Eunápolis é a cidade baiana com maior taxa de homicídios

Eunápolis, Simões Filho, Porto Seguro e Lauro de Freitas só perdem para Queimados (RJ)

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  • Mario Bitencourt

Publicado em 16 de junho de 2018 às 04:00

- Atualizado há um ano

João Lucas dos Santos Lima acordou com barulho de tiro na manhã do dia 14 de fevereiro de 2016, um domingo, no bairro Edgar Trancoso, em Eunápolis,  no extremo sul da Bahia. A cidade possui a maior taxa de homicídios dolosos no estado e está em segunda no ranking nacional, segundo dados do Atlas da Violência 2018 divulgados ontem pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O tiro veio do quarto vizinho ao dele e do irmão de 9 anos: era o pai, o comerciante Gildásio Santos Lima, 54, que por ciúmes havia matado a própria esposa e mãe dos garotos com um tiro na testa enquanto ela dormia. Foi a primeira vez que João Lucas, na época com 12 anos, se via envolvido no noticiário sobre violência na cidade de 115 mil habitantes.

O garoto de 14 anos, que desde os 10 responde pela prática de atos infracionais como tráfico de drogas, segundo a polícia, voltaria ao noticiário local dia 3 de junho de 2018, também um domingo, mas desta vez como vítima de um homicídio doloso. João Lucas, desta vez, foi morto com vários tiros na porta da casa da avó materna, no bairro Pequi, onde foi morar depois do assassinato da mãe.

Os homicídios ocorridos no ano em que a mãe de João Lucas foi morta colocaram a cidade de Eunápolis no Atlas da Violência 2018 com taxa de 124,3 mortes por cada 100 mil habitantes. Logo depois de Eunápolis, no ranking nacional, vem Simões Filho (taxa de 107,7), Porto Seguro (101,7) e Lauro de Freitas (99,2).

Um pouco depois, em nono lugar, aparece Camaçari, com taxa de 91,8. Porto Seguro e Eunápolis são cidades vizinhas (separadas por 64 km) e Simões Filho, Camaçari e Lauro de Freitas ficam na Região Metropolitana de Salvador. A cidade mais violenta do Brasil é Queimados (RJ) com taxa de 134,9. Na lista das 10 mais violentas do país cinco estão na Bahia. O estado figura ainda no top 3 com duas das três mais mortíferas.

A capital baiana também aparece de forma negativa no Atlas, que a coloca como a quinta mais violenta do Brasil, com taxa de homicídios de 61,7. A líder das capitais é Belém, com taxa de 77 assassinatos por cada 100 mil habitantes, seguida de Aracaju (76,5), Natal (70,6) e Rio Branco (63,4). Todas são capitais de estados do Norte e Nordeste do Brasil.

O Atlas tem como referência os dados do ano de 2016 do Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, e da contagem da população do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No Brasil, essa a taxa está em 30/100 mil e na Bahia é de 46,9/100 mil (7º no ranking). A Organização das Nações Unidas considera como índice tolerável a taxa de 10/100 mil. Entres os estados, a liderança é de Sergipe (64,7), seguido de Alagoas (54,2), Rio Grande do Norte (53,4), Pará (50,8), Amapá (48,7) e Pernambuco (47,3).

Jovens No estudo, homicídios como o do adolescente João Lucas e da mãe dele fazem parte de dois fatores sociais do Brasil, a violência letal contra jovens e o feminicídio, de grande preocupação por parte dos organizadores do Atlas da Violência 2018, mesmo que a morte de João Lucas venha a ser computada somente no Atlas de 2020.

Os homicídios respondem por 56,5% da causa de óbito de homens entre 15 a 19 anos. Quando considerados os jovens entre 15 e 29 anos, o estudo observa em 2016 taxa de homicídio por 100 mil habitantes de 142,7. “A juventude perdida trata-se de um problema de primeira importância no caminho do desenvolvimento social do país”, diz o documento.

No caso do feminicídio, o estudo o separa nas categorias de reprodutivo (quando envolve abortos), doméstico (como ocorreu com a mãe de João Lucas) e sexual (homicídio após estupro, por exemplo). Na Bahia, em 2016, foram 441 mulheres assassinadas, o que resultou numa taxa de 5,7 para este tipo de crime.

Explicações A violência no país, na análise de Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que também participa da elaboração do Atlas, tem causas diversas, como questões socioeconômicas, demográficas e de crime organizado.

“Políticas de segurança pública não podem ser resolvidas somente no que se refere à polícia. A gente só vai conseguir vencer quando tratar a violência como uma questão na esfera de prevenção e enfrentamento”, ele disse.

“Tem de ter coragem para refletir sobre as drogas, sobre porque a política pública quase universal para os jovens negros é a prisão, não tem medidas que gerem oportunidades de trabalho, de renda, de emprego e de educação que tire ele de envolvimento com as gangues e facções”.

