Mulheres resgatam saberes culinários ancestrais em área rural de Camaçari

'Mulheres Solares' organizam a partir desta semana o 1º Festival do Dendê da Agrovila Pinhão Manso

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  • Fernanda Santana

Publicado em 22 de janeiro de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fernanda Maia/Divulgação

Ninguém sabe dizer quando aprendeu. As mães estão por trás do manusear das filhas e as netas, não demora, serão ensinadas sem perceber que o são. Foi assim com Lurdes dos Anjos, 58 anos, que, às 4h30, veste calça, blusa e bota, acomoda o facão no quadril e vai para as plantações de dendê. O sol rege o trabalho e, quando esquenta, determina a pausa. É hora de voltar para casa e se dedicar ao ofício que as mulheres mais antigas firmaram no local. 

A plantação, colheita e preparo do óleo de dendê é um desses conhecimentos passados a cada geração de mulheres. Os quintais das casas da Agrovila Pinhão Manso, onde Lurdes mora, são roças de dendê, urucum e aipim - há outras plantações, mas essas são as principais. 

Desde janeiro do ano passado, mulheres que vivem lá criaram projeto “Mulheres Solares” - o nome da iniciativa só foi dado naquele mês, mas a produção e venda de produtos já aconteciam. Elas plantam, colhem, cozinham e perpetuam saberes ancestrais e tradições culinárias. 

Leia mais: Conheça Solange Borges, chefe que criou o Cozinha de Terreiro 

A comunidade agrícola fica ao oeste de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). A cidade, mostra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, tem 64% dos moradores sem rendimento fixo ou com renda de, no máximo, um salário-mínimo mensal. Deles, 81% se auto identificam como pretos ou pardos. “Hoje que eu vejo que é o que a gente está fazendo é uma cultura dos nossos antepassados que não podemos deixar morrer”, conta Lurdes, que, criança, via e aprendia com a mãe que plantava e colhia dendê. Agora, é a filha de Lurdes que, quando está no Pinhão Manso, pila o dendê. Mas a transformação do fruto em óleo inclui mais: colher, esperar os frutos soltarem, limpar, colocar no fogo e cozinhar. “Quando eu era criança, eu não entendia muito bem o que significava”. Essa descoberta de significados continua e o dendê, depois de pronto, aquece as panelas e é vendido na comunidade ou feiras. Construção da Casa de Farinha (Foto: Fernanda Maia/Divulgação)  A feitura do azeite de dendê acontecerá em uma casa comunitária no próximo fevereiro, durante o Festival do Dendê. A Agrovila em uma casa da Farinha desde maio de 2021, construída a várias mãos e pés pelas “mulheres solares” e convidados, como vizinhos e chefes de cozinha que passaram a frequentar a área. 

Outras duas mulheres, Rosa e Ivone, são as companheiras de trabalho de Lurdes. Na verdade, as “mulheres solares” estão, cada uma em seu grupo, juntas. Hoje, há 20 delas. Quem trabalha com a terra dorme e acorda com as galinhas. 

Nos últimos dias, a rotina tem outra atribuição: deixar tudo pronto para o 1º Festival do Dendê (ingressos à venda neste link), que acontecerá nos próximos domingos, entre 18 de janeiro e 18 de março. A ideia, coordenada pela chefe de cozinha Solange Borges, é compartilhar experiências e possibilidades com o dendê, o aipim e o urucum. Em cada domingo, serão duas chefes convidadas. 

As mulheres, locais e convidadas, são as protagonistas do festival, que evidenciará a ancestralidade e as tradições que resistem em locais como o Pinhão Manso.

Cozinha baiana: as influências da ancestralidade A culinária baiana nasce de referências africanas, indígenas e portuguesas. As primeiras, no entanto, tomam as panelas. Escravizadas no Brasil, eram as africanas que, obrigadas, ditavam os sabores. Em algumas tradições africanas, a mulher é quem dá continuidade à vida - entendimento que ultrapassa visões ocidentais de maternidade.

Como nada finca no mundo se não é alimentado, o alimento é uma parte indissociável dessa continuação. Não só. É associado, ainda, a uma força de vida e símbolo dos ancestrais, explica Vilson Caetano, antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).  Agrovila Pinhão Manso resgata saberes ancestrais (Foto: Fernanda Maia/Divulgação) Comer um fruto da terra - como a mandioca e o inhame - é se alimentar de um ancestral, segundo comunidades indígenas e africanas. 

Isso não significa que as comidas preparadas são sagradas, como aquelas preparadas ritualisticamente no Candomblé em oferecimento aos orixás, mas que “a comida possui uma história”, com diz o pesquisador. 

Dos indígenas, não só ficou a herança do alimento como um antepassado, como utensílios, entre os quais a colher de barro e a peneira.“Isso [a comida como um ancestral] é muito profundo e está longe de ser entendido pelos nossos conceitos. É preciso ir além. Pensar na panela é pensar no mundo”, explica o antropólogo Vilson Caetano.Na cultura africana, por traz de cada comida há história e visões de mundo. A ancestralidade dos fazeres que as mulheres de Pinhão Manso reivindicam tem a ver com isso: um descobrimento delas próprias e da história de quem veio antes.  

