Médicos cubanos criam laços nas cidades baianas onde atendem

Muitos estudam para o Revalida ou vão tentar edital do governo federal

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  • Thais Borges

Publicado em 21 de novembro de 2018 às 03:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação/Ministério da Saúde

O médico Pablo*, 29 anos, chegou ao Brasil em 2016. Passou por Salvador, mas foi em uma cidade na região Nordeste do Estado que decidiu se estabelecer. A pedido dele, o nome do município será preservado. Lá, faz parte do programa Mais Médicos, melhorou o português e casou com uma brasileira. Agora, em novembro de 2018, encarou um dilema: ficar no Brasil ou voltar para Cuba.

Isso porque, até o dia 12 de dezembro,  8.332 médicos cubanos devem deixar o Brasil, após o acordo de cooperação ter sido rompido na semana passada por Cuba, numa reação às declarações feitas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, sobre o programa.

Bolsonaro afirmou que, durante seu governo, somente seria permitida a participação de médicos que fizessem a validação do diploma. O presidente eleito também afirmou que mudaria a forma de pagamento dos profissionais. Eles receberiam diretamente e integralmente os salários do governo brasileiro. Hoje, o equivalente a dois terços da remuneração é entregue ao governo cubano.

Nesta terça, 20, o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União (DOU), um edital para selecionar profissionais que queiram aderir ao Programa Mais Médicos. No Total, serão oferecidas 8.517 vagas. Na Bahia são 853.

Os profissionais selecionados irão atuar em 2.824 municípios e 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, antes ocupados pelos cubanos. As inscrições começam nesta quarta-feira, 21, e seguem até o dia 25 deste mês para médicos brasileiros com CRM no Brasil ou com diploma revalidado no país. O salário líquido é de R$ 11.244,56.

Recomeço Para Pablo, a decisão de ficar no Brasil acabou sendo mais simples por conta do casamento. “Eu me casei há um ano, mais ou menos, e estou com a residência permanente, ou seja, não estou numa situação complicada. Mas, na cidade onde estou, a maioria dos colegas poderá voltar para Cuba”, conta. 

Na Bahia, onde 846 médicos cubanos atuam nos programas de saúde da família, há cidades que devem perder todos os médicos. Esse é o caso de Lafaiete Coutinho, no Centro-Sul do estado, cujos únicos médicos de toda a rede são os dois do programa.  

Pablo vai tentar o novo edital do Mais Médicos – mas na segunda fase do cronograma, que aceitará brasileiros formados no exterior e estrangeiros. As inscrições dessa etapa ocorrem em 27 de novembro. 

Na primeira fase, somente brasileiros formados no Brasil ou com diploma revalidado no país podem participar. As vagas que não forem preenchidas é que serão destinadas à segunda etapa.

“A dúvida de muitos dos meus colegas é porque a gente continua ativo no sistema. Alguns estão dizendo que não temos como nos cadastrar ainda porque nosso cadastro está ativo, mas vamos ver”, diz ele, que elogia a população da cidade onde vive hoje.

Segundo Pablo, a comunidade é ‘solidária e acolhedora’. “A maioria gosta de nosso atendimento e a gente também gosta de prestar ajuda solidária, de melhorar as condições de saúde do paciente e, assim, ajudar também o povo brasileiro”.

Antes de vir para a Bahia, Pablo sequer conhecia o Brasil. Mesmo assim, diz gostar do país hoje. Também afirma que ama Cuba, onde se formou há seis anos e chegou a fazer especializações em cirurgia e em clínica geral. Quando surgiu o convite para vir ao Brasil, diz que não pensou duas vezes.

Sempre que tem férias, volta a Cuba. Lá, estão seus pais e irmãos. “Muitas pessoas falam que Cuba é um país que a pessoa não volta, mas é um país muito lindo, onde as pessoas são muito solidárias e muito humanas”, defende.

O médico também  nega que existam problemas migratórios para cidadãos que têm residência permanente em outros países. “A gente vai e volta. O pessoal fala que Cuba é isso e aquilo, mas você vai e volta, não tem problema”.

Ele só prefere não opinar sobre a participação dos brasileiros do Mais Médicos - nem sobre a falta de médicos em cidades distantes dos grandes centros, antes do lançamento do programa. Em 2013, o CORREIO mostrou que nove municípios baianos não tinham nenhum médico. Além disso, em maio daquele ano, 100 municípios do estado tinham um índice de até 0,2 médico para cada mil pessoas (ou 1 para cada 5 mil) – o mesmo do Afeganistão.“Se os brasileiros não querem ir lá, eu respeito sua decisão. Primeiramente, coloco a possibilidade de ajudar pessoas e fazer trabalho humanitário. A gente nunca vai achar tudo perfeito. Sempre, em um posto, pode faltar alguma coisa, mas o principal é a vontade de levar saúde a quem precisa” (Pablo*, médico cubano que atua no interior da Bahia)Saídas Ao CORREIO, o Ministério da Saúde informou que é a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) quem pode responder sobre a saída dos cubanos do país. Anteontem, a assessoria da entidade, ligada à Organização Mundial de Saúde (OMS), informou que os voos que farão o translado dos profissionais vão sair de Brasília, Manaus, São Paulo e Salvador nos próximos dias com destino a Havana. À reportagem, a assessoria da Opas informou que o cronograma de saída ainda não foi definido.

