, o guia que passa em silêncio na área e chegou a ficar mais de um ano sem frequentar o lugar, é um dos associados. 

Outro integrante, que não representa a posição oficial do grupo, afirmou que “a associação já sofreu retaliações no passado devido ao envolvimento em questões ambientais que nunca surtiram efeito”. Como guia, ele afirma que tem receio de que a presença do invasor cause conflitos. “É o início de uma trilha linda, não é legal que o visitante tenha contato com esse tipo de situação”. 

A reportagem tenta contato com Mariano desde setembro de 2019. Naquele ano, o advogado à época prometeu intermediar uma entrevista, que seria de interesse do cliente, mas isso nunca aconteceu. Os novos representantes legais dele não foram encontrados.