Relato pessoal: Precisei crescer para me tornar uma criança linda

Repórter do CORREIO detalha suas percepções durante cobertura do Afro Fashion Day 2020

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  • Da Redação

Publicado em 28 de novembro de 2020 às 11:44

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: Acervo Pessoal

Achar que eu era bonito na infância e adolescência nunca foi algo que encarei como possível. A pele clara e o cabelo que 'nem é duro' me faziam escapar do trauma de ser eleito o mais feio da turma. Ao mesmo tempo, estar no topo e ser visto como um dos mais bonitos era missão impossível. Estava naquele chamado meio de tabela e, naquelas circunstâncias, até que não era ruim. Ora, se não for pra ser bom, que pelo menos não seja péssimo. É melhor passar arrastado do que perder o ano.

Esse processo de ser aceitar - e comemorar - o fato de pelo menos não ser feio é cruel. Principalmente na cabeça de quem tem a pele acostumada a lidar com exigências no mais alto nível. Mano Brown, numa de suas apresentações mais antológicas, perguntou aos berros quem foi o pilantra que inventou essa história de que um negro precisa ser sempre o melhor ou está relegado ao fracasso. Minhas notas podiam ser altas, mas eu era uma criança negra e gordinha. Ainda não era suficiente. Eu precisava melhorar mais. E me esforcei para mudar tudo o que estava a meu alcance, mas sempre faltava alguma coisa.

A criança gordinha de notas altas se tornou um adolescente magrelo de notas médias e ruins durante o ensino médio após a mudança de colégio. Bom, se não consigo notas altas, que tal mudar o cabelo? Alisei. E tive vergonha no momento seguinte. Aquilo ali não era meu. Todo o mundo saberia que sou uma farsa. Eu sempre era um farsante. Como alguém assim pode ser bonito? Impossível.  (Foto: Kevin Oux) Eu queria ter a beleza que os caras mais populares da escola tinham. Ou dos caras das revistas, que pareciam os caras da escola. Mas nada disso era possível. Para piorar, fui um adolescente negro criado em um espaço de classe média extremamente embranquecido. Era impossível ser bonito assim.

A universidade, o contato com o movimento negro, as leituras, os aprendizados e reflexões que via em redes sociais me ajudaram muito a me aceitar. Ainda que uma parte da minha família olhasse torto para o meu cabelo quando deixei crescer natural ou que comemorassem quando eu cortei baixinho novamente. Todas essas experiências que aprendi depois do início da vida adulta poderiam ser muito menos dolorosas se eu tivesse contato com algo tipo o Afro Fashion Day antes.

É muito legal ver que corpos gordos, pretos, com cabelão ou sem, podem ser vistos como modelo. E, aqui, não falo de modelo apenas como profissão, é também no sentido literal da palavra. Modelo como espelho, como algo que quero ser. Ainda hoje tenho sérias dificuldades em lidar com as mudanças em meu corpo e sei que se o Vinícius de 10, 15 anos atrás visse as coisas que estou vendo hoje aos 23 anos, em meu primeiro emprego formal, ele seria alguém bem melhor consigo mesmo. Só depois de adulto percebi que era a criança mais bonita da turma. Uma criança preta e linda. Um adolescente preto e lindo. Estar bem resolvido com sua aparência é estar bem com o que se é. E isso muda o mundo. Ouvir e ver pessoas tão bonitas que parecem comigo foi o maior aprendizado de autoaceitação que tive (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Por esses motivos me alegra e tenho alguns fios de esperança sabendo que há gerações crescendo com essa certeza de que somos lindas, lindos. E que não precisamos de nenhum processo traumático para maquiar aquilo que somos e nos enquadrar em um perfil que não é nosso. Os desafios que enfrentamos e enfrentaremos durante essa longa jornada que é ser preto e preta no Brasil ainda é longo. Muito longo. Mas o fato é que chegamos mais fortes se a gente começar aceitando quem e como somos. Pretinhos, pretinhas. Lindas e lindos. Obrigado, Afro Fashion Day.