'Foi preciso um prêmio para legitimar minha escrita', diz Conceição Evaristo

Escritora mineira é a grande homenageada da Flica 2018; em mesa, ela falou sobre racismo, trajetória e mais

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  • Naiana Ribeiro

Publicado em 13 de outubro de 2018 às 22:45

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ricardo Prado/Divulgação

"Ela dispensa palavras. Sua presença, suas palavras, já dizem tudo". Foi com essas palavras que Tom Correia, curador da Festa Internacional de Cachoeira (Flica), apresentou a homenageada do evento.  Aos 71 anos, Conceição Evaristo foi ovacionada pelas mais de 300 pessoas que lotaram o Claustro do Convento do Carmo, na cidade do recôncavo, para prestigiar a escritora neste sábado (13). 

Acompanhe a cobertura completa da Flica 2018

Além de que ser uma figura imponente - que diz muito sem nem precisar verbalizar - ela é dona de um dom, que gera uma obra preciosa, como ressaltou a mediadora do último bate-papo do dia, a poetisa e professora universitária Lívia Natália. "Para mim, ela é a nossa imortal da ABL (Academia Brasileira de Letras). Sua literatura é absolutamente imensurável. Não é apenas porque ela seria a primeira negra lá, mas é também por isso. São poucos os autores que conseguem desenvolver tão bem a sua escrita como ela. A literatura seria assim reparada, compensada. Para além disso, ela escreve contos, romances, prosas, poesias, tudo com a mesma mão e inspiração", resumiu.  Conceição Evaristo, a secretária de cultura da Bahia, Arany Santana e Tom Correia (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) Na ocasião, a escritora recebeu uma escultura para simbolizar essa homenagem do evento à sua obra. "Qualquer lugar que nós, mulheres negras, conquistamos não foi pelos nossos belos olhos. Coloquem essa minha fala entre aspas, mas os festivais e eventos literários que têm reconhecido a nossa escrita negra não fazem mais do que a abrigação. Porque todos nós lucramos", agradeceu a escritora."Claro que estou feliz. Sou muito vaidosa, acho que tô lacrando. Mas acho importante a gente ressaltar que negro não deve ser tratado como exceção. Esse lugar é nosso e a gente tem que reinvidicar espaços de representatividade como esse para outras pessoas". Em sua fala, ela defendeu que a sua palavra é ferramenta de resitência: "Ela pode e hoje, mais do que nunca, a gente precisa dessa palavra em construção. A palavra literária, quando bem colocada, tem o poder de convocar as pessoas. É instrumento de resistência". Mais cedo, a homenageada prestigiou a mesa de Djamila Ribeiro (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) Resistência essa que ela deve muito às suas antepassadas, como sua mãe, e ao movimento social, que a acolheu muito antes do prêmio Jabuti (o reconhecimento em larga escala só veio em 2015, após ela ganhar o mais tradicional prêmio literário do Brasil). "Foi preciso o prêmio Jabuti para legitimar minha escrita", pontuou. 

No bate-papo, Conceição falou ainda sobre sua carreira, obras e também sobre suas referências. "Olho D'Água, por exemplo, começa com a minha mãe, que fará 96 anos. Ela é meu princípio e a minha filha é a minha consequência. Ela é uma mulher que, ao mesmo tempo, conseguia guardar todas as dores do mundo, e que guarda até hoje toda esperança do mundo. A sensibilidade dela sempre foi muito silenciosa, a não ser pelas lágrimas. Eu olhava para ela e procurava captar o mundo através dela. Ela é um pouco Maria, é muito Joana... É uma verdadeira mistura de todas as mulheres que eu crio nas minhas obras. Em Submissas Mulheres, a narrativa traz o nome da minha mãe, porque eu queria mesmo confundir o leitor. Minha mãe, minhas tias estão no interior dessas personagens, as vezes de uma maneira mais implícita, hora de maneira mais explícita. Quando Maria entra no ônibus e não fala nada, a gente percebe sua solidão", exemplificou.

