São João reinventado: a chama da tradição durante o isolamento

Em casa e nas lives, famílias e artistas juninos se esforçam para agregar valores da festa; pesquisador sugere incentivo às raízes no confinamento

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 21 de junho de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil / CORREIO

Ainda dá tempo! Você que está triste com o cancelamento das grandes festas juninas pode, sim, ajudar a manter a tradição viva. Estamos a três dias da noite de São João e ainda é possível colorir a casa, buscar energia no amendoim cozido ou esquentar o coração com um licor de jenipapo. Umas bandeirolas que sejam já mudam a atmosfera. O forrozinho, claro, é tiro e queda. Afaste os móveis, transforme sua casa em sala de reboco e esqueça por um tempo que estamos em uma pandemia.

Inspire-se na decoração da corretora de imóveis Daniela Oliveira, 44 anos. Mesmo com o isolamento social, a varanda do apartamento dela, na Barra, mostra que ali não tem vírus que mate a tradição. Sempre passou o São João no interior com a família inteira, mas dessa vez a festa vai se resumir a ela e as filhas Vitória, 18 anos, e Valentina, de 6.

“É a festa da família, da visita aos vizinhos para tomar um licor. Esse ano tive que ficar aqui com minhas filhas, mas não vou deixar de fazer minhas iguarias, de arrumar minha casa. Tradição é tradição”, afirma Daniela. “Vamos tentar agregar esses valores, esse espírito junino, preservando o distanciamento social”, ensina, sem abrir mão das tecnologias. “Os outros familiares vamos ver através de vídeo chamada. Já procurei saber também os horários das melhores lives”.   

Enfim, não é porque a festa é confinada que ela não pode ser cheia de música, alegria e valorização das raízes. Aliás, talvez isso até ajude nesses três tópicos, especialmente o último. É o que acredita Jânio Roque de Castro, professor de Geografia Cultural da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Autor do livro Da Casa à Praça Pública: a espetacularização das festas juninas no espaço urbano, Jânio pesquisa a fundo as reinvenções espaciais do São João. 

Este ano, diz ele, o período junino não vai ser caracterizado pela multiterritorialidade, como acontece há décadas. Mas, se reinventado, o São João da quarentena pode justamente guardar o brilho de suas origens. O professor estuda as festas em quatro dimensões espaciais: a casa, a rua, a praça pública e as festas nas arenas privadas. No contexto de pandemia, só ficou a casa. Acontece que, no passado, diz o professor, o São João acontecia apenas na casa mesmo. No máximo, na igreja. “Era um evento lúdico festivo dentro das residências ou na igreja como evento religioso. Agora excluiu-se a rua, excluiu-se a praça e excluiu-se a arena privada. Restou a casa. É hora de reinventar a festa na casa”.

O cantor e forrozeiro Léo Macedo, vocalista da banda Estakazero, concorda. Para ele, difícil seria fazer um Carnaval em casa. Mas, no caso do São João, é perfeitamente possível. "O São João é uma festa caseira na sua essência. Os grandes shows nas praças iniciaram há uns 25 anos, mas o São João é muito mais do que isso. É culinária, é vestuário, são as brincadeiras. Então basta colocar uma mesa com amendoim, milho e canjica e ouvir um forró. Não tem essa de que não vai ter São João. Vai ter, sim! Dentro de cada apartamento, de cada casa. É como o Natal. O São João é o Natal do nordestino", compara Léo, que tem feito e vai continuar fazendo diversas lives (veja programação no final do texto).

Que tal? Para além das lives, que ganharam grande importância para manter ativos grupos e bandas juninas, a festa em casa é um desafio à criatividade. Jânio propõe o diálogo com práticas, saberes e fazeres do passado. O simples ato de assar um bolo na própria cozinha e não comprar pronto, por exemplo, ou fazer a canjica de acordo com seu gosto e não comprar na padaria.

“Que tal fazer o São João do seu jeito? Já que vai ficar mais em casa, que tal caprichar na decoração? Manda para o grupo de Whatts App a foto dos pratos típicos e dos enfeites”, sugere Jânio, aconselhando que as pessoas aproveitem o máximo as ferramentas on line para compartilhar o que estão vivendo. “Uma foto que você poste estimula e favorece a manutenção da tradição”.  

