Fabrício Boliveira lança curso de cinema gratuito para jovens

Ator baiano conversa com o CORREIO sobre o curso e também sobre racismo e pandemia

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  • Roberto Midlej

Publicado em 7 de junho de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Quem vê Fabrício Boliveira com essa desenvoltura nas telas e nos palcos - e também em entrevistas como esta - não imagina que ele já foi gago. E foi a arte que o ajudou a curar a gagueira: "Descobri a cura da minha gagueira em cena. E hoje sou falastrão. Entendi cedo que a arte é um espaço de transformação e conexão", afirma o baiano de 40 anos. E é em busca desta conexão que Fabrício decidiu criar o CDF - Cinema do Futuro, um curso gratuito voltado para jovens da Bahia e do Rio de Janeiro, de 13 a 20 anos. Terão preferência negros, indígenas, trans, mulheres e adolescentes em situação vulnerável.

A ideia do curso surgiu para atender a um desejo da irmã dele, Yasmin, de 16 anos, que não encontrava algo adequado para ela. "Resolvi abrir para outros adolescentes para que tenham acesso ao cinema que eu acredito e ao trabalho que eu faço", revela o protagonista de filmes como Simonal (2019) e Faroeste Caboclo (2013).

Inquieto, mesmo na pandemia, Fabrício conseguiu dirigir dois curtas e um longa, que devem ser lançados em breve. No curta Antígona Pajubá, ele trabalha com a transformista Malayka SN e Abigail Mariano, que é mulher trans. Solidário à comunidade LGBTQIA+, Fabrício é enfático em sua defesa: "O Brasil é um dos países que mais matam pessoas LGBTQIA+ no mundo e a Bahia tem números enormes (...) A gente não pode fazer vista grossa pra isso, então a gente precisa olhar para essas questões que acontecem em nosso entorno". Neste papo com o CORREIO, Fabrício fala sobre sua carreira, a luta contra o racismo e o bem-estar que a arte pode proporcionar principalmente em tempos de pandemia. 

SERVIÇO CDF - Cinema do Futuro Inscrições: link na bio do Instagram @prascabecasprodutora, a partir desta segunda (7) Grátis Início das aulas: 30 de junho

O que é e como surgiu a ideia do Cinema do Futuro? 

É um curso de encontros, que eu tenho chamado de experiências. A ideia veio porque minha irmã, de 16 anos, Yasmin, no meio da pandemia, ela tava ociosa como todas crianças e adolescentes deste país neste momento sem outras atividades, sem poder encontrar os outros. E comecei a sugerir pra ela fazer cursos de cinema. E aí comecei a catar no Instagram, ficamos uns três meses tentando achar coisas, encontramos muitas, mas todas para quem tem mais de 18 anos. Então, nunca tinha uma coisa para ela. Então, decidi criar um curso com pessoas que admiro muito. E aí, resolvi abrir pra outros adolescentes para que tenham acesso ao cinema que eu acredito e ao trabalho que eu faço. Minha irmã estudou a vida inteira em escola particular e, como ela, muitos têm acesso a algumas coisas com facilidade. Então, ela vê filmes que eu indico pra ela. Mas aí fiquei pensando em pessoas que não têm esse acesso diretamente de alguém da família ou alguém que indique.  Com Isis Valverde, em Simonal (2019) Por que a prioridade a alguns grupos sociais nas inscrições para o curso? Terão prioridades as pessoas negras, porque a gente sabe de toda a história de diferença social em razão do racismo e a gente sabe também das facilidades que há para que as pessoas brancas estejam nesse universo do cinema. E as verbas, historicamente, chegam para essas pessoas que sempre tiveram o poder da câmera e da narrativa neste país. Então, fiquei pensando nos indígenas, que pouco vejo comandarem câmeras. E também tem pessoas trans, adolescentes de comunidades ou de baixa renda. 

Quem vai dar as aulas? São profissionais voluntários? Digo que são voluntários porque o cachê que proporciono é um cachê amigo. Não temos patrocínio, não temos apoio de ninguém. Glenda Nicácio [diretora de Café com Canela], vai falar sobre direção de arte; Everlane Moraes [documentarista], sobre direção; Ana Flávia Cavalcanti [atriz], do RJ, pra falar sobre atuação; Diana Moreira, uma figurinista daqui de Salvador; Joelma Oliveira Gonzaga, produtora de Breve Miragem do Sol [filme com atuação de Fabrício e direção de Eryk Rocha], nosso diamante baiano. As pessoas vão falar sobre suas experiências, vão desvendar o cinema.O curso vai dar uma ideia do que faz um câmera, o que faz uma figurinista, uma diretora de arte, um fotógrafo, um produtor executivo... É para trazer conhecimento técnico e experiências pessoais. Então, decidi juntar essas pessoas que fazem um cinema que considero importante.Queremos que esse legado seja transmitido, queremos fazer as pessoas se interessarem para que no futuro elas tenham esse poder da câmera e elas mesmas façam a narrativa da vida delas. A gente viu muito pouco o ponto de vista dessas pessoas no cinema brasileiro. 