Respostas O CORREIO procurou as prefeituras de Eunápolis, Porto Seguro, Lauro de Freitas e Simões Filho para comentar sobre os casos de violência e informar sobre ações sociais voltadas para os jovens em seus respectivos municípios, mas somente a de Simões Filho respondeu informando que “vem fortalecendo e dando total apoio a Polícia Militar, com a entrega de três novas bases de apoio operacional (Ilha de São João, Centro e BA-093), convênio que disponibiliza imóveis, combustível e cessão de funcionários”.

Comunicou ainda “a doação de um automóvel com a finalidade de dar apoio às atividades desenvolvidas pelo Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd).” 

Segundo a Prefeitura, “a juventude simõesfilhense passou a contar com os programas Simões Filho Esporte, que proporciona atividades físicas, gratuitas, como vôlei, futebol, futsal, dança, karatê, judô, ginastica rítmica, ballet e outros, e Portas Abertas, que permite a inserção de jovens no mercado de trabalho, com estágios em órgãos do município, com remunerações de R$ 405 - nível médio, e R$ 724 - nível superior”.

Além disso, “a Prefeitura disponibiliza palestras através do Se Liga Jovem, que proporciona debates sobre drogas e sexualidade nas escolas estaduais e municipais, Fóruns, como Roda de Conversa LGBT e cursos de qualificação profissional nas áreas do turismo e empreendedorismo.” 

Moradores das cidades mais violentas da Bahia entrevistados pelo CORREIO vivem situações divergentes. Em Eunápolis, por exemplo, a única farmácia 24horas da cidade, que funciona no Centro, foi alvo de assalto somente uma vez, há oito anos. “E ficamos com as portas abertas até as 23H, depois fechamos e fica uma portinha, com segurança armada”, informou a balconista Patrícia Almeida, 57.

Em Lauro de Freitas, o dono de supermercado Aloísio Gustavo Costa, 40, diz ter sido assaltado três vezes. “Numa delas, colocaram a arma no meu pescoço”, disse, pedindo em seguida para a reportagem não informar o bairro onde mora e nem onde funciona o estabelecimento. Ele trabalha com segurança armada, mas ainda assim sente medo.

SSP contesta forma de cálculo da taxa de homicídio A conta é simples para se chegar ao valor da taxa de homicídios de qualquer lugar, seja cidade, estado ou país: basta dividir o número total desse tipo de crime durante um certo período de tempo pelo número de habitantes, e em seguida multiplicar o resultado por 100 mil.

Porém, em termos de metodologia, ao contrário do Ipea, as secretarias estaduais de segurança pública – incluindo a da Bahia – usam as informações próprias sobre homicídios para calcular a taxa e não os dados do Ministério da Saúde, como faz o Atlas. Mas apesar de quase sempre chegarem a uma taxa abaixo do informado pelo Atlas da Violência, ainda assim ficam muito acima do que indica a Organização das Nações Unidas (ONU).

A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), por exemplo, ao contestar os dados divulgados pelo Ipea, diz que as taxas de Crimes Violentos Letais Intencionais (homicídio, latrocínio e lesão corporal dolosa) foram de 96,3 em Eunápolis, 85,4 em Simões Filho, 66,3 em Lauro de Freitas e 64,4 em Porto Seguro. E que Camaçari ficou com 78.

Segundo a SSP-BA, o estudo do Ipea “coloca nessa contabilidade os casos de legítima defesa, de criminosos mortos em confronto com a polícia e de mortes a esclarecer”. 

“Em 2017, na Bahia, foram presos aproximadamente 25 mil criminosos, com a contratação, nos últimos três anos, de 6,4 mil policiais e com a continuidade do esforço conjunto e concentrado para combater a violência no estado baiano”, diz a SSP-BA em nota.

A secretaria critica o Altas da Violência pelo fato de “descartar os dados do Ministério da Justiça, fornecidos pelas secretarias estaduais de Segurança Pública, elaborados por policiais que lidam diariamente com a violência, na prática”. “Vale a pena lembrar que por anos usaram esta base de dados, depois argumentaram não ser confiáveis, desqualificando, desta forma, os estudos produzidos por eles”, observa ainda. 

A SSP afirma ainda que a "falta de compromisso do Fórum Brasileiro de Segurança Pública" resultou na quebra do contrato de prestação de serviço com o governo da Bahia. "A empresa foi contratada pelo valor de R$ 2 milhões para fazer uma consultoria sobre segurança para o programa Pacto Pela Vida e, no meio do processo, desistiu alegando não ter condições de concluir. A entidade foi multada e penalizada com suspensão temporária de 315 dias para participar de novas licitações com instituições públicas, na Bahia", diz a SSP.

Em resposta à nota da SSP-BA, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que também participa da elaboração do Atlas da Violência, declarou que o método de elaboração do estudo “trata-se de uma padronização da Organização Mundial de Saúde (OMS) para codificação de mortalidade por causas externas em todo o mundo desde 1893”.

“Portanto, estranhamos que a Secretaria de Segurança Pública da Bahia questione agora uma metodologia consagrada pela comunidade científica internacional para mensurar o nível de violência, em particular os homicídios em todo o mundo”, comunicou.

