Salvador, sua linda

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  • Malu Fontes

Publicado em 1 de abril de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Alguém abençoado pela criatividade, pelo senso de oportunidade e pelo conforto da compreensão do espírito dos baianos de Salvador, biológicos ou adotados, traduziu com leveza e humor o nosso jeito de corpo e voz de tratar as visitas. “Oxe, já vai?”. Experimentado sob um temporal numa manhã de outono, enquanto se leva as visitas bambuzal do aeroporto adentro, para a volta para a casa em outros cantos do país ou do mundo, o sabor dessa evocação publicitária aos turistas remete quase a uma gargalhada para dentro, movida pelo prazer de se saber pertencente a um povo, um tempo, uma cultura, uma história e uma geografia traduzíveis por três palavras.  (Foto: Reprodução) Num outdoor, a evidência de que a língua falada em Salvador não é exatamente a portuguesa. Ok, toda cidade, todo lugar, tem seus códigos específicos de linguagem. Mas vamos combinar, em Salvador temos um dialeto amplíssimo, pouco penetrável por quem chegou ontem. Comer água, comer reggae ou cair matando é a cara da gente, gargalhando sobre a gramática oficial, com lente de contato nos dentes ou banguela. 

Solidão Num dos livros mais bonitos sobre Salvador, Uma História da Cidade da Bahia, escrito pelo antropólogo Antônio Risério e publicado como obra de arte pelo então governo do estado quando Salvador comemorou 450 anos, há uma explicação linda para essa nossa condição de sermos como somos, essa cidade com um signo identitário tão marcado a ferro e fogo literais, graças à matriz africana que nos moldou para além dos altares europeus e da naturalidade tropical indígena. Com a vinda da Família Real portuguesa em fuga para o Brasil, e a decisão de retirar de Salvador o status de capital da Colônia, nos atiraram então ao esquecimento, como Risério explica como sendo “os 100 anos de solidão da Bahia”. 

E só para não gerar reducionismos ou generalismos na interpretação, lembremos que, dentro das fronteiras do baianês, durante muito tempo e ainda para alguns, Bahia é sinônimo de Salvador. Sim, é muito justo que o semiárido, o sertão, o sul e as outras bahias contidas no mapa geopolítico do estado não vejam muita graça no estabelecimento desse sinônimo. Nada mais bonito sob o olhar histórico que os fluxos e refluxos de solidão que parecem ser a não apenas condição estruturante da construção da personalidade de Salvador, mas também uma espécie de sina trágica que nos molda. 

Hi-lo Ao nos tirar o status de capital e transferi-lo para o Rio, os portugueses pareciam ter nos condenado ao esquecimento. Ao vermos nos textos culturais sobre o último verão de Salvador tão frequentemente palavras como renascimento e até redescoberta ou redenção (da cidade), histórica e quase melancolicamente somos remetidos aos 50 anos de abandono do qual fomos vítimas após o descobrimento e aos quase 100 impostos pelos portugueses que preferiram o Rio. Sim, entre o que chamamos de decadência do axé ou do Carnaval de Salvador, da forma como os vimos florescer na década de 80, e o renascimento em 2019, muito há do mesmo tipo de fermento que sempre está presente nesses refluxos de nossa solidão histórica.  Quando perdemos a sede do governo real, ficamos décadas e décadas esquecidos. Ninguém nos visitava. Uma espécie de família culturalmente e geograficamente isolada, que não vê as coisas dos outros, os hábitos dos outros, as novidades do mundo. Podíamos ter nos tornado um povo taciturno, triste, de quadris duros e anorgásmico. Mas não é que um século de solidão nos deu tudo o que somos agora, adolescentes de 470 anos (Londres tem mais de 2 mil anos, Paris é tão velha que uns lhe atribuem 6 mil anos e alguns mais que isso e Roma tem 4 mil anos)? Ficamos tanto tempo sozinhos que nossa cultura empedrou dentro de nós e se tornou inquebrável. Quando a redescobriram, Salvador tinha dado um zignáu e, toda “hi-lo” estava deslumbrante no centro de um samba de roda. Forasteiros lhe saúdam até hoje, entre um “Salvador, sua linda” e um “digaí, sumida”. Nós nos sabemos e renascemos num assombro de cores, ritmos e sabores todos os dias.