Relato: 'A gente precisa, sim, do Bolsa Família, mas não precisa só dele'

Leia o relato de Edvan Lessa, jornalista pela Ufba e mestre em Divulgação Científica pela Unicamp, que foi beneficiário do programa

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  • Thais Borges

Publicado em 13 de novembro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo pessoal

O Bolsa Família fez parte do cotidiano da casa do jornalista Edvan Lessa, 28 anos, por muito tempo. O pai, caminhoneiro, e a mãe, confeiteira autônoma, sempre trabalharam, mas eram oito pessoas em casa - além de Edvan, outros cinco irmãos. Quando entrou na Universidade Federal da Bahia (Ufba), percebeu que a maior parte dos colegas de trabalho e de faculdade tinham uma ideia errada de como o programa funcionava. 

“Mainha conseguiu criar todos os filhos bem e deu tudo muito certo com o planejamento dela, que investiu muito em educação para a gente. Hoje, se eu tenho consciência do meu lugar, essa consciência de ter estudado e de que o estudo era o caminho para conseguir vencer, veio dessa educação que foi, de algum modo, subsidiada pelo benefício”, diz ele, que é mestre em Divulgação Científica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atualmente trabalha em uma instituição financeira. 

Leia a reportagem principal: Medo e incerteza: como o Bolsa Família acabou sem que a maioria dos beneficiários soubesse

Leia o relato dele na íntegra para entender como o Bolsa Família era usado em sua casa:

“Eu sou o mais velho de seis irmãos. Meus pais são da zona rural de Santo Antônio de Jesus. Só cursaram o Ensino Fundamental incompleto. Meu pai é caminhoneiro, essa foi a atividade que ele exerceu profissionalmente por mais tempo ao longo da vida. Ele tem 56 anos, que completou esse ano. Minha mãe é autônoma e trabalha, desde que eu me entendo por gente, com alimentos. 

Antes ela trabalhava com aquele tempero misto caseiro e vendendo biscoitinho, sequilhos. Foi evoluindo para bolos, salgados e tortas. Hoje ela continua com isso, de maneira bem diversificada. Meus pais nunca deixaram de trabalhar, mas nunca houve planejamento familiar na minha casa no sentido de nunca houve algo organizado considerando um possível crescimento da família. 

Minha mãe queria um primeiro filho e ela diz sempre que eu vim do jeito que ela pediu a Deus. Só que, a partir de então, até pelo intervalo de tempo entre uma gravidez e outra, acho que as demais não foram planejadas. Minha mãe sempre se preveniu, mas acho que quando não há educação sexual e orientação sobre planejamento reprodutivo de maneira adequada, tudo fica sob responsabilidade da mulher. A tendência é que as coisas saiam de uma maneira diferente do que poderia ser.

O fato de minha mãe ser a única a tomar anticoncepcional, às vezes funcionava, às vezes não. Minha irmã nasceu um ano depois de mim, tem 27 anos hoje. Depois de um tempo vieram meus dois irmãos gêmeos, atualmente com 21. Antes deles, minha mãe teve uma gravidez que foi uma má formação e quase ficou estéril, mas felizmente conseguiu engravidar. Depois de alguns anos veio minha irmã que está com 13. O caçula tem 11. Se você observar, há uma escadinha. O intervalo da gravidez entre eu e o caçula é grande, mas entre a de 13 e ele não é. 

Mas ela sempre se cuidou, sempre lembro de ela pegar anticoncepcional em casa, nunca foi tabu. Conto isso tudo para falar da composição familiar, do fato de meu pai sempre ter ficado ausente para trabalhar como caminhoneiro e minha mãe sempre lutar muito para cobrir as despesas. Somos oito pessoas dentro de uma casa. Pensar na alimentação de oito pessoas não é uma tarefa fácil. Por mais que ela trabalhasse, a gente sempre teve uma renda per capita muito baixa, por isso ela sempre esteve apta a ser beneficiária de programas sociais. Nós sempre estudamos, sempre frequentamos a escola. E por isso a gente conseguiu justificar a idade do programa até as idades adequadas. Todos os meus irmãos vivenciaram isso, minha mãe recebeu de todos nós. 

Eu me lembro que em diversos momentos que minha mãe ia para a fila da lotérica sacar o benefício. Essa rotina de sacar o Bolsa Família todo mês sempre era pauta dos assuntos com minhas tias e vizinhas que recebiam. As agentes comunitárias da secretaria de assistência social da prefeitura e as pessoas que tinham informação sobre isso sempre informavam para atualizar cadastro, enviar os comprovantes de frequência escolar, da matrícula para manter o benefício em dia. E também tinha a data de receber o cartão. 