Confira abaixo a nota pública, na íntegra, emitida pelo Fórum:Em resposta à nota divulgada hoje pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, que questiona os resultados apresentados pelo Atlas da Violência 2018 (elaborado, em parceria, pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública), gostaríamos de esclarecer: 

1) O Atlas da Violência compila informações sobre homicídios referenciados na Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Trata-se de uma padronização da Organização Mundial de Saúde (OMS) para codificação de mortalidade por causas externas em todo o mundo desde 1893. Portanto, estranhamos que a Secretaria de Segurança Pública da Bahia questione agora uma metodologia consagrada pela comunidade científica internacional para mensurar o nível de violência, em particular os homicídios, em todo o mundo.

2) O conjunto de informações da Saúde e da Segurança Pública contribui para que o Brasil tenha um diagnóstico amplo das mortes violentas intencionais, que vitimizaram só em 2016 mais de 62 mil pessoas. Não reconhecer esse dado é, no mínimo, negligenciar o problema da violência letal que enfrentamos diariamente no país e em especial no Estado da Bahia.

3) Ao contrário do que a nota tenta sugerir, não há nenhum casuísmo na opção por divulgar o Atlas da Violência, já que os dados sempre estiveram disponíveis e são utilizados por inúmeros gestores públicos, imprensa e universidades. Estes dados são um instrumento de monitoramento poderoso do fenômeno da violência, cuja nota da SSP desconsidera que é um fenômeno multicausal e não apenas uma tipificação penal, interessando a vários setores da sociedade. Os custos sociais da violência advindos, por exemplo, dos tratamentos médicos das vítimas são um ônus para o sistema de saúde e qualquer gestor da área sabe que dados são insumos básicos para a boa política pública. Afinal, violência é um conceito, e crime é outro. Trata-se de uma questão pacífica no Direito e das demais ciências sociais aplicadas e que não deveria ensejar confusão.

4) Os dados sobre ocorrências policiais, que no caso da Bahia estão sendo inclusive objeto de auditoria do Tribunal de Contas do Estado, são divulgados pelo FBSP todos os anos no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com base em pedidos de informações feitos via Lei de Acesso à Informação. A responsabilidade jurídica e técnica pelos registros é das Unidades da Federação. O FBSP orgulha-se de tomar todas as precauções metodológicas consagradas nacional e internacionalmente para evitar comparações equivocadas e mitigar possíveis desvios estatísticos no registro de tais ocorrências.

5) Recebemos com indignação a tentativa da SSP da Bahia de desqualificar o estudo ao mencionar o processo administrativo movido pelo governo baiano contra o FBSP, que inclusive está sendo objeto de recurso administrativo estranhamente ainda não analisado pelo Governo da Bahia, iniciado justamente depois que os resultados da violência no referido estado começaram a apresentar sensível piora. Lamentamos ainda pelo fato de não haver nenhuma relação entre os dois assuntos. É uma maneira covarde de tentar desviar o foco do grave problema de Segurança Pública que atinge a população baiana.

6) Ao contrário do que afirma a nota acusatória, não houve quebra de contrato do Termo de Referência firmado em 2012 para elaboração e execução do Programa Pacto Pela Vida – PPV BA. O trabalho foi realizado pelo período de um ano e, por recomendação da própria Secretaria, foi feito um pedido formal de rescisão amigável da parceria. Há um contencioso jurídico. Importante ressaltar que não houve prejuízo financeiro para o poder público, já que o valor executado corresponde à produção de relatórios, diagnósticos, mapeamentos e guias previstos em contrato e entregues pelo FBSP e aprovados pela SSP. Em consulta ao Portal da Transparência da Bahia, qualquer interessado pode observar que os recursos recebidos foram muito inferiores ao total do projeto.

7) Reconhecido nacional e internacionalmente pelo trabalho que desenvolve em busca do aperfeiçoamento das políticas de segurança pública do país, o FBSP sempre agiu com boa fé, rigor técnico, transparência e profissionalismo. A nota da SSP da Bahia demonstra que alguns gestores públicos no Brasil ainda preferem matar o mensageiro do que enfrentar seus reais problemas administrativos e de gestão. Nenhuma ação conseguirá desviar o FBSP de sua missão institucional de fomentar transparência e a prestação de contas como insumos de boas políticas públicas. Não aceitamos esse tipo de intimidação, cujo único objetivo é tentar debilitar a independência do trabalho do FBSP, cujos dados alcançam mais de 100 milhões de brasileiros. 

8) A credibilidade do FBSP é construída pela transparência que temos no trato das estatísticas e dados compilados ou produzidos por nós. E, até por isso, convidamos a SSP da Bahia a promover junto conosco uma ampla e irrestrita campanha pela auditoria dos dados de todas as Unidades da Federação, de forma franca, justa e apolítica. 

São Paulo, 15 de junho de 2018 Fórum Brasileiro de Segurança Pública