Outra: que tal aproveitar o confinamento para aprender a dançar forró? “Para aqueles que têm vergonha de dançar nas praças, que tal dançar em casa? Que tal assistir vídeos e cursos na Internet para aprender a dançar um xote clássico, um pé de serra tradicional ou até mesmo um forró eletrônico? Joga os vídeos no grupo da família e dos amigos”.

E as crianças? Esse seria o momento de coloca-las em contato com as tradições juninas. “A residência é o lugar ideal para retomar as práticas brincantes com as crianças. No caso das casas, pode-se tocar fogos na porta, contar histórias juninas, fazer brincadeiras como o quebra-pote”, exemplifica.

Ovo na colher Mas, mesmo em apartamentos, é possível estimular atividades lúdicas como equilibrar o ovo na colher. Foi o que fez Maya, de 5 anos. A festa de São João on-line da escola aconteceu essa semana. A última vez que esteve com os coleguinhas foi no dia 3 de março. No arraial virtual, interagiu pelo lap top e participou de brincadeiras lúdicas com a temática junina.   Maya à caráter para o arraial on-line (Foto: Divulgação) “É a festa que eu mais amo o ano inteiro. Recebemos o convite da festa virtual da escola. Comprei bandeirolas, balão e arrumei ela toda. Teve corrida de saco, brincadeira de equilibrar o ovo na colher”, diz a mãe, a professora de educação física Débora Leite, 36 anos. “No fundo senti muita saudade de ver minha filha na quadrilha, correndo, soltando traque de massa. Mas fazemos o que é possível, né?”.

Atores E como ficam aqueles que todos os anos vivem do que acontece para além das casas? O que têm feito os grandes “atores” do São João, a exemplo das quadrilhas, das bandas de forró, dos sambas juninos dos bairros de Salvador? Esses, mais do que todos, recorrem à Internet.

“O que estamos fazendo são lives com temas diversos. Falamos de figurino, de maquiagem, de coreografia, de musicalidade. Essa tem sido a nossa forma de manter o espírito junino”, revela Soiane Gomes, 41 anos, que é arte-educadora, dança quadrilha há 27 anos e é coordenadora do Fórum Permanente de Quadrilhas Juninas. Aglomeração da Capelinha do Forró antes da pandemia. Agora, só live (Foto: Divulgação) Sem os concursos anuais, as bandas das quadrilhas também têm feito lives shows. A Capelinha do Forró, do bairro de São Caetano, tem live marcada para o dia 27. E, além disso, promove ações on-line para fomentar nos brincantes o movimento junino. Entre outras coisas, teve campanha para vendas de máscaras estilizadas que angariou fundos para a quadrilha.

“Agora estamos promovendo o 1º concurso de Rei da Capelinha do Forró, uma seleção para escolher o partner (parceiro) da Rainha Thay Gonçalves, que ficou sem par desde que seu cavalheiro Maciel Aquino foi promovido a noivo”, conta Taís Borges, 41 anos, secretária administrativa, roteirista, figurinista e aderecista da quadrilha, fundada em 1998.   

Os grupos de samba junino, conhecido como samba duro, também se viram para manter a tradição e sobreviver a um São João que tinha tudo para ser completamente parado. Direto de um estúdio, o Sambrasil, do bairro da Liberdade, tem live neste sábado (20), no Youtube e Instagram. “Estamos impedidos de fazer aglomeração, mas temos que manter a nossa história viva”, afirma o historiador e músico Agnelo Santana, 50 anos, conhecido como Bororó. Grupo de samba junino Sambrasil prestigiado por Carlinhos Brown no ano passado (Foto: Divulgação) O samba junino, que tem dezenas de representantes em Salvador, é um samba mais acelerado e tem influência do som oriundo dos terreiros de candomblé. “Vamos tocar o barco como se fosse nosso desfile original enquanto o pessoal toma um licorzinho em casa”, afirma Bororó. Originado na rua Belo Oriente, o Sambrasil nasceu em 2006. Esse ano não vai ocorrer o encontro dos grupos de samba junino, que acontece no Grupo União, no Engenho Velho de Brotas. 