Uma vez teve um episódio marcante para mim que relatei em um post no Facebook em 2014, porque a maioria das pessoas do meu ciclo de convivência profissional e acadêmico não entendia, na prática, o Bolsa Família. Parecia que eu estava em outra bolha. Havia várias distorções e eu achei que deveria relatar minha experiência para oferecer um pensamento diferente. Relatei sobre um dia no meu período de vestibular, perto de sair vestibular para a Ufba.Minha mãe continuava trabalhando muito, mas com as dificuldades que a gente tinha em 2010, de recebimento de pagamento online, as pessoas pagavam como queriam a minha mãe. Não tinha pix, máquina acessível. Ela trabalhava com a entrada e, quando dava sorte, recebia na data certa. Quando não acontecia, atrasava e comprometia todo o orçamento. Mesmo que fosse tudo em dia, sempre faltava algo e o Bolsa Família sempre fazia diferença. E aí eu fui para a lotérica uma vez, com a identidade dela. Só que nesse dia houve uma pane na agência da Caixa e na maioria das lotéricas. Me lembro de ter passado um dia inteiro na fila da lotérica junto com algumas pessoas sem comer, sem almoçar, para sacar o dinheiro que era o único que a gente tinha naquele período. Eu precisava voltar para casa com aquele dinheiro. Foi estressante vivenciar aquilo, passar por aquela situação que, por mais que parecesse algo positivo que a gente tinha algo a receber, parecia ao mesmo tempo humilhante.

Ali, eu tive noção que as coisas, mesmo quando são de caráter assistencialista, não deixam de custar menos para a gente, tanto em relação aos impostos que a gente arrecada em outros momentos como também na condição que muitas vezes é humilhante. As pessoas que organizam isso não necessariamente facilitam as coisas, em muitos momentos foram dificuldades para atualizar cadastro, para correr atrás de cadastrar meus irmãos. 

Mas o que posso dizer é que esse benefício sempre fez diferença. A gente sempre foi dependente dele, mas não exclusivamente dependente porque nunca foi uma fortuna, mas sempre foi necessário. Sempre ajudou a organizar as coisas para que hoje eu tivesse me tornado a pessoa que me tornei, com ensino fundamental completo, ensino médio completo, coisas que meus pais não tiveram acesso.E, apesar de depender do Bolsa Família, meus pais nunca deixaram de trabalhar. Minha mãe nunca pensou em ter filhos para ter o Bolsa Família. Essa nunca foi a realidade que orientou as pessoas que eu conheço.  Anos mais tarde, eu pude entender que esse benefício tinha o propósito de curar um tipo de pobreza mais básica. A pobreza que eu tinha não era miséria, mas era um tipo de pobreza. Quando eu fui para a Ufba, me lembro que minha família ainda recebia e um dos comprovantes do Bolsa Família foi apresentado para providenciar, por exemplo, a minha solicitação de auxílio moradia na Ufba. Cursei minha graduação com auxílio moradia, no início de R$ 300, depois foi para R$ 400 para pagar o aluguel. Isso sempre teve importância, significado, sempre foi simbólico para a gente. 

Mas também sempre foi muito cotidiano, não existe um aspecto grandioso nisso. O Bolsa Família é parte da rotina de muitas pessoas e conheço gente que, de fato, não conseguiu avançar como a minha família conseguiu, digamos assim. Então, mesmo entre os beneficiários, há uma assimetria enorme. Por isso que falo do tipo de pobreza.

Essa ideia de ter filhos pelo Bolsa Família, na minha visão, é uma concepção bem sexista porque relega a mulher a um papel de ter que controlar sozinha isso, como se fosse uma mercadoria e houvesse essa contrapartida. Não cobre as despesas de um filho.

Eu não sei dizer o quanto impactou, mas impactou, porque sempre foi uma renda que fez diferença. Houve momento que era a única renda certa que a gente tinha. Meu pai estava viajando, mas nunca cumpriu muito à risca esse papel veladamente dado aos homens de ‘provedor’, então não necessariamente ele tinha sempre grana para comprar as coisas em casa. Ele trabalhava para uma empresa de embalagens, mas era muito precário. Até hoje ele tem pendências com empresas que trabalhou que não pagaram os tempos dele.Não foi fácil, mas deu tudo certo. Mainha conseguiu criar todos os filhos bem e deu tudo muito certo com o planejamento dela, que investiu muito em educação para a gente. Hoje, se eu tenho consciência do meu lugar, essa consciência de ter estudado e de que o estudo era o caminho para conseguir vencer, veio dessa educação que foi, de algum modo, subsidiada pelo benefício. Pude debater sobre isso no mestrado anos depois, numa disciplina de políticas públicas, na Unicamp e ali eu entendi melhor. Pude refletir sobre os tipos de pobreza e entender para que servia o Bolsa Família. Consegui ter um olhar de que a gente precisa, sim, do Bolsa Família, mas não precisa só dele.

Fiz mestrado na Unicamp, trabalhei em redação de revista, como jornalista freelancer, como assessor, como agente de inovação, fui professor. Hoje, estou trabalhando na área de marketing numa instituição financeira e é uma experiência que meio que costura tudo que já fiz na vida profissional. Se hoje estou num patamar legal pela minha formação, só consegui isso porque tinha minha mãe que acreditou na educação e usou de maneira consciente todas as ferramentas à disposição e também os benefícios que tínhamos direito a receber para subsidiar essa educação. Eu poderia estar em qualquer lugar. Hoje, estou feliz, realizado, trabalhando na área que estudei. E minha mãe está feliz. Agora, ela tem uma conta, recebe pagamentos com maquininha de cartão e é MEI (Microempreendedor individual)".