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A homenageada contou também que, no seu processo de escrita, nunca esquece que está trabalhando a palavra, que é uma arte. Como o músico treina horas e horas, o ator tem o trabalho com o corpo, ela trabalha com a palavra de diversas formas. "Fico trabalhando a palavra. Não basta ter um fato para contar. Você tem que saber contar o fato. Quando se trata do texto escrito, tem que saber que quais palavras vai levar para o texto escrito", falou. A autora desconfia que tenha ouvido musical, que foi conquistado pela contação de histórias dentro de casa: "Qualquer fato virava história. Eu penso na sonoridade, lembro das expressões que usamos em Belo Horizonte. Às vezes eu escrevo ouvindo música - sou apaixonada por Nina Simone. Gosto também de músicas sem letras. Para escrever, você precisa estar sensível a dor, ao mundo".

Ela, confessa, entretanto que considera escritores "verdadeiros fofoqueiros": "Adoro escutar histórias. Eu muitas vezes no meio da história ja estou elaborando o texto. É que preciso da efervecência da vida. Sempre crio a partir de um fato, a partir de uma história qu ouço e vivi. Também trabalho as memórias", confessou.

Sobre a candidatura à ABL Quando questionada sobre a sua candidatura à ABL, ela declarou o seguinte: "Lendo Casa Grande Senzala com todas as reticências que nós lemos Freire, ele fala da presença das culturas africanas no Brasil. Fala da diferença do português falado no Brasil e do que é falado em Portugal. Afirma ainda que a presença das mulheres negras dentro da Casa Grande, cuidadno da prole colonizatória, essas mulheres influiram fortemente no linguajar falado por eles. Se as mulheres escravizadas modificaram e pertubaram um dos bens mais poderosos da sociedade - a língua - a ABL é nossa. Coloco tudo isso na minha carta de candidatura, então é nossa sim. Agora não sei se eles tem a compreensão pra isso". (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) Sobre o momento que passa país, a escritora se diz esperançosa: "A ameaça está aí e nós temos que seguir adiante com a nossa esperança. Que todos nós estamos com medo, estamos. Mas não podemos perder essa perspectiva das lutas. É um risco que mos mantém. É o risco nos alimenta na própria luta pela sobrevivência. Como não quero ser uma velhinha pra baixo, eu tenho que acreditar num mundo melhor. A esperança e a literatura me salvam". 

O curador Correia destacou que a homenagem à Conceição é feita em vida, como aconteceu personalidades com Mãe Stella de Oxóssi e Ruy Espinheira Filho em anos anteriores, "por tudo que ela representa". "Por sua potência na literatura, nas palavras, pelos seux textos e por sua referência à Carolina Maria de Jesus", finalizou. Assista à mesa completa abaixo.

Conversa Em bate-papo mais cedo com o CORREIO, Conceição Evaristo afirmou que fica feliz porque a homenagem irá reverberar em outros âmbitos. “Quero que o público possa conhecer outras autoras negras. É um passo em direção à democratização. Essa homenagem é uma deferência a todas as mulheres negras que estão lutando e procurando se afirmar. E também àquelas não-alfabetizadas, que trilharam um caminho pra gente percorrer”, destacou.

Apesar da crescente representatividade de mulheres, Conceição diz que a literatura brasileira é racista. “O imaginário literário negro suaviza uma literatura racista, com expressões como ‘mãe preta’. Quando não é mãe preta, a personagem é sexualizada”, exemplificou. (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) A escritora falou ainda sobre feminismo. “Existem muitas discussões entre o feminismo negro e o branco. O que acho importante destacar é que as mulheres descendentes de africanas já estavam na rua desde o princípio”, afirmou.

Apesar de ter um grande reconhecimento hoje em dia, ela lembrou da sua longa trajetória. "É muito recente a visibilidade das mulheres negras nesses lugares. A trajetória das mulheres negras na literatura é muito dolorosa em termos de reconhecimento. Foi uma grande dificuldade me afirmar como escritora na literatura”, completou ela, destacando que os primeiros lugares que receberam seus textos, inclusive, foram os movimentos sociais: “Se hoje tenho visibilidade, não posso nunca esquecer desse caminho”.