Por que ainda não temos autotestes de covid-19 no Brasil? Entenda a proibição de venda

Semelhantes aos testes de antígeno das farmácias, eles são vendidos e até distribuídos gratuitamente em outros países

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  • Thais Borges

Publicado em 8 de janeiro de 2022 às 09:38

- Atualizado há um ano

. Crédito: Shutterstock

No site oficial do país, uma mensagem: se você precisa de um pacote de testes de covid-19 gratuitos, solicite agora. Um pacote com sete, um para cada dia da semana, pode ser diretamente entregue em sua casa ou pode buscá-lo na farmácia mais próxima. Talvez encontre até em uma escola, numa biblioteca ou no campus de uma universidade. 

Só há um problema: não é no Brasil. Essa é a realidade do Reino Unido, onde os autotestes de covid-19 estão disponíveis para quem precisar, como política de saúde pública. Mas não apenas lá - até em países onde é preciso pagar pelos autotestes, como Portugal, França e Estados Unidos, eles custam preços acessíveis e podem ser encontrados até em prateleiras de mercados. Enquanto isso, no Brasil, essa continua não sendo uma possibilidade mesmo no terceiro ano de pandemia. 

Há uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)  de 2015 que proíbe a autotestagem em diversos cenários, inclusive para identificar agentes que provocam doenças infecciosas de notificação compulsória, como é o caso da covid-19. Nas últimas semanas, porém, com o aumento da procura por testes de covid-19 em laboratórios e farmácias e com o “apagão” de dados do Ministério da Saúde, a ausência dos autotestes no país passou a ser ainda mais questionada por cientistas e profissionais de saúde. “É importante pensar que não se trata apenas de aprovar, mas que o governo tenha um programa para oferecer esses testes, por exemplo, para que as escolas tenham testes para os alunos caso haja alguma necessidade. As aulas vão voltar e seria possível fazer o teste e adotar medidas necessárias. Do jeito que está hoje, a única forma de controlar um caso suspeito é deixar em casa a classe inteira”, diz o médico sanitarista Claudio Maierovitch, pesquisador da Fiocruz de Brasília e ex-presidente da Anvisa. Só em Salvador, algumas drogarias chegaram a registrar 800% de aumento de busca por testes de antígeno nos primeiros dias de janeiro, em comparação aos primeiros dias de dezembro, nas farmácias buscadas pela reportagem. 

Enquanto isso, pesquisadores têm denunciado que os sistemas do Ministério da Saúde, como o e-SUS, estão instáveis desde que foram atacados por hackers em dezembro. Desde então, os estados vêm informado dificuldade para acessar os dados dos ministérios ou para enviá-los ao sistema federal. 

A escassez de testes é um problema que vem acompanhando o Brasil desde o começo da pandemia. “O ideal é que, sempre que existir alguma razão ou alguma insegurança, esse teste seja feito imediatamente porque, se a pessoa estiver com o vírus, o isolamento pode ser imediato. Da forma como está hoje, as pessoas continuam circulando sem saber se têm o vírus ou não”, alerta Maierovitch. 

Antígeno  Os autotestes funcionam como os testes de antígeno que estão disponíveis para serem feitos nas farmácias. Assim como o RT-PCR (considerado ‘padrão ouro’), o teste de antígeno usa um swab nasal (um tipo de cotonete) para coletar a secreção. No entanto, ao invés de identificar o material genético do vírus, ele detecta suas proteínas. O resultado sai em até 30 minutos.

No entanto, no Brasil, só é permitido que sejam comprados por profissionais de saúde com um CNPJ atrelado e também aplicados por profissionais de saúde. Custam, em média, de R$ 70 a R$ 120. Ainda que sejam mais baratos que os do tipo PCR (cujo preço médio é de R$ 300), podem ser inacessíveis para boa parte da população. “É um teste sequencial, mas como você fala para a pessoa fazer o teste de antígeno sete dias seguidos? Num momento de crise econômica, inflação, é difícil falar isso”, analisa o físico Vitor Mori, doutor em Engenharia Biomédica e pesquisador do Observatório Covid-19. Segundo ele, há outro gargalo: o próprio agendamento nas farmácias, no Brasil. “Se você está infeccioso e tem que sair de casa, expõe outras pessoas no transporte público, no Uber. Mesmo se não estiver infectado, pode encontrar outras pessoas infectadas na farmácia e acabar se infectando”, pondera. 