Com a pandemia, os forrozeiros e bandas de forró tiveram que aprender uma nova forma de interagir com o público. No caso da Estakazero, um sítio em Simões Filho cria o ambiente rural para as lives da banda. Aí é só ter uma boa conexão de internet. As próximas lives da Estaka são nos dias 21, 22, e 24. "Nós forrozeiros recebemos pelos peitos o cancelamento dos shows. Pegou de surpresa todo o movimento do forró", afirma Léo, que diz ter sentido dificuldade no início por ter que fazer um show sem sentir a energia do público.

"É muito diferente, mas estamos nos acostumando. Tem o lado bom também. Você tem a chance de conversar com o espectador, de contar uma história. Além disso, atinge um público que nunca iria em um show. Acho que as lives vieram pra ficar mesmo quando os shows voltarem", acredita. Dentro da proposta do forró pela internet, uma iniciativa reúne forrozeiros de 14 estados do Brasil. Desde o dia 12 de junho, o Festival São João na Rede transmite lives dos mais variados artistas e discute o forró nos tempos de pandemia. É só buscar Festival São João na Rede nas redes sociais.

"São João em família não é garantia de mais afeto", diz professor da Uneb  

Diferente do que muitos estão afirmando, o professor de Geografia Cultural Jânio Roque de Castro não acha que o São João no isolamento é garantia de reaproximação familiar. Ele acredita que a reinvenção da festa vai partir das famílias que já faziam isso juntas. Claro, as famílias fragmentadas terão oportunidade para tal. Mas não é o confinamento que vai determinar essa aproximação para o congraçamento.

“Há famílias que são unidas em todos os momentos da festa, que vão juntas para a praça, para a igreja e para as festas fechadas. Essas pessoas certamente vão manter a tradição. Mas não diria que o São João desse ano será garantia de mais afeto, apesar de ser uma grande oportunidade para tal”. E ainda há de se ter cuidado com os conflitos, diz o professor. “Uma maior proximidade pode determinar relações conflitivas. Imagine: se cada um quiser uma live e tem uma TV só”, pondera.

São João, diz o professor, é encontro e reencontro. Encontro no momento em que se conhece pessoas novas nas praças e festas fechadas. Reencontro na medida em que você revê familiares e amigos. Esse ano será possível se reencontrar com quem está confinado com você. “Para encontrar pessoas novas, só nas redes sociais. Mas no espaço físico não vai acontecer”.  

No contexto do São João reinventado, os jovens serão os mais impactados, observa o pesquisador da Uneb. “Eram eles que mais circulavam nos diversos espaços. Das casas no interior iam para as festas fechadas e depois para as praças”. Os mais velhos, continua, ficavam próximos às fogueiras tomando seu licorzinho e se deliciando com as guloseimas juninas.

Ou seja, a não realização do São João nas praças impacta cada um de forma diferente, a depender da faixa etária. “Os idosos, com algumas exceções, vão estar na posição que sempre estiveram nas festas juninas”, acredita Jânio Roque. “Minhas filhas mesmo já estavam pagando as festas de camisa desde fevereiro. Esses, os jovens, são os que estão sofrendo mais”.    

Você não vai passar a noite da fogueira do São João só em casa! Nesta terça-feira (23), o repórter do CORREIO, Alexandre Lyrio, que não vive sem São João, vai fazer o arraiá da casa dele e você pode curtir essa festa de sua casa a partir de 22h pelo Instagram @correio24horas Para não ficar sozinho nessa live, além de você, Lyrio receberá virtualmente: Janio Roque de Castro,  professor de Geografia Cultural da Universidade do Estado da Bahia. Autor do livro Da Casa à Praça Pública: a espetacularização das festas juninas no espaço urbano, pesquisa a fundo as reinvenções espaciais do São João e a Banda  Xote de Anjo.

Outras atrações juninas para o seu São João virtual:

Live Sambrasil (Samba Junino) Dia 20 - 18h (Youtube)

Lives da Estakazero Dias 21, 23, 25 e 27 - (Youtube e Instagram da Estakazero) 

Live da Quadrilha Capelinha do Forró  Dia 27/06 - 15h (YouTube da Capelinha do Forró e Portal Ispia)

Festival São João na Rede (Maior evento de São João on line do Brasil) Desde o dia 12 de junho (Youtube e Instagram)