Você é negro e vem de uma família de classe média, que lhe proporcionou um bom padrão de vida e permitiu, por exemplo, frequentar escola particular. Além disso, conseguiu estabilidade profissional relativamente cedo. Ainda assim, sofreu e sofre preconceitos em razão de ser negro?

É muito delicado que meu caso seja raro num país onde 56% da população é negra e eu ia para uma escola onde 98% dos estudantes eram brancos. Isso é uma violência pra mim, mesmo! Tenho consciência de que meus primos não podem estar lá. E eu não fico à vontade num lugar como esse porque não tem pessoas parecidas comigo, ou que tenham histórias de vida parecidas com a minha. Isso já é uma violência para uma criança. Há pesquisas que mostram o quanto isso é cruel para essas crianças, de não se sentirem pertencentes àquele espaço. Enquanto o país não resolver isso, vai ter pessoas morrendo, mulheres sendo assassinadas... tudo se inicia aí. Sim, sofro racismo até hoje pessoalmente. E um corpo negro é um corpo político onde as pessoas brancas já trazem seu racismo quando me veem. Passei a vida inteira andando de carro importado no Rio de Janeiro, mas sabendo que ali ao meu lado e aqui na Bahia tem crianças e jovens sendo assassinados o tempo inteiro. É uma realidade pela qual você não precisa passar na pele para entender e lutar contra ela. É entender qual é a origem do racismo e a pessoa branca deve questionar seus antepassados, que são pessoas que mataram. 

Você está dirigindo dois curtas e um longa. Sobre o que são esses filmes?

Um é o Antígona Pajubá, adaptação do clássico de Sófocles para a linguagem pajubá, que é uma linguagem do universo LGBTQIA+. E Malayka e Abigail Mariano fizeram essa adaptação. Fizemos com financiamento próprio. O curta fala sobre liberdade e esse direito de sobreviver dos corpos femininos. O outro curta é Funda, baseado em um solo de Maju Passos e a gente adaptou essa dança para um curta de 20 minutos. Neste ano, devem sair os dois curtas, que estão inscritos em festivais. E o longa é Antígona -  Não Nasci pro Ódio, Nasci pro Amor. É um plano-sequência, com uma  história baseada em Antígona, trazida para a Bahia. O filme é sobre a possibilidade de descanso para essa mulher preta que ocupa a base da pirâmide social... quero dar um descanso a esse corpo, mas não o descanso da morte. Com Isis Valverde em Faroeste Caboclo (2013) Junho é o mês do Orgulho LGBTQIA+ e você tem dado muita atenção às pessoas dessa comunidade. Por que essa preocupação com elas?

O Brasil é um dos países que mais matam pessoas LGBTQIA+ no mundo e a Bahia tem números enormes. Há pouco tempo, foi assassinado um bailarino do BTCA [Ajax Vianna] e temos muitas histórias aqui de assasinatos de pessoas LGBTQIA + na Bahia. De Moacir [Moreno], da Cia Baiana de Patifaria, na década de 90, a meu mestre Augusto Omolu. E na Bahia formou-se o GGB. Então, todas essas questões permeiam muito este estado, este país.A gente não pode fazer vista grossa pra isso, então a gente precisa olhar pra essas questões que acontecem em nosso entorno. este mês acontece e deve acontecer para que a gente comece a escutar essas pessoas. Você está realizando esses cursos gratuitos sem patrocínio nem investimento de terceiros. Além disso, está muito envolvido nas questões LGBTQIA+. Demonstra, portanto ser muito solidário com questões que envolvem outras pessoas. Essa solidariedade contribui para o seu bem-estar?

Para mim, essa solidariedade é um dever. Não me sinto bom, nem melhor por isso. Me sinto que como artista e ser humano, estou olhando pro meu entorno. E estou vendo que há um espaço dentro do meu entorno, dentro da minha função. E eu sei que essa ponte do ensino e do conhecimento é uma ponte para uma formação de dignidade, de reflexão. Qualquer pessoa pode ter uma atitude dessa, um escritor também, um médico também. A arte tem sido pra mim um lugar de transformação na vida. Descobri a cura da minha gagueira em cena. E hoje sou falastrão. Entendi cedo que a arte é um espaço de transformação e conexão. E a arte pode estar conectada a qualquer função que você tenha. Preciso pensar como usar a arte para potencializar a minha função. E a arte tem esse poder de bem-estar, de cura, de reflexão, de autoconhecimento e de escuta, que a gente precisa muito. Precisamos de escuta e silêncio, precisamos observar mais, deixar a arte falar.