Recusa O problema é que, no Brasil, por muito tempo, acreditou-se que autotestes em geral - não apenas os de covid-19 - não eram bons. Isso, contudo, é um mito, segundo o pesquisador Claudio Maierovitch. “Muitos anos atrás, de fato, havia testes que não eram confiáveis. Hoje isso melhorou muito. Tem que ter uma análise da Anvisa quanto à qualidade dos testes. Não é qualquer coisa que deve ser oferecida, mas há muitos testes de boa qualidade”, reforça. 

Outra falácia, de acordo com ele, seria a de que alguém poderia ficar desesperado com um resultado positivo e até cometer suicídio - ao menos, era uma preocupação com os autotestes de HIV. “Havia essa preocupação na época em que os tratamentos não eram tão evoluídos e a pessoa com HIV considerava que aquilo ia estragar a vida dela. Também tinha a preocupação inversa de que caso tivesse um resultado negativo, a pessoa se despreocupasse e descuidasse das medidas de proteção”, diz. 

Mas o que cientistas observaram, ao longo das décadas, através da própria experiência com HIV é que o comportamento das pessoas não é diferente de quando o resultado de um teste é feito com um profissional de saúde ou com um autoteste. Os autotestes de HIV, inclusive, foram liberados há pouco mais de cinco anos, após iniciativa do Ministério da Saúde. 

Vigilância Há quem diga que os autotestes seriam um problema porque muitos ‘positivos’ poderiam não ser notificados à vigilância epidemiológica. No entanto, considerando que a subnotificação tem sido um problema constante no Brasil, a situação com autotestes ainda seria preferível, para os especialistas. “É melhor que ele seja identificado, ainda que não seja notificado, do que continue invisível, continue sem saber. No mínimo, isso permite à própria pessoa adotar medidas de proteção. É preferível ter diariamente um milhão de pessoas fazendo testes e ter 10 mil com resultado positivo com cinco mil tendo comunicado do que não ter ninguém fazendo teste e ninguém comunicando”, argumenta Cláudio Maierovitch. Uma alternativa que vem sendo utilizada em outros países é a existência de um aplicativo para cadastro da própria pessoa em que ela pode comunicar o resultado dos testes. Para o pesquisador Vitor Mori, do Observatório Covid-19, é possível conectar os resultados a alguma plataforma de notificação como o e-SUS ou mesmo o app Conecte SUS, que já é usado para emitir a certidão de vacinação digital. 

Pode ser um desafio, mas, na avaliação dele, não é inviável. “Mas é importante que, junto com a testagem, se explique para a população a importância de notificar e fazer da forma mais simples e intuitiva possível. Por que as pessoas na Europa conseguem fazer o autoteste e o brasileiro não conseguiria?”, questiona. 

Para Mori, há um dito complexo de inferioridade que não se justificaria nem mesmo pelos resultados que os brasileiros vêm tendo até então, a exemplo da vacinação. Os índices no país são superiores a outros.“A adesão do brasileiro à vacinação é maior que na Europa e nos EUA, assim como o uso da máscara. O brasileiro compreende a importância das medidas de saúde pública, a gente tem uma história e tradição de conter epidemias de saúde. Não vejo por que o brasileiro não conseguiria (fazer autoteste)”, diz. Ainda assim, ele pondera que os autotestes não são uma ferramenta milagrosa, nem mesmo a única solução para a pandemia. “Não deve virar uma panaceia. A gente bate nessa tecla porque é uma coisa pacificada que o mundo inteiro faz. Tem que ser uma política pública. Não adianta só liberar, tem que ser coordenado pelo Ministério da Saúde. Se não for assim, vai ser cada um por si, como praticamente tudo na pandemia foi”, acrescenta.