Os conhecimentos femininos Foi numa linhagem de aprendizados femininos que Solange Barros, 58 anos, aprendeu a fazer o que faz. A mãe, ensinada pela a avó, fazia e ela observava. “Quando você aprende com sua mãe há tanto afeto que você nem sabe que está sendo ensinado”, diz. Criança, ela aprendeu a preparar acarajés. Depois, ela viu que a comida também era uma forma de expressar história. 

Proprietária do Culinária de Terreiro, casa-restaurante em que os clientes são convidados a cozinhar e aprender, Solange é uma liderança feminina. No dia 12 de janeiro, ela foi convidada a ir casa de um dos maiores chefes de cozinha do país, Alex Atala, no Litoral Norte, para troca de experiências gastronômicas. Ele deve visitar a Agrovila em breve. 

Lá, encontrará Solange e outras mulheres num ensinar recíproco. Foi Solange quem, desde a chegada ao Pinhão Manso, em 2014, passou a incentivar mulheres a participarem de feiras agroecológicas e a precificarem seus trabalhos. Assim elas passaram a fazer, o que mudou a economia e autoestima local.  Solange e sua Culinária de Terreiro (Foto: Fernanda Maia/Divulgação) É sexta-feira, dia movimentado para Thayze Pereira, 35 anos, que vende pratos feitos de comida baiana desde o início da pandemia. A farinha que vai no vatapá foi comprada das “mulheres solares” como ela, assim como o dendê que azeita os preparos.

Já o cheiro-verde é tirado do quintal, onde há hortaliças, aipim e crescem árvores frutíferas. Maduros, abacates, peras e mangas caem no chão a todo tempo. 

As regras locais são: não tem no quintal, compra das vizinhas, e o que não se sabe, aprende-se com as outras. Thayze, estudante de Gestão Pública numa faculdade da cidade, é ensinada a produzir farinha. “A parte mais difícil é ralar a mandioca. Tem que ter resistência, força no braço”.

Enquanto faz, ela diz que se lembra das “nossas raízes, do caminho próspero para o empoderamento feminino e que o trabalho das mãos é importante". 

O retorno das tradições nas cozinhas baianas “Por que não ‘mulheres solares’? Veio essa sugestão e elas gostaram muito”, lembra a jornalista Liege Fuentes 58 anos, sobre aquela manhã de janeiro de 2021 em que a união de mulheres ganhou nome. Elas já participavam de uma cooperativa e a produção estava crescente desde a Casa de Farinha. 

Fuentes, jornalista e chefe de cozinha, havia participado de imersões no Pinhão Manso, para aprender mais sobre a cozinha baiana. Ela tinha iniciado um estágio em um dos maiores restaurantes de Salvador, mas “não conhecia a cozinha baiana". Depois de conhecer Solange, em 2019, numa feira culinária, começou o contato com a Agrovila.“O trabalho é uma identidade para elas. Quem constrói tudo são elas e o que elas não sabem, encontram alguém que as ensinem a fazer”. A busca por tradições ancestrais culinárias da Bahia confronta um passado de esquecimento. Técnicas, ingredientes e pratos antes conhecidos das mesas baianas quase sumiram - ou passaram a ser encontrados em nichos específicos, entre eles as feiras, como a de São Joaquim. Mulheres trabalham na Casa de Farinha (Foto: Fernanda Maia/Divulgação) O “sumiço de alguns pratos tem a ver também com as mudanças dos hábitos alimentas”, explica o antropólogo Vilson Caetano.  “Essa mudança é motivada por uma série de discursos, na sua maioria que associam comidas de azeite a algo não civilizado”.As técnicas culinárias francesas, pouco a pouco e incentivadas pelos cursos de gastronomia, entram em cena. Mas os fazeres locais nunca saíram das cozinhas. Desde o final dos anos 70, por exemplo, Ana Célia comanda o Zanzibar, em Salvador. No restaurante, são servidos pratos da cozinha africana, típica na Bahia. Com a tia, que sempre preparava pratos africanos e falava em iorubá, ela deu os primeiros passos na cozinha.

O resgate da cozinha como patrimônio ancestral ganha força também em restaurantes mais recentes. Para o restaurante Dona Mariquita, no Rio Vermelho, criado em 2006, a chefe Leila Carreiro levou folhas de taioba para o preparo do efó, pixuri e atarê (pimenta da costa) e até descobriu um ingrediente que virou base de um pudim - a fava de aguidã, ingrediente ritualístico do Candomblé. “Por isso que eu digo que o restaurante é patrimonial. É uma memória coletiva, o cheiro do preparo, a escolha do quiabo, o tipo de amendoim..”, diz a chefe.Nas cozinhas de restaurantes ou nas roças de Pinhão Manso, a culinária ancestral sobrevive. Avós, mães, netas e filhas ensinam e aprendem que o alimento sempre será história.