'No Expresso, tem de puta a padre', diz Flora Gil

Empresária falou como é chefiar camarote mais seleto de Salvador, como curte o Carnaval, fala do casamento com Gil, dos negócios, da família, dos medos e morte

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  • Fernanda Santana

Publicado em 22 de fevereiro de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Flora Gil, 59 anos, acertava os últimos detalhes do camarote Expresso 2222, enquanto a reportagem tentava falar com a empresária. “Acordei com mais de 100 mensagens de gente pedindo convite”, calculou. 

O espaço, que completa 22 carnavais neste ano, sempre foi restrito a convidados. Por isso, repleto de artistas, intelectuais e autoridades. No ano da mudança do Expresso do Edifício Oceania para outro terreno, também na Avenida Oceânica, na  Barra, os convites foram reduzido de 1,2 mil para 900. O resultado é a disputa por um lugar num dos espaços mais exclusivos da folia."Vários devem estar tomando rivotril", ironizou Flora, que se tornou uma das principais anfitriãs da festa.A entrevista foi dividida em duas. Uma aconteceu na última quinta-feira (20). Outra, no apartamento que a empresária tem com o marido Gilberto Gil, no Corredor da Vitória, na manhã de sexta (21). Quando me recebeu, organizava pelo celular os 16 hóspedes, entre filhos, netos e noras, e as demandas do Expresso. Trajava um vestido azul e branco. As mensagens disparavam no celular. No Carnaval, não há descanso.

Durante os dois encontros com o CORREO, Flora conversou sobre sua vida como empresária, sua relação com a família e negócios, casamento, morte, medos e, evidentemente, sobre o Carnaval de Salvador. "Você acha que os camarotes segregam?", perguntei. "Acho isso uma caretice", respondeu. Confira a entrevista na íntegra:

Você é uma das principais anfitriãs. Como é ocupar esse posto e o processo de produção? Eu acho que é mais complicado. Começando a responder sua pergunta, primeiro, o Expresso completa, neste ano, 22 anos, e nesses 22 anos, a gente aprendeu bastante com o Carnaval da Bahia. Aprendeu algumas coisas. Algumas coisas não aprendemos, ensinamos. Nesses 22 anos, aprendi e ensinei bastante. No aprendizado, aprendi a trabalhar com os baianos. Sou paulista, e apesar de ter a cidadania baiana e soteropolitana, vinha para cá com uma expectativa de ser um trabalho com a Bahia e com os baianos como se eu estivesse trabalhando em São Paulo ou no Rio. E não.

Eu fui entender o tempo do baiano e a importância do tempo. Acima de tudo, entender que nem tudo é na hora que a gente quer. Então, isso para mim é bom, no apanhado geral. Ensinei algumas coisas também, ensinei a uma equipe grande que trabalhar em equipe é mais legal, a importância de você respeitar a opinião do outro, tentar olhar com o olho da outra pessoa, não achar que aquilo que deu certo ano passado vai dar certo esse ano. A empresária conta que aprendeu e ensinou muito nesses últimos 22 anos de Expresso (Foto: Marina Silva/CORREIO) Nesses 22 anos, você falou de mudanças, o que mudou no Carnaval? Acho que o Carnaval de Salvador tem a digital do poder público, nesse caso, o municipal. Peguei algumas gestões de 1999 para cá. Quando o gestor gosta de Carnaval e dá a devida importância a essa festa, evidentemente é refletido na festa, no resultado dela. Quando o gestor não dá a importância devida ao Carnaval, aos blocos, a tudo aquilo que precisa ser importante, o resultado não é o esperado, não é esplendedoroso. Eu acho que Neto é um prefeito que gosta do Carnaval, sabe fazer a festa acontecer e veio organizando o Carnaval.

Aproveitando que você falou em problemas, em 2018, você chegou a dizer que estava exaurida... Continua, não muda [risos].

Mas como é esse assédio? Hoje, eu acordei com cento e tantas mensagens de gente pedindo. São pessoas que me acessam porque têm meu celular. Se elas têm meu celular, me conhecem. Eu tento me fazer entender que eu não posso colocar todo mundo num lugar que não cabe. Aqui, cabem 900 pessoas, no outro eram 1,2 mil. São 300 pessoas a menos.

E quem você responde?  Ah, tanta gente, meus amigos que estão aqui na Bahia, faço questão de receber, pessoas que... é difícil... o camarote tem cinco dias, entende? As pessoas querem vir cinco dias. Tento dizer: “Olha, quero muito que você vá, escolha um dia”. A pessoa fala: “Epa, estava pensando em ir todos os dias”. Então, dou a oportunidade de ela ir um dia, dois, três, mas cinco são muitos dias, porque não tenho receita. As receitas são os patrocinadores que pagam e ficam com uma fatia importante das camisas.

Mesmo com tudo isso, por que você decide fazer o camarote? Porque eu acho que faço também pelos outros, sabia? Faço por mim, evidentemente, mas pelos outros também. Acho gostoso quando vejo todo mundo feliz lá dentro, podendo... Não é um camarote de gente rica, tem pobre também. Você convida os mais humildes, eles ficam felizes. Você convida manicure, você convida o médico, um jornalista que é de fora e está a passeio, um músico, convida tanta gente. Brinco que, no Expresso, tem de puta a padre. Já foi bispo, até.

Que tipo de gente te pede? Amigos, políticos, todos pedem, todos pedem. Não tem problema nenhum. Todo mundo que você vai ver, não sei se você virá ao camarote, são pessoas que eu convidei ou pessoas que pediram para estar. Uma coisa ou outra. A imprensa, por exemplo, me incomoda, o excesso de imprensa, porque ela não vem cobrir e vai embora. Ela vem cobrir, fica aqui, vai para a varanda fotografar os trios e toma o espaço de um convidado. Eu converso com minha assessoria: “Amores, queridos, a imprensa entra, é muito bem recebida e bem-vinda, mas não quero ser conteúdo de fofoca de jornal e de site".

Quero poder dar um espaço... eu já vi coisas constrangedoras de imprensa, porque os fotógrafos, tadinhos, usam um equipamento pesado, eles vão ali na frente, cotovelam as pessoas, não posso. Aqui, todos os jornais deveriam ter um lugar, do outro lado da rua, para subir. A varanda do camarote é um lugar privilegiado e ele não foi feito para imprensa tirar foto. Foi feito para o convidado ver os trios elétricos. 

Aí já tinha imprensa, já tinha uma marca, já tinha internet e um portal nos procurou para patrocínio porque queria colocar uns computadores para que os foliões navegassem na internet. A gente oferecia esse serviço. O Expresso sempre ofereceu serviços e nunca cobrou para isso. Essa enxurrada de gente pedindo é porque tem esse oferecimento e você não pode comprar, você quer ser escolhida para estar lá.E ao longo desses anos, porque só convidados? Nunca quis fazer bilheteria de Carnaval, não sei fazer isso. Camarote que vende, eu nunca tive, não sei como faz, o 2222 surgiu exatamente de um pedido da Bela [Bela Gil, filha], que queria ver o Carnaval. Alugamos um espaço no Oceania em 1999, pequenininho, e chamamos a família e amigos. Minha família, a família que é grande, o Caetano, os amigos do Gil. Aí já a imprensa: "Opa, tá tendo uma festinha ali".

Em 2018, você passou o bastão para Preta Gil. Na época, houve fofocas sobre o que teria acontecido, que você não estaria concordando com a forma que as coisas seriam feitas?  Ah, não, eu decidi voltar porque a Preta não quis continuar. Fui empurrada de novo. Quando estava com o pezinho para fora na piscina, ela disse: “Flora, esse camarote, tem que ter sua mãe”. Ela quer fazer show e o camarote demanda muito, ela tinha que dar conta das coisas delas e da minha. No outro ano, eu disse que era impossível, aí a Morena, minha filha de criação, e o Pedro Tourinho, um amigo, disseram que iam fazer comigo, nós três. Fizemos. Foi engraçado, mas eles falaram: “É muito sufoco”.