Farmácias Por isso, não adianta procurar os autotestes nas drogarias brasileiras. Não é incomum que farmacêuticos sejam, inclusive, questionados sobre os autotestes, como conta a farmacêutica Luana Mendes, coordenadora farmacêutica da Drogaria Globo Bahia. 

“Antes, as pessoas até queriam levar o teste da farmácia para casa, mas as legislações vigentes não permitem que a gente comercialize. Eles têm que ser aplicados em uma sala específica”, explica. 

Desde agosto de 2020, quando os testes de antígeno começaram a ser oferecidos na rede, caiu a procura pelos testes rápidos sorológicos, que eram mais comuns no começo da pandemia. Ainda que o resultado dos sorológicos - que ficaram conhecidos por tirarem um pouco de sangue do dedo - também saia em pouco tempo, eles eram indicados a partir do 10º dia de sintoma, o que fazia com que muitos infectados não fossem detectados. 

Mas, nos últimos dias, o aumento foi perceptível. De novembro para dezembro, já houve aumento de 133% na procura pelos testes de antígeno em Salvador. Em algumas lojas, chegou a 180%. Ainda assim, o maior pico foi esta semana. De 1º de janeiro a terça–feira (4), a demanda foi oito vezes maior do que nos quatro primeiros dias de dezembro e nos quatro primeiros dias de novembro. “Ainda não faltam testes, mas é uma preocupação iminente. Já estamos sinalizando aos fornecedores para conseguir fazer a reposição em tempo hábil, mas acredito que vai faltar insumos nos fabricantes”, avalia. “A pandemia também trouxe uma virada de chave para as drogarias como serviço de saúde”, completa. Política pública Através da assessoria, a Anvisa informou que, pela própria resolução, a proibição a usuários leigos “poderá ser afastada por Resolução da Diretoria Colegiada, tendo em vista políticas públicas e ações estratégicas formalmente instituídas pelo Ministério da Saúde e acordadas com a agência”. 

O órgão ressaltou que outros países que adotaram os autotestes contam com critérios sanitários direcionados a situações de eventuais riscos a serem mitigados. Esses países teriam estabelecido políticas públicas na perspectiva de combate à disseminação do coronavírus. 

Assim, a ampliação do acesso dessas ferramentas deve ser estudada também com riscos, benefícios e possíveis efeitos. “Ou seja, a situação de autotestes voltados a doenças de notificação compulsória requer a vinculação a políticas públicas com propósitos claramente definidos, associado ao atendimento e apoio clínico adequados e, conforme o caso, rastreamento de contatos para quebrar a cadeia de transmissão”, acrescenta a Anvisa. 

Segundo a agência, essa competência para definição de políticas públicas em saúde é do Ministério da Saúde. Procurada, a pasta não respondeu aos questionamentos. 

Conheça os principais testes de covid-19RT-PCR: É considerado o ‘padrão ouro’. É um teste molecular que usa um ‘swab nasal’ (um tipo de cotonete) para identificar o material genético do vírus. Custa, em média, R$ 300. O resultado leva algumas horas para sair, chegando a 48 horas. Teste de antígeno: É o que está disponível na maioria das farmácias. Também usa um swab nasal para coletar a secreção. No entanto, ao invés de identificar o material genético do vírus, ele detecta suas proteínas. Custa entre R$ 70 e R$ 120. O resultado sai em até 30 minutos. Autoteste: É um teste semelhante ao teste de antígeno, mas é feito pela própria pessoa. Não está disponível no Brasil, mas tem sido usado em outros países.  Teste sorológico: São feitos com amostra de sangue para identificar a presença de anticorpos, o que costuma ocorrer a partir do 21º dia da doença. É mais indicado para saber se alguém já teve a doença ou contato prévio com ela. O resultado negativo não significa que a pessoa não tem a doença no momento.