No entanto, em Lajedão, no Extremo-Sul, um dos médicos já deve partir na manhã desta quarta. Lá, os moradores podem perder os dois profissionais que trabalham na atenção básica – os dois são cubanos. Além deles, no entanto, há outros dois médicos: brasileiros que trabalham na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), fora do Mais Médicos. Esses, de acordo com a coordenadora de atenção básica da cidade, Naiara Moutinho, têm um contrato diferente e só vêm à cidade uma vez por semana.

“Os dois cubanos são médicos de família. A comunidade está receosa, com esperança de que venham outros, porque existe o medo de o município ficar desassistido. Mas nós vamos agora aguardar para ver se tem brasileiros interessados. Havendo, vamos chamar. Não havendo, vamos contratar médicos que não sejam do programa”, explica.

Segundo ela, os dois cubanos não queriam ir embora. Um deles, que chegou há dois anos, é o que deve partir nesta quarta. A outra médica, que está na cidade desde o início do programa, é casada com um brasileiro. “Ela está resolvendo o que vai fazer. Se vai embora e o marido vai também ou se consegue aderir ao programa novamente, uma vez que tem vínculo com o país”. 

Segundo Naiara, Lajedão nunca chegou a ficar completamente sem médico. No entanto, antes da existência do Mais Médicos, existia mais dificuldade para contratação de profissionais. “Os médicos brasileiros tinham dificuldade com carga horária, porque alguns não queriam se adequar. Tinha médicos que cumpriam, outros faziam turnão”, explica.  

Duas médicas cubanas atuam em Salvador Salvador possui duas médicas cubanas contratadas pelo Programa Mais Médicos: Kenya Garcia Fleites, que foi desligada ontem da Unidade de Saúde da Família (USF) Boca da Mata, mas têm interesse em permanecer no Brasil; e Yosvany Sol Ramos, da USF Canabrava, que permanecerá no serviço por conta de uma liminar judicial que garante equiparação de direitos. As informações são da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). 

De acordo com o prefeito ACM Neto, a saída dos médicos cubanos não acarretará prejuízo na assistência na capital. “A partir de hoje, nós vamos começar a inaugurar um posto de saúde por semana, nos próximos dois meses, portanto, há um processo de contratação de médicos em curso”, afirmou o prefeito.  No entanto, ele demonstrou preocupação com o restante do país, onde há mais dependência do atendimento dos profissionais vindos de Cuba.“Simplesmente não se pode permitir que esses médicos cubanos deixem esses postos sem que haja uma solução de substituição, porque o mais importante para o paciente é ser assistido, é ter o cuidado do médico. No começo do programa Mais Médicos, nós recebemos muitos médicos de fora do país aqui em Salvador e lembro que havia localidade, no passado, que médicos da nossa cidade não queriam trabalhar em função da violência. Esses médicos (do programa) foram para lá e foram muito importantes” (ACM Neto)O secretário municipal de Saúde de Salvador, Luiz Galvão, afirmou que está aguardando a orientação do Ministério da Saúde, após o lançamento do edital. “É muito precoce ainda para a gente dizer como vai ser, mas o impacto para Salvador será muito pequeno uma vez que nós só temos duas médicas do programa. Elas têm a intenção de permanecer no programa e a gente vai ver como vamos fazer para aproveitá-las”, disse, citando que uma das cubanas é casada com um brasileiro.

O edital lançado pelo governo federal foi comemorado pelo presidente da União dos Municípios da Bahia (UPB), Eures Ribeiro, prefeito de Bom Jesus da Lapa. “A medida garante que a população mais longínqua não fique descoberta e assegura a atuação dos médicos nos locais mais necessitados. Esse foi o principal motivo para que eu levantasse essa pauta durante a reunião com os ministros”, afirmou, em nota.

A presidente do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), Teresa Maltez, também afirmou que o órgão concorda com a medida, por se tratar de uma situação emergencial. No entanto, ela acredita que houve falta de planejamento do governo federal.

“Já se passaram quase seis anos do programa e nenhuma medida foi adotada nesse período. Ficamos dependentes de Cuba. Para nós, está claro que o governo não tinha intenção de modificar essa situação”, diz ela, que defende a criação de um plano de carreira federal para a categoria.

Já o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Lincoln Ferreira, destacou que não há falta de médicos no país, mas condições, estratégias e gestão para todas as regiões onde há necessidade de profissionais. “Não precisamos de médicos importados, precisamos de carreira médica de Estado e de condições de trabalho nas mais diversas localidades”, disse, em nota.

A Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) não respondeu aos questionamentos por se tratar de um programa federal. 

Veja detalhes sobre o edital do Mais Médicos:Vagas - São 8.517 em todo o país

Primeira seleção -  As vagas serão apenas para médicos brasileiros e estrangeiros com registro no CRM do Brasil. As inscrições estarão abertas a partir das 8h de hoje até as 23h59 de 25 de novembro, no site: maismedicos.gov.br

Segunda seleção - Se sobrarem vagas, um segundo edital será lançado em 27 de novembro para brasileiros formados no exterior e  para médicos estrangeiros

Escolha - O médico pode escolher o município para sua atuação em uma lista consultada no site do edital. Os aprovados devem iniciar o atendimento nos municípios a partir do dia 3 de dezembro. A data limite para assumir a vaga é 7 de dezembro

Revalida - Para atuar no Mais Médicos, os profissionais sem CRM não precisam do Revalida. Mas podem fazer o exame caso queiram atuar no país fora do programa*Nome fictício utilizado a pedido do entrevistado