Penteados e cortes estilosos são sinônimo de autocuidado para jovens negros

Autoestima e a saúde mental são comprovadamente atreladas aos padrões de beleza, diz designer de turbantes Thaís Muniz

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  • Da Redação

Publicado em 16 de julho de 2018 às 05:50

- Atualizado há um ano

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Eles cresceram acostumados a manter o cabelo raspado, no máximo cortados na máquina 2. Elas, desde antes da adolescência, já alisavam os cabelos quimicamente. Ouviam que para estar arrumado, para não parecer sujo e fedido, para não pegar piolhos, era preciso alisar ou cortar bem curto. Assim, só conheceram seus fios e as inúmeras possibilidades de mantê-los de outros jeitos muitos anos depois, já no início da fase adulta.

“Quando eu consegui identificar a textura do meu cabelo, perceber como o cacho se formava, foi um processo de encontrar a minha identidade. Fui me reconhecendo enquanto um homem negro também a partir disso. Desde então, me permiti a fazer vários penteados: já deixei black, cortei só na lateral, pus tranças e agora estou com dread”, conta o produtor cultural Leandro Souza, 27 anos. O produtor cultural Leandro Souza cortou o cabelo com máquina pela última vez há dois anos, desde então já usou o cabelo de várias formas (Foto: Mila Souza/ Acervo Pessoal) “Comecei a buscar referências, inspirações e isso é muito bacana porque você começa a identificar essa beleza, que em boa parte da minha infância foi negada, não foi permitida”, afirma, ao lembrar dos meninos do bairro que pintavam o cabelo de loiro quando ele era criança. Para ele, não uma prova de rebeldia, mas de que eram donos dos próprios corpos.

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Na casa da avó, ele e os muito primos homens eram levados ao barbeiro todo mês. Bastava o cabelo crescer um pouco. A máquina era uma realidade inquestionável - até mesmo pela falta de referências, algo fundamental para quem decide mudar a forma como sempre se viu.  Cena do filme Quem Te Penteia?, lançado em Salvador esta semana; cortes “chavosos” são moda na periferia paulista (Foto: Divulgação) A independência estética veio na esteira da independência financeira. “A aceitação da minha família foi muito em respeito a essa escolha baseada no meu próprio dinheiro, a custear essa ‘afronta social’, porque por vontade deles eu seguiria atendendo a um padrão”, diz ao comentar que até hoje costuma ouvir ironias e brincadeiras para que corte o cabelo.

Autocuidado A narrativa de Leandro representa a de muitos jovens negros que têm visto nos cabelos mais uma possibilidade de enfrentar o racismo, a partir da estética e do autocuidado.

“Autoestima e a saúde mental são comprovadamente atreladas e os padrões de beleza têm sido muito mais fluidos. As pessoas têm se permitido mudar da forma que querem”, afirma a designer Thaís Muniz, 30, responsável pelo projeto Turbante-se .    Thaís Muniz levou a forçab beleza e ancestralidade dos turbantes para a Europa (Foto: Divulgação) Para a maquiadora Hávata Serena, 27 anos, a experiência de crescer sem conhecer o próprio cabelo é muito forte. Ela deixou de fazer alisamento químico em 2009, depois de uma promessa: se passasse na universidade, faria dreads. ”Tinha vontade de fazer antes, mas não tinha coragem. Quando cumpri a promessa, foi a primeira vez que me senti bonita com o meu cabelo, porque até então eu não tinha tido outra opção“, conta.

Para ela, é perceptível o sentimento de felicidade das pessoas que se arriscam a dar esse passo. “As pessoas ficam mais felizes com o cabelo natural e com a possibilidade de mudarem o cabelo quando quiserem porque isso é sinônimo de liberdade, de possibilidade de ser quem quer ser e de experimentar coisas novas”, destaca.   A maquiadora Havata Serena se sentiu bonita pela primeira vez há quase dez anos, depois de cumprir promessa e pôr dreads nos cabelos alisados (Foto: Divulgação) Tranças coloridas, cortes “chavosos”, turbantes, cabelos crespos super volumosos, twists, black power, dreads. Todas essas opções têm feito a cabeça de uma galera jovem - e cada vez mais cedo!

O dreadmaker Samir Pereira, 27,  que hoje tem cabelos longos - ora com tranças, ora com dreads e quase sempre coloridos - lembra que na infância “o máximo que fazia era uns desenhos, uns riscos, na lateral da cabeça”. 

Ele lembra que a geração tombamento, da qual diz fazer parte, foi responsável por ressignificar cortes e penteados. “A geração tombamento parte da estética para daí pensar outros processos. Há quem critique o movimento por isso, mas a estética é uma porta de entrada muito importante, porque quando você se vê parte de algo, fica muito mais fácil você falar sobre sua experiência e isso é político também”, defende. O dreadmaker Samir Pereira aprendeu ofício há alguns anos e vê aumento na procura por serviços (Foto: Reprodução/ Instagram) Assim, nos últimos quatro anos, ele viu sua clientela crescer. “Tem muita menina passando pelo processo de transição e buscando as tranças e muitos meninos têm se identificado com os dreads. A procura aumentou bastante depois do filme do Pantera Negra. Rolou essa identificação, prova de que quando a gente tem representatividade, a gente acaba imaginando aquilo para gente”, elenca, ao lembrar da importância das redes sociais digitais para essa troca de referências. “A TV continua ainda muito embranquecida, mas fora dela vemos esse movimento acontecendo”, diz.  A hairstylist carioca Maia Boitrago (foto) é responsável pelos cabelos de artistas como Lelezinha, IZA e Taís Araújo (Foto: Reprodução/ Instagram) Eleita uma das mulheres negras mais influentes do Brasil pelo site Blogueiras Negras em 2014, Thaís Muniz também  ressalta a força da internet nesse processo, que ajudou a difundir discussões de forma mais ampla. “Apropriação cultural por exemplo é um tema que  é muito mais discutido por conta de cabelo e turbante, e no Brasil essa discussão fez muitas pessoas não negras se aproximarem do assunto, e acredito que isso é uma porta de entrada para muitas questões”, afirma. 

Registro Vale destacar também o trabalho de artistas como Karol Conká, Beyoncé e Rincon Sapiência, que através de suas letras e visual, dão força à mudança. É por isso, que o que se vê nas ruas de Salvador, é parte de um processo que tem acontecido em vários outros cantos do país e do mundo. Em São Paulo, o movimento chamou atenção da fotógrafa Naná Prudêncio, que dirige ao lado de Nina Vieira o documentário Quem Te Penteia?, que será exibido hoje à noite, às 19h, no Espaço Cultural Alagados.

O filme discute ancestralidade, autoestima e economia solidária, a partir da relação que trançadeiras, salões de beleza, barbearias e moradores das quebradas estabelecem com o cabelo.

“Quando a gente estava fazendo o filme, a gente já imaginava esse lançamento em Salvador, que é a primeira cidade que a gente exibe o filme fora de São Paulo. Toda essa relação forte da periferia paulista com o cabelo tem um vínculo com o Nordeste, especialmente com a Bahia. Há muita trançadeira, barbeiro que é migrante ou que tem parentesco com baiano”, conta Naná.