Voltou para mim e está novamente comigo. Aí está comigo e minha irmã Fafá. Captar financiamento é difícil. As pessoas acham que eu acordo porque tem 100 empresas querendo patrocinar. Esse camarote é diferente, não é um camarote de jovens, é um camarote mais conservador nesse sentido. Captar patrocínio não é fácil, não é fácil para ninguém, para mim também não.

E você já pensou em vender? Quando a Preta assumiu, o empresário da Preta pensou em fazer metade venda, metade convite. Eu achei a ideia boa. Mas, para os patrocinadores que estão com a gente, a ideia não foi tão bem recebida. Tipo: “Ah, não, a diferencial do Expresso é exatamente ter a vontade de ser convidado, né? Você pode ser um dos privilegiados, de estar ali, ser escolhido”. Quando você compra, não. O modelo de negócio é esse. Eu tenho que conseguir o dinheiro para fazer a festa e o que o patrocinador quer? Um quer a experiência do produto.

Você acha que os camarotes reforçam algum modelo de segregação? Acho isso uma caretice, uma bobagem. A Bahia comporta camarote, bloco com corda e pipoca. Isso não é uma província, uma cidade que deu certo, é uma capital, turística. Tem o turista que quer comprar o abadá com trio com corda. A outra pessoa, da Chapada, mais alternativa, quer ir na pipoca do Brown. Outra que vai vir do Sul, ou qualquer lugar, que quer um ar-condicionado. E tem lugar para todo mundo. Camarotes reúnem pessoas que querem lugares mais confortáveis para uma visão privilegiada da festa. Mas, se quiser descer também, pode descer.

Aí sim os camarotes são caros, têm pessoas que não podem comprar "apto" camarote, porque custa, sei lá, tantos mil reais, e elas vão ficar do lado de fora. Mas essa mesma pessoa não vai poder comprar uma roupa cara, um apartamento, entendeu? É isso. O sonho é do tamanho do bolso, você anda junto. Você pode sonhar com um apartamento de cobertura, mas você tem que ter o dinheiro. Acho que a Bahia proporciona o apartamento de cobertura ao folião pipoca. Quando ele está se divertindo e amando está ali, não tem dinheiro que pague.

Qualquer folião pipoca que esteja ali atrás do trio, se esbaldando, seja lá com quem for, é mais dinheiro que qualquer coisa, ele é capaz de recusar uma camisa até do Camarote Salvador, que muita gente quer ir, e dizer que prefere ficar atrás do trio elétrico, mesmo sem tomar whisky escocês. 'Isso não é uma província, é uma cidade que deu certo', afirma, sobre Salvador (Foto: Marina Silva/CORREIO) Este ano, a Casa do Expresso mudou. Por quê? Ali no Oceania, eu me sentia, todos anos, eu sentia que não conseguia ver todo mundo. A visão não é privilegiada. É uma visão da varanda para fora. Mas não lá dentro. Você tinha um nicho da boate, da comida, às vezes você não sabia quem estava lá. O aluguel também ali era caro, não compensava. E todo ano eu pensava em não fazer ali.

Surgiu a oportunidade desse lugar. A gente já esteve ali perto. E aí eu disse: “Meu Deus, como é que a gente vai fazer?”. Surgiu a oportunidade e alguém falou daquele terreno. Fui atrás do terreno, conversei com o prefeito e ele falou que minha ideia era boa e eu queria entender os trâmites normais de pagar as taxas, a Fafá e a Marília Gil, e conseguimos o alvará. Financeiramente, o que eu você gasta de estrutura é mais ou menos o que eu pagava de aluguel, mas, pesando, preferi investir naquele lugar, para ter um espaço com mais ventilação, uma visão mais privilegiada.

E como toda solução é um problema, a gente tem que diminuir os convidados. Tem algumas pessoas que devem estar aborrecidas comigo, porque estavam acostumadas a ir cinco dias. Também acostumei mal e a culpa é minha também. Com esse costume, agora quando falo que de cinco, ela só pode ir três, ela já fica mais ou menos de mau humor.

Mas como é para você dizer não. Tem facilidade?E já teve mau humor? Já, vários. Nossa, vários, vários devem estar tomando rivotril [risos].

Não, eu não sou bom patrão. Dizem que bom patrão é aquele se sabe demitir e dizer não. Eu não sei, até sei, mas não me sinto confortável, não tenho a frieza de dizer não assim, normal. Mas eu não estou dando não, estou dando não para tantos dias. Daqui a pouco, do jeito que sou, vou estar colocando pessoas por hora, daqui a pouco vai ser assim. [risos] E isso é maternal também, porque fico: poxa, aquela pessoa estava acostumada e não vai. Mas, eu também acostumei mal, poderia ter falado que cinco era demais, agora estou desmamando. E eu prefiro escrever do que falar. Escrevo ali e sumo. 

A gente tem acompanhado inúmeras mudanças. Mais folião pipoca. Mas os camarotes permanecem fortes. Por quê? Qual é a tendências dos camarotes a partir de agora? Eu acho que os camarotes, eu estava conversando com uma amiga, vão continuar como estão. A Bahia é festeira, para isso aqui mudar e diminuir, neguinho tem que querer muito que não dê certo, porque a Bahia dá certo com qualquer bloquinho na rua, já tem uma felicidade, um cheiro, uma cor.

Diferentemente dos outros lugares, o Carnaval de Salvador é mais orgânico. É capaz de ter lavagem até na escada do prédio da pessoa. Isso não existe em outro lugar. Sempre vai ter Carnaval. A Ivete tá fazendo Camarote agora, será que terá ano que vem? Não sei, porque nunca sei se vou fazer no outro ano.

E quando decide fazer o Expresso? Não fico pensando nisso. Eu vou tomando distância disso, como não moro aqui, e me ocupando de outras funções, os festivais, a turnê, minha família... Quando começa o meio do segundo semestre, penso: “Meu Deus, verão, Bahia, Expresso, como que vai fazer?”. Às vezes, falo que não vou fazer e minha irmã fala para fazer. Antigamente, já quis não fazer, e o Gil falava para eu fazer, que seria ótimo. Até o telefone celular. Depois, para o Gil e evidentemente para os famosos, isso se tornou um problema. Porque, a partir daí, particularmente para o Gil e imagino que para outras pessoas, está sendo muito difícil vir para um camarote cinco dias e ficar aqui durante 10 horas. Eu acho impossível.

Mas o Camarote dá lucro? Quando eu tenho uma boa captação sim. O lucro vem de uma gestão compatível com a receita e a despesa. Eu tenho os impostos para pagar, um total de quase 20% de encargos. Acho que é como se você tivesse uma casa muito grande e desse um festão. Olha, talvez o que mais me incomode hoje seja a selfie. É foto, foto, foto. Ninguém me pede foto em lugar nenhum. Às vezes me param e falam: “Ah, você é a mulher do Gil, posso tirar uma foto?”. Eu me espanto quando acontece. 

Como é se vê nesse papel? Acho uma graça, porque não sou eu. Só que no Carnaval isso é exacerbado. Flora reassumiu o Expresso 2222 este ano; no lançamento, no último dia 20, ela recebeu o artista plástico Alberto Pitta, do Cortejo Afro - bloco é o homenageado deste ano (Foto: Marina Silva/CORREIO) Neste Carnaval, Gil disse que não quer participar diretamente. Como é, para você, essa ausência?  Essa mudança vem de um massacre de fotos. Eu acho abusivo. A pessoa não consegue fazer nada, nada. Não sou famosa e não consigo dar um passo sem que peçam uma foto? Para quê? Eu acho que é muito abuso, é foto, foto, foto o tempo todo. Isso é chato, enche o saco. Você não pode fazer nada, o tempo inteiro, o Gil não consegue dar um passo sem tirar 10 fotos. Cansa. Ele é um senhor, ele não é um jovem, ele não é Léo Santana, nem o Xanddy. Ele já foi, já passou dessa idade, agora é um senhor, que quer ficar mais quieto. Eu vejo com naturalidade. A gente nasce, tem uma infância, vira adolescente, vem a velhice e aí a gente morre.

Ainda falando de Gil, na época que ele teve problemas de saúde, houve muitos boatos, inclusive da morte dele. Como foi esse momento? Alguém da imprensa me ligou e disse: 'Soubemos que o Gil morreu'. Eu falei: 'Bom, eu também soube aqui na minha redação que sua mãe morreu'. Respondi assim. O período com Gil foi sofrido, porque ele teve uma insuficiência renal grave e a gente não sabia o que ia acontecer. Uma doença é novidade. O que é hepatite? O que é o infarto? Viramos um pouco médicos quando acompanhamos um doente. Agora, olha, do jeito que [a doença] chegou, foi embora.

Ele está ótimo, com a saúde ótima, plena. Ele está tão bem que no Carnaval ele vai domingo para Fortaleza, fazer um show numa praia, e acha que, na terça, sai no Gandhy. Não tem certeza ainda.

Todo relacionamento tem fases. Vocês estão em qual? Eu acho que é a fase... Não sei, não sei responder, porque é tão gostoso conviver com o Gil. Enquanto for sendo gostoso e bom para gente, a gente vai vivendo. Quando não for, um senta e fala que não tá bom. Espero que esse dia não chegue. Mas, se chegar, chegou. Mas, pelo andar da carruagem, não acho que vá chegar.

Algo o tira do sério? Do sério, não. Do sério, “ah, me tirou do sério” não. A saúde é algo que ele leva mais a sério, mas não tira ele do sério, ele tem uma preocupação maior do que ele tinha, o que também é natural, eu também tenho mais preocupação.

E a você, o que te tira do sério? História mal contada. Alguma coisa que aconteceu, mas não foi exatamente aquilo, e aquilo fica parecendo algo que não é. Acontece algo aqui, ela sai e conta algo para você, favorecendo quem está contando, isso me tira do sério, não é assim. Mas, por agora, no camarote, nada me tira do sério, não posso ficar na minha área de cobertura da sanidade [risos]. Nada me tira do sério agora. Mas me tira do sério, também, falta de retorno de empresas. Agora é isso. Quando não é por conta de empresa, eu me recolho.

Eu ando com quem eu gosto, vou na casa de quem eu gosto, eu não preciso fazer um gênero, não preciso mais ter um gênero. Na minha casa, vem que eu chamo e chamo quem eu gosto. E não tem também muita gente que não gosto, não desejo mal a ninguém, graças a Deus. Tenho um coração muito mais amigável. Eu esqueço e vou apagando. A fumacinha vai indo embora.  'É tão gostoso conviver com o Gil', declara (Foto: Marina Silva/CORREIO) Gil fala com muita naturalidade de velhice, de morte, como você lida? Com morte? Com envelhecimento? Talvez, quando eu tiver dificuldade de qualquer coisa, de algum movimento, com alguma dificuldade, talvez venha a dar sinais. Eu ainda não tive sinais de envelhecimento. Talvez, uma coisa física aqui e ali, uma ruga, um cabelo branco. Mas, minha saúde não está afetada. Já passei pela menopausa, sou magra, tenho uma nutricionista, que é a Bela, perto de mim. A comida, a questão de saúde alimentar é importante. Na menopausa, consegui fazer as curvas todas que ela me ensinou, aquele calor, o suor, a falta da menstruação e os hormônios. Ela e amigas me ajudaram muito, então passei tranquilamente.

Vocês conversam sobre isso? Gil fez uma música linda: “Não tenho medo da morte”.

E você tem medo? Eu não pensei ainda se tenho medo. Eu tenho medo de ficar presa no elevador, tenho medo de tomar um tiro de bala perdida, isso remete à morte. Às vezes, quando o avião balança, eu tenho medo. A consequência desses medos é a morte, então eu tenho medo da morte. Só que não acordo pensando que vou morrer hoje, deixo ela chegar sozinha.

Você, inclusive, é apegada com a segurança, tem alguma coisa a ver? Eu fui assaltada e foi muito sério. O ladrão deu muitos tiros no carro, fiquei assustada, foi muito difícil.

É paradoxal estar no Carnaval?  Não sinto medo do Carnaval. Mas também os lugares que vou, do camarote para um trio... Não é obsessivo.

Sua família e seus negócio estão ligados. Você separa? Não existe, claro que não. Só estou nesse meio porque sou casada com o Gil, se não, poderia estar fazendo outra coisa. É orgânico isso, você casa com uma pessoa que é cantor, e já é da minha natureza organizar, eu gosto de trabalhar, organizar mesmo. Eu, então, comecei a organizar a vida dele. Quando eu me casei com ele, ele estava recém-separado e não tinha casa e a gente foi morar num sítio em Jacarepaguá. A gente foi assaltado no sítio e depois fomos tocar a vida, moramos em hotel, em apartamento. A gente, juntos, foi criando, ele com o talento dele, eu com o meu. Foi uma união de talentos. O talento do Gil para o que ele é hoje e o meu. Eu fui para um lado e ele para outro, que é onde ele se vê fazendo o que gosta e eu o que gosto.

Fui arrumando a questão do direito autoral, entendendo a questão do escritório, como era despesa de show, contratação, o bastidor, aquilo foi me interessando, finalmente a gente comprou apartamento, depois de uns cinco anos tive meu primeiro filho, o Bem, em 1985, a vida foi indo nesse caminho. O escritório foi crescendo, fui tentando entender a questão do direito autoral. Naquela época, eram contratos totalmente leoninos, porque as editoras editavam e viraram praticamento sócios. Muita gente perdeu muito dinheiro. Então, entrei na justiça, conheci uma advogada ótima, Enir Moreira, lá do Rio, muito boa. A gente ficou muitos anos da justiça pelo direito de não querer mais. A gente retomou as obras e aí já tinha editora, veio para dentro do escritório, contratei pessoas que pudessem me ajudar a entender ainda mais. A partir dali, tudo que o Gil criava era nosso, 100%, a administração também. 

E você está em alguma briga? Agora, estou brigando com a Warner e Universal, não por direito de obras, mas por direito de pagamento de digital. Lá atrás, os contratos antigos do Gil, que ele assinou há 55 anos, ele assinou e ia gravar um disco. Era uma mídia de disco. Depois daquele disco, o disco se transformou em fita cassete, depois CD e o royalty era o mesmo. Em 1965, ele assinou um contrato, e, ilustrativamente, digamos, eram 10% de royalty. Pulando 40 anos depois, veio a internet. É inadmissível ser o mesmo royalty para o digital, porque a gravadora não teve custo para fazer aquela mídia.

Minha realidade, o que busco, é ter no mínimo um percentual maior que o da gravadora, porque tenho direito, e acho que todos os artistas devem brigar, mesmo que demore. Pode não resolver nessa vida, mas fica para o herdeiro. É inamissível, porque o direito digital, aquela mídia de 1965 é encaminhada para as agregadoras digitais. Aí os fãs ou fazem download ou ouvem no streaming, aí existe um papo bem furado de Global Deal, uma reunião não sei aonde do planeta, e determinam que vai ser tanto. Mas eles não podem determinar sem consultar os criadores, os autores.  

Eles têm que falar: “Olha lá, pessoal, a gente tinha um contrato de parceria, de sociedade, de gravadora autor, de tantos %. Agora, com a internet, vamos rever o contrato?”. Claro, como eu, o Gil, abri precedente ter, de volta, toda a obra autoral do Gil. Ninguém tinha feito isso antes. A gente recuperou na justiça o direito autoral e abri esse precedente. Agora, há três anos, eu entrei na justiça para resolver essa questão do direito digital, certamente estou abrindo precedente. Agora, as gravadoras estão sentando com os artistas, tentando pequenos acordos. Aí ligam para mim: “Flora, estão oferecendo 35%”. Eu falo “não fecha”. É 51% para o artista para cima e para gravadora menos. Vou ficar velhinha querendo essa prestação de contas do direito digital. A gravadora não é ninguém na questão digital. Os intérpretes têm todo direito de saber a prestação de contas. Briga por direitos digitais com gravadoras (Foto: Marina Silva/CORREIO) Ao longo dos anos, você trilhou um caminho para muito além do título de “esposa de Gil. Você se considera feminista? Não me considero feminista. Sou feminista, mas não sou de bandeira. Eu acho genial ter isso, acho genial a Xota Power, acho genial ter todos esses movimentos, todos, que fortalecem o poder feminino. Mas, não tenho participação assídua.

Por quê? Não sei... bom perguntar isso. Deixa eu ver porquê. Não sei, as vezes acho um pouco exacerbado. Recebi, outro dia, uma mensagem de alguém de um movimento feminista negro, contra o cartão black, o cartão de crédito, e fiquei sem entender. Por que a palavra black? Mas black? Por quê? Acho que a gente não pode seguir pra uma coisa que não pode isso, não pode aquilo, não pode glúten, não pode lactose, não pode o black. Eu acho que é muito não pode, tem que ter um pouquinho mais de equilíbrio, responsabilidade e respeito. E respeitar tudo aquilo que é diferente de nós. Se você não é gay, respeita o gay, se você não é preto, respeita o preto, se você não é rico.

Agora, eu não carrego bandeira, mas admiro e fico junto e se tiver que ir para rua, eu vou. Marcha da Maconha? Acho que todo mundo deve ir, é que eu não sou maconheira, não fumo maconha, mas deve ter marcha da maconha. O Gil fumou maconha por 30 anos, na minha família tem várias pessoas que fumam, eu não fumo, mas a marcha é importante. Marcha gay? Vamos lá, minha comadre. Nara, primeira filha do Gil, foi casada com uma mulher por 15, 20 anos. Todos esses movimentos são, para mim, muito importantes. Fui em alguns movimentos, no Lula Livre, por exemplo, para acompanhar o Gil. Mas não sou frenética do movimento. Meu movimento é cada vez mais cuidar de mim, poder viver bem, ter amigos, me divertir, trabalhar e ter uma tranquilidade, financeira  inclusive, ao longo da vida, ver os netos crescerem, poder ajudar no possível. 

Quando você se viu nesse lugar de produtora? Na vida, vendo as coisas, os colegas. Eu elencaria o ponto de partida o direito autoral da editora, do recolhimento do direito autoral.

Tendo que organizar tantas coisa, você acha que é controladora? Sou totalmente controladora. De eu não for controladora, talvez eu não consiga fazer essa gestão de um jeito que dá certo. Eu sou controladora, mas gosto de delegar. Eu falo e deixo a pessoa tomar conta. Eu delego e deixo lá. Delego e confio. Controlo, delego e confio. As pessoas da minha equipe são de extrema confiança. Enquanto eu converso aqui, elas estão lá fazendo o camarote.

E sua relação com as mulheres da sua vida?   Minha relação é incrível com elas, todas, com todas. A gente não tem essa disputa, é incrível, mas dentro da nossa família, conversamos. Todo mundo fica junto. Se discute, fala que acha que estava errado, a gente sempre protege os nossos, sempre vou proteger todos os filhos, meus e do Gil. Aqui em casa, sempre vem a Sandra, ex-mulher, tudo muito sincero, não é para fazer fotografia e postar na rede social. Isso veio antes da rede social.

Os netos, a idade, te trouxeram o quê? Trazem felicidade, amor, alegria, trazem trabalho, eu me preocupo, se o neto está bem, os pais viajam muito, se eles têm atenção necessária. O Bento, meu neto mais velho, que os pais são separados [Ben Gil e Bárbara Ohana] , vive entre o Rio e São Paulo. Eu me preocupo com ele para entender se ele está bem. Ele vai até para o Rio agora e ele vai até sem empregada doméstica. Não é assim a piada agora? Ela está indo para Disney.

Como você se define hoje? Hoje, no dia de hoje? Ferrada, porque tenho cinco dias pela frente. Hoje.  

E na sua idade? Hoje sou feliz. Feliz por um triz, mas sou feliz.