Mulher trans, pagodeira e camelô: conheça a vocalista da banda A Travestis

Formada em História da Arte na Uerj, Tertuliana Lustosa, 23, também vende brigadeiro no Porto da Barra

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 29 de dezembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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(Foto: Divulgação) Quando você pensa em vocalista de pagode, quais são as primeiras pessoas que vêm à mente? Quantas delas são mulheres? Quantas delas são, assumidamente, LGBTQI+? Não precisa sofrer caso tenha pensado apena em homens. De fato, o pagode baiano é um ambiente masculino e masculinizado.

Tertuliana Lustosa, 23, entrou no pagodão há pouco mais de um mês e tem a proposta de quebrar com tudo isso. Mulher transexual, ela é vocalista da banda A Travestis, que ainda nem está com sua formação fechada, mas já vem marcando presença nos paredões soteropolitanos. No YouTube, suas três músicas somadas ultrapassam as 150 mil visualizações. Nada mal para quem está começando.

A pouca idade de Tertuliana vai de encontro com a experiência de vida acumulada. Nascida em Corrente, interior do Piauí, e criada em Salvador, decidiu prestar vestibular para um lugar bem longe da família porque tinha algumas coisas para descobrir e conhecer em si mesma. Foi para o Sudeste em 2013 e lá fez Bacharelado em História da Arte pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj)."Travesti trabalhar é difícil, né, ‘more’?! Só querem se for projeto social. Se não for assim, é desemprego na certa".Com diploma na mão, retornou a Salvador e acabou entrando numa estatística cruel: segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans no Brasil recorrem à prostituição como renda por falta de oportunidades no mercado formal de trabalho. Mulher trans, Tertuliana não conseguiu escapar dessa realidade. Nem mesmo as várias indicações e exposições no Prêmio PIPA, um dos mais renomados da arte contemporânea no país, foram suficientes para garantir uma entrevista sequer.

“Travesti trabalhar é difícil, né, ‘more’?! Só querem se for projeto social. Se não for assim, é desemprego na certa”, relata. Ela não queria recorrer à prostituição na capital baiana. Enquanto estava no Rio, chegou a se prostituir na Mendes Sá, ponto forte do mercado sexual na capital fluminense. Mas em Salvador é diferente. Aqui está sua grande amiga: a mãe Márcia Lustosa, com quem mora no bairro da Graça. Como não achou outra opção, virou camelô e vende brigadeiros na praia do Porto da Barra. Foto: Divulgação Camelô Para se destacar no mar de ambulantes que tira seu sustento diário nas ruas, ônibus e praias de Salvador é preciso ter criatividade. O “Brigadeiro da Lôra” logo se tornou um sucesso. Para chamar atenção, ela faz paródias com hits do pagode baiano e cativa o público. Cantar na praia fez com que perdesse a vergonha da própria voz. 

Tertuliana conta sempre lhe disseram que a voz a ‘entregava’ como travesti. Na praia, passou a ter orgulho. E ter orgulho de si passou a ser o seu lema: “Sendo camelô, estou também quebrando um paradigma de que travesti é só prostituta, que tem preguiça de trabalhar com outra coisa.  Eu não sou preguiçosa, sou super dedicada”."Me libertei de uma série de prisões que minha família exercia sobre mim. Sempre tive medo de decepcionar minha mãe porque ela sempre me criou sozinha e com muito esforço".Foi graças ao trabalho como camelô que conseguiu gravar seu primeiro pagode e assim nasceu a banda A Travestis. Tertuliana tem conhecimento de produção de áudio graças aos estudos na Uerj. Por lá, produziu dois podcasts famosos no mundo trans: Talaricas Queer e Frozen 2000. Por lá, aprendeu a ser DJ e ficou conhecida como Tertu do Vidigal, favela onde morou. 

“No Rio, fiz tudo que não conseguiria fazer aqui. Me libertei de uma série de prisões que minha família exercia sobre mim. Sempre tive medo de decepcionar minha mãe porque ela sempre me criou sozinha e com muito esforço. Sair de perto me fez enxergar que eu só ia me resolver comigo mesma”, pondera.

Paredão Até aqui, todas as canções são no estilo proibidão. Os nomes falam por si: Senta em Cima da Prostituta, Murro na Costela do Viado e Goza em Cima do meu C.  “O proibidão foi uma estratégia pra já chegar batendo no paredão e considero que deu certo. Mas minha música é um projeto político, tudo que eu vivi e tudo que eu gosto vai aparecer nela”, explica.

Tertuliana afirma que a entrada no pagode foi menos complicada do que imaginou. Em sua conta do Instagram (@atravestis), ela tem registrados vídeo com John (O Poeta) e Bruno Magnata (La Fúria). Para o próximo ano, diz que vai escrever músicas para Nininha Problemática - outra artista LGBTQI+. “A gente ainda vive no mundo em que mulheres sempre tem que vir com a bunda, nunca com a voz e com o protagonismo. É importante dançar, mostrar a bunda, mas a mulher tem uma visão que contempla outras coisas”, diz."Minha música é um projeto político, tudo que eu vivi e tudo que eu gosto vai aparecer nela”.Estudiosa, compara a produção do pagode com a do funk carioca. Segundo Tertuliana, o funk depende mais da batida e “por isso o 150 bpm está em alta. O batidão faz a galera dançar”. 

*Com supervisão da editora Doris Miranda