Peça destaca subjetividade do racismo em mulheres negras: 'um dos mais brutais'

Baseada em dez depoimentos, a peça Sobretudo Amor está em cartaz no Teatro Gregório de Matos

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  • Laura Fernades

Publicado em 22 de julho de 2017 às 06:10

- Atualizado há um ano

“O racismo é um sistema que faz com que você não possa se gostar”, reflete a atriz e jornalista baiana Mônica Santana, 38 anos, enquanto explica a proposta do seu novo espetáculo, Sobretudo Amor, que está em cartaz de quinta a sábado, às 19h, no Teatro Gregório de Matos, até 5 de agosto. “Ser barrado em uma loja é explicito e agressivo, mas existem coisas sutis como você achar que não é merecedora de amor, coisas que você passa a vida inteira e não se dá conta”, continua Mônica, vencedora do Prêmio Braskem de Teatro 2016 na categoria revelação, pelo espetáculo Isto Não É Uma Mulata.

Incomodada, a atriz entrevistou dez mulheres negras sobre temas como amor, espiritualidade, ancestralidade e solidão para o projeto Cartografando Afetos: Mulheres Negras e Afetividades. O resultado da conversa deu origem a um documentário e ao texto do  espetáculo Sobretudo Amor, escrito, dirigido e protagonizado por Mônica para dar voz às diferentes reflexões, intimidades e questionamentos compartilhados.Mônica Santana apresenta a peça Sobretudo Amor, no Teatro Gregório de Matos (Foto: Priscila Fulô/Divulgação)Afetividade e memória marcam os depoimentos que não aparecem na íntegra, mas inspiram a peça que também bebe em outra fonte: os dados do último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE), de 2010. O estudo revelou que 52,52% das mulheres negras entrevistadas não viviam uma união estável.

“Essa discussão sobre a vulnerabilidade afetiva da mulher negra me preocupa muito”, destaca a escritora baiana Lívia Natália, 37, uma das entrevistadas por Mônica. “As mulheres negras não estão na solidão apenas no campo afetivo, mas estão sitematicamente sozinhas. Criando filhos, sustentando financeiramente a casa, independente do campo sexual”, denuncia.

Além de Lívia, Sobretudo Amor é inspirado em depoimentos da estudante e ativista Samira Soares; da contadora de histórias Nice Souza; da psicóloga Ariane Senna; da antropóloga Naira Gomes; da cantora Matildes Coelho; da jornalista Lorena Ifé; da blogueira Jéssica Ipólito; da publicitária Celine Ramos; e da atriz Laís Machado. A escritora Lívia Natalia foi uma dasmulheres entrevistadas por Mônica (Foto: Priscila Fulô/Divulgação)AfetoAntes de se enxergar como uma mulher bonita, o que só aconteceu depois dos 20 anos, Lívia Natália conta que se sentia feia e tentava esconder sua identidade. “Sou uma mulher baixinha e corpulenta. Chegava a andar curvada na tentativa de disfarçar o meu bumbum...”, diz a escritora. “Hoje, me enxergo como uma mulher bonita, mas a autoestima da mulher negra é vilipendiada todo o tempo”, critica.

Também entrevistada para a peça, a estudante e ativista Samira Soares, 22, integrante da Marcha do Empoderamento Crespo, conta que por muito tempo enfrentou um processo de não aceitação da sua identidade negra. “Até me reconhecer e trazer isso como aspecto político, passei por várias questões problemáticas, desde alisar o cabelo, até fazer maquiagens que afinassem meus traços...”, revela.

Samira destaca que o espetáculo Sobretudo Amor apresenta a perspectiva de uma solidão que atinge, sobretudo, o psicológico das mulheres negras, “que por muitas vezes têm esse aspecto afetivo negligenciado”. “Essa movimentação é importante para mostrar como nós também precisamos de amor. Não conseguimos nos manter fortes o tempo todo, não somos essa fortaleza que dizem. O feminismo negro tem papel importante de mostrar qual afeto a gente quer”, acredita.

Apontado na peça de Mônica como uma das armas contra o preconceito, o afeto também é ressaltado por Lívia como uma questão de política de sobrevivência. “Quando penso nessa questão do afeto penso em tudo o que afeta, o que nos toca. Passa por nosso corpo inteiro: cabelo, tamanho de peito, barriga, tom de pele... O afeto é necessário e passa por uma série de elementos que compõem esse ser e estar no mundo”, defende.Samira Soares, da Marcha do Empoderamento Crespo, também foi entrevistada (Foto: Priscila Fulô/Divulgação) SensibilidadeEnquanto gravava os depoimentos das dez convidadas, a fotógrafa e cineasta  Priscila Fulô, 27, foi transportada para o período cheio de conflitos entre sua infância e adolescência. “Sempre me sentia feia. Pensava: ‘será que vou viver esse tempo todo só?’. Cresci vendo minha mãe, minhas tias sofrendo, criando filhos sozinhas”, revela.

Irmã de Mônica, Priscila assina o documentário que resulta do projeto Cartografando Afetos e inspira a peça. O filme de 40 minutos estreia no Teatro Gregório de Matos, com exibição gratuita nos dias 29 e 5 de agosto, às 16h. Além do vídeo, o projeto também prevê, até setembro, espalhar o rosto e as falas das entrevistadas pelas ruas de Salvador, por meio de cartazes.

Por conta da própria natureza do tema, Mônica conta que imaginava fazer um trabalho mais aguerrido. Afinal, Sobretudo Amor debate o racismo ligado ao aspecto subjetivo, à dimensão “que a gente poucas vezes fala, mas que é uma das mais brutais”, diz a atriz. Acontece que Mônica acabou seguindo um caminho mais poético: “Meu desejo é que a gente reflita e se conecte em um espaço de sensibilidade”, justifica.

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Dessa forma, a artista fala do amor como potência para a luta, transformação e criatividade e destaca o autoamor, as formas de resistir, o ‘estar junto com a família’, “coisas que devem ser celebradas e que curam nossas dores”. “É mais uma celebração das nossas afetividades. Percebi que essa voz poética, esse campo lírico traz uma delicadeza, sem perder a crueza que determinadas coisas precisam para ser ditas”, completa.

Apesar da sutileza escolhida para refletir sobre a afetividade da mulher negra, Mônica acredita que a sociedade não está preparada para o debate. “Dentro da própria militância negra esse debate é espinhoso. Já vi pessoas dizendo que não é prioridade discutir isso porque os homens negros estão sendo exterminados, em um número altíssimo de violência”, conta.

Mas negar  o debate, acredita,  é negar também  outro dado: o feminicídio e a violência doméstica contras as mulheres. “Houve uma diminuição entre mulheres brancas, enquanto que entre as mulheres negras houve um avanço de 60%. A violência acontece dentro do espaço de afetividade. Então, mais do que nunca, discutir a afetividade é um ato político”